Russos já sofrem efeitos de campanha militar do Kremlin
As sanções impostas pelos Estados Unidos e União Europeia às instituições bancárias russas, após a campanha militar do Kremlin na Ucrânia, e as contra-medidas das autoridades de Moscovo, estão já a repercutir-se na classe média urbana russas.
© Reuters
Mundo Ucrânia/Rússia
Por decreto do Presidente Vladimir Putin, empresas e cidadãos russos estão proibidos de fazer transferências bancárias em moeda estrangeira para o exterior, enquanto os importadores são obrigados a vender à banca russa 80% das suas receitas em divisas. Outro despacho determina que os russos não podem levar para o exterior mais do que 10 mil dólares em dinheiro vivo.
As medidas, destinadas a impedir a fuga de capitais da Rússia, vêm afectar milhares de russos que residem, estudam ou fazem negócios no estrangeiro.
Natália Aleksandrova, bolseira de mestrado no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, decidiu vender o seu apartamento em Moscovo para comprar um T1 em Portugal, e ficou agora impedida de transferir o dinheiro.
"Com o início da guerra (invasão russa na Ucrânia), resolvi não voltar ao meu país. Vi o mercado russo do imobiliário a reagir com uma baixa de preços. Não obstante, vendi o meu pequeno apartamento em Salárievo (bairro residencial no sudoeste de Moscovo), mas não sei agora como vou fazer uma transferência legal para Portugal".
A estudante russa refere que muitos dos seus colegas deparam-se com a impossibilidade de receber transferências da Rússia. Clientes de bancos russos residentes no estrangeiro também estão com acesso limitado às suas contas bancárias.
"As caixas automáticas em Portugal apenas permitem três levantamentos por dia de quantias não superiores a 200 euros. Se o meu banco em Moscovo vier a falir, o meu depósito desaparecerá", admite Natália.
No passado dia 28, a banca russa elevou a taxa de referência, de 9,5 por cento para 20 por cento, justificando a necessidade de "baixar os riscos inflacionistas e de desvalorização" do rublo.
Em seis dias de guerra, a moeda russa perdeu 30% do seu valor face ao euro e dólar. Na capital russa, os cidadãos fazem filas para as caixas automáticas, que também registam falta da liquidez.
"Não sei como é que se desenrascam oligarcas, mas nós aqui passamos a ser vítimas destas sanções (impostas pelo Ocidente)", - diz à Lusa Serguei, empresário em nome individual que se encontra na fila de espera à porta da delegação do Alfa-Bank no centro de Moscovo. "É já a quarta agência a que venho para levantar os meus dólares e euros. Noutras três, não havia divisas estrangeiras para levantar".
A Rússia possui cerca de 500 mil milhões de dólares em reservas estratégicas, o que, segundo estimativas de especialistas, pode chegar para sustentar a cotação do rublo durante quase um ano. Não obstante essa "almofada" financeira, o aumento da taxa de referência resultou de imediato num acréscimo dos custos de hipotecas para além dos 20%.
Lídia, funcionária pública, queixa-se dos custos proibitivos de créditos à habitação, mas não deixa de culpar o Ocidente e a Ucrânia pela degradação do nível de vida na Rússia.
"Os ucranianos é que provocaram a Rússia para uma campanha militar", atesta esta residente de Moscovo com 48 anos de idade, recorrendo à linguagem oficialmente usada pelas autoridades. A palavra "guerra" é proibida pela censura russa para designar o que o Kremlin qualifica de "operação de manutenção de paz".
Na convicção de Lídia e da sua colega, Valentina, a Ucrânia é governada por nacionalistas e extremistas que "instalam canhões no meio de cidades", para atrair assim o fogo de retaliação por parte de tropas russas. Esta é a versão da guerra na Ucrânia transmitida pela televisão estatal e pela comunicação social sob o controlo do Kremlin.
"Durante oito anos, os nossos russos (habitantes de) Donbass não deixaram de ser alvos de ataques pelos militares ucranianos. Tanta dor e tantos sofrimentos passaram, as suas casas destruídas, não há emprego, aquilo é horrível!", acrescenta Valentina, ao justificar a estratégia de Moscovo para a Ucrânia.
Dmitri, que se apresenta como empresário, junta-se à conversa para advogar a política do Presidente Putin na "defesa dos russos de Donbass". Questionado se ficou impressionado com as imagens dos refugiados e bombardeamentos das cidades ucranianas, Dmitri retorque: "Não vi. Será que as televisões ocidentais transmitem igualmente imagens das cidades destruídas no leste da Ucrânia?".
Na avaliação do FOM -- Centro de Estudos da Opinião Pública, considerada como esturutura próxima das posições do Kremlin, o índice de confiança no presidente Putin terá crescido para 70 por cento durante a primeira semana da campanha militar.
Aleksei Boiko, estudante do curso de sociologia numa universidade de Moscovo, contesta estas informações, afirmando que "estudos sociológicos não representam um quadro credível em períodos de guerra", quando a opinião pública se radicaliza.
O espaço de discussão encontra-se cada vez mais reduzido na Rússia. O serviço federal para o controlo dos conteúdos dos media -- Roskomnadzor -- bloqueou terça-feira o acesso à rádio Eco de Moscovo e à TV Dojd -- as duas maiores estações que incluíam o discurso crítico do Kremlin.
A aprovação da política externa russa é sobretudo caraterística de funcionários públicos, grupo estimado em 60 milhões de pessoas, cujo nível de vida depende dos ordenados pagos a partir do Orçamento de Estado e cuja lealdade faz parte de um "pacote de acordo social" criado por Putin ao longo dos 20 anos do seu governo.
Grupos de cidadãos urbanos, na sua grande maioria em idade ativa, tendem a divergir do "consenso", mas são menos numerosos (por volta dos 30 por cento da população russa)e não têm representação em órgãos de Estado nem são admitidos aos mecanismos de tomada de decisão.
Os chamados "oligarcas" podem fazer parte importante da economia russa, mas apenas sob condição de estarem alinhados, por defeito, com a política central, seja ela a que for conforme a conjuntura corrente doméstica ou externa. O domínio dos "homens fortes" garante a estabilidade do regime, mas não impede que o descontentamento com o baixo nível de vida esteja a crescer, ainda de forma silenciosa, em grupos "obedientes". Esta fatia ativa da população procura expressar-se, mesmo sob perigo de represálias.
A guerra na Ucrânia está a tornar-se um fator que aciona pensamento crítico num numeroso grupo dos que hesitam, e o número de cidadãos propensos a desaprovar a ação militar está muito acima daqueles que se atrevem a expressar.
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