Sentado numa cadeira de rodas com um gato de peluche e o seu telemóvel, a criança de 12 anos passa em revista aquele 26 de fevereiro, logo ao segundo dia de guerra. A família estava a meio de uma jornada iniciada em Mykolayiv, no sul da Ucrânia, junto ao Mar Negro, em busca da estação ferroviária de Kiev, de onde pretendia fugir para uma região mais segura do país.
No carro seguiam quatro crianças e três adultos, entre os quais os pais de Vova. À aproximação de um 'checkpoint', junto de uma ponte perto do centro da capital, os ocupantes de uma viatura abriram fogo com armas automáticas: "Primeiro nas rodas, depois no condutor, a seguir em toda a gente", conta Natasha, a mãe. O condutor era o seu marido e morreu.
Vova tem vagas memórias daquele instante de se proteger com uma mochila da salva de metralha e de se dar conta de que tinha sido atingido. "Não me conseguia mexer e não conseguia ouvir nada. Achei que estava a morrer", descreve, exibindo os ferimentos na face direita, nas costas e num joelho.
Depois, recorda-se da chegada dos socorristas, de o retirarem por uma janela partida, porque as portas não abriam, e de lhe estancarem de imediato grandes hemorragias com torniquetes.
Até hoje Natasha não consegue identificar os autores dos disparos. Na reconstituição daquele dia, lembra-se que a família tinha sido parada em dois controlos militares anteriores, de forças ucranianas, sem incidentes. Nem consegue vislumbrar qualquer movimento do carro que pudesse levantar suspeitas. Além do pai, Vova perdeu um primo de seis anos e um outro ficou com ferimentos na cabeça.
Três operações depois, Vova encontra-se em recuperação, mas sente demasiadas dores quando se levanta ou tenta andar, tem dificuldade em falar e só pode ingerir alimentos líquidos. Segundo a mãe, serão precisos seis meses de reabilitação para se perceber se a criança ficou com danos permanentes relacionados com o ferimento nas costas.
No quinto piso do Hospital Pediátrico de Okhmadyt, atrás de portas decoradas com girafas azuis, encontra companhia em jogos de telemóvel, que prefere a brincar com os outros meninos internados. Inspirou-se num 'blogger' no Youtube e mandou fazer um ousado penteado de longa franja loura, falando do seu fascínio por informática e dos seus sonhos em fazer carreira nas tecnologias de informação. Já a mãe, que tem 34 anos e era comerciante antes da invasão russa, tem planos mais imediatos: realizar o funeral do marido e continuar a fugir de Kiev.
A guerra que se desenrola para lá daquelas janelas da enfermaria do hospital é uma realidade que Vova conheceu demasiado perto e, sempre muito sereno, evita falar dela. Recorre apenas às virtudes de premonição de uma antiga vidente búlgara cega muito presente no imaginário popular ucraniano: "Vai haver guerra, muitos mortos, muitas crianças mortas, mas a Ucrânia vai vencer".
Do mesmo modo, já ignora os alarmes das sirenes, que tocam várias vezes ao dia, mesmo quando a guerra teima em ir ao encontro dele e de outras cerca de cem crianças internadas.
Foi na quarta-feira, eram seis da manhã, quando um míssil russo foi intercetado pela antiaérea, projetando fragmentos e "estremecendo de horror" todo o Hospital de Ohmadyt, segundo a descrição dos serviços da unidade de saúde.
"As camas do hospital infantil começaram a abanar por causa do impacto, as janelas da creche foram destruídas pelas ondas de choque e muitos fragmentos foram encontrados perto do edifício", prosseguem, destacando que "felizmente, não houve vítimas".
O Hospital Pediátrico de Okhmadyt, o maior da Ucrânia e a curta distância do centro da capital, foi apenas um dos vários edifícios civis atingidos, sobretudo em áreas residenciais, pela artilharia russa. Foi também uma das 43 instalações de saúde alvejadas até quarta-feira, segundo um balanço feito no mesmo dia pela Organização Mundial de Saúde. Mais de 300 estão na linha do conflito ou em áreas que a Rússia passou a controlar e outras 600 estão a 10 quilómetros da frente de batalha.
Vinte e quatro horas depois do ataque, não há doentes nos abrigos improvisados no Hospital Ohmadyt. Mas ao fim de 22 dias de guerra, tornou-se frequente a transferência de crianças para as caves da unidade, onde foram montados blocos cirúrgicos e de reanimação.
De acordo com os serviços administrativos, num dia normal, ou seja, antes da guerra, haveria cerca de 600 menores internadas e duas mil consultas diárias e a falta de movimento é agora notória no átrio do hospital pediátrico, numa cidade que viu pelo menos dois milhões dos seus 3,5 milhões de habitantes partirem nas últimas semanas, na maioria mulheres e crianças.
O pessoal de saúde também estará reduzido a metade e, noutra mudança imposta pela guerra, o hospital começou a aceitar adultos, mas não militares.
Desde 24 de fevereiro, deram entrada 15 crianças feridas em tiroteios ou vítimas de estilhaços dos bombardeamentos, várias das quais recordadas num arquivo fotográfico dos próprios serviços hospitalares, mostrando membros atravessados por balas, operações cirúrgicas ou apenas imagens de meninos e meninas nas camas de recobro, com os seus peluches e brinquedos.
A primeira criança ferida, recorda o cirurgião Valery Bovkun, deu entrada em 25 de fevereiro, no segundo dia da invasão russa. "Tinha 6 anos e foi vítima de uma explosão. Morreu ao fim de alguns dias". O hospital registou uma segunda morte mais à frente, atingida num tiroteio, mas chegou já sem vida às urgências. "Tudo isto deixa-me triste e furioso", desabafa o médico, quando a Ucrânia, segundo dados da ONU, regista 780 mortos (58 crianças) e 1.252 feridos (68) civis até quarta-feira.
É nestes números que se inclui Vova, cuja história está fatidicamente ligada a este hospital. Afinal, foi a poucas centenas de metros, numa zona moderna de prédios altos, que automóvel Vaz 2105 azul, de fabrico russo, em que seguia com a família foi alvejado. E lá ficou, crivado de balas, bem perto do 'outdoor' luminoso que tem um apelo para o exterior: "NATO, fechem os céus da Ucrânia".
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