Desde essa madrugada, que anunciou o início da invasão militar russa, ficou deserto o parque onde foi construído o Arco da Amizade das Nações, uma imensa estrutura que celebrava a irmandade dos povos socialistas, agora desfeita.
Ficaram desertas as belas catedrais de Santa Sofia e Santo Alexander, as igrejas e mosteiros ortodoxos, os museus que recordam o Holodomor, a morte pela fome do início da década de 1930, ou a história da Ucrânia.
Estão sós as estátuas a heróis soviéticos ou nacionalistas, está só o Parque Mariyinsky, as margens do Dnieper ou a imponente estátua à Mãe Pátria, estrutura de aço, com 120 metros de altura e 560 toneladas. Escudo com foice e martelo erguido na mão esquerda, espada com 16 metros na direita, um orgulho dos tempos soviéticos e uma celebração intemporal à "Grande Guerra Patriótica".
Também sós os imensos murais com as fotos dos soldados ucranianos mortos no conflito com os separatistas russófonos do Donbass, junto à reconstruída igreja de São Miguel.
Três milhões de pessoas fechadas em casa, após a imposição da lei marcial e do recolher obrigatório, que foi hoje inicialmente antecipado para começar às 17:00 e terminar à mesma hora 07:00 e depois alargado até às 08:00 de segunda-feira.
Apenas alguns habitantes aproveitaram hoje o sol para passear os seus animais de estimação. Outros concentraram-se junto a farmácias, ou nos poucos estabelecimentos comerciais ainda abertos. Levam caixas com mantimentos, conservas, bebidas, produtos de higiene. O açambarcamento começou em Kiev.
Alguns carros, apressados, a polícia nervosa e determinada nas ruas, e pouco mais. Restaurantes, bares, a maioria dos estabelecimentos, tudo vazio. A cidade barricou-se, à espera do inimigo. E armou-se.
O hotel onde se encontram diversos jornalistas, não longe da ópera de Kiev, foi transformado em 'bunker'. As portas laterais e a grande entrada giratória estão fechadas e à guarda de um funcionário. Painéis de madeira protegem os vidros e a receção está sempre vazia.
A comida também foi racionada e é servida no abrigo improvisado, o piso menos dois, que integra a garagem do edifício. Ao pequeno-almoço uma sandes, uma maçã e café, chá ou água, algum leite. Ao almoço, uma sopa instantânea. Estão sempre disponíveis algumas bebidas, sumos, por vezes, bolinhos ou barras de chocolate. O jantar é a refeição mais reforçada, um prato geralmente com massa e carne. E o serviço de quartos deixou de ser assegurado.
Os inquilinos estrangeiros do hotel confundem-se no abrigo com diversos moradores das redondezas, que também foram acolhidos para se protegerem. Uma família numerosa diverte-se com um jogo de cartas, o seu cão branco, talvez um Akbash da Turquia, estendido num tecido almofadado, junto a um recipiente com água, alheio ao estranho mundo dos homens e olhar sempre indagador.
Trouxeram mantimentos, colchões, cadeiras. Alguns estendem-se nos colchões, outros juntam três cadeiras para o fazerem, muitos e muitas utilizam apenas o edredom separado do chão por um cartão mais grosso.
Para animar, alguns trouxeram guitarras, tocam e cantam, e muitos reúnem-se em redor para acompanhar o ritmo, gravar, fotografar. Depois, pouco a pouco, instala-se o silêncio. Dos microfones surge mais um aviso sobre sirenes a ecoarem na cidade, a possibilidade de novos ataques aéreos. Tenta-se dormir mais outra noite na cidade barricada. Por quanto tempo, todos se interrogam.
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