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"Tenho medo que Putin se sinta sem alternativa e parta para o apocalipse"

Francisco Proença Garcia, especialista nas áreas da Geopolítica e da Geoestratégia, é o entrevistado desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

"Tenho medo que Putin se sinta sem alternativa e parta para o apocalipse"

Numa altura em que a invasão russa sobre a Ucrânia dura já há quase três meses, começamos a questionar-nos sobre quanto mais tempo esta guerra irá durar e quais os possíveis desfechos para a mesma. Até agora, o balanço é trágico: de acordo com os mais recentes dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), este conflito militar resultou na fuga de mais de 13 milhões de pessoas das suas habitações, com mais de três mil civis a terem já perdido a vida.

Numa outra perspetiva, também as tropas de Moscovo parecem ter sido obrigadas a repensar, a certo ponto desta guerra, as suas opções estratégias. Depois de terem sido capazes, logo nas primeiras semanas de conflito, de assumir o controlo de algumas das regiões em torno da capital ucraniana, Kyiv, os militares russos acabariam por abandonar a intenção de conquistar essa mesma cidade.

Francisco Proença Garcia, docente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e que é, também, Tenente-Coronel de Infantaria na reforma, é o convidado desta segunda-feira do Vozes ao Minuto. Algumas das temáticas abordadas nesta conversa com o especialista nas áreas da Geopolítica e da Geoestratégia foram os objetivos da Rússia para esta invasão sobre a Ucrânia, uma eventual expansão da mesma para território da NATO e a capacidade das Forças Armadas portuguesas conseguirem contribuir para uma contenção das eventuais ameaças que possam preocupar a Aliança Atlântica.

É complexo bombardear Odessa, porque eles têm lá grande investimentos. É o 'Algarve' deles, onde muitos russos têm casa de férias

A guerra na Ucrânia conta já com mais de dois meses de duração... Considera que a Rússia está a ser bem-sucedida nesta invasão ou que a mesma está a ser um falhanço?

A nossa expetativa era que os russos tivessem uma ação rápida, a tradicional guerra relâmpago, e conquistassem o poder em Kyiv e substituíssem-no por um poder próximo. Isso falhou e aquelas ações das forças especiais que decorreram junto a Kyiv, de ocupação dos aeródromos, por exemplo, foram um falhanço. Penso que talvez por falta de informação detalhada. Desde 2014, a Ucrânia tem-se estado a fortificar. As cidades estão todas fortificadas, em termos de equipamento, de armamento, das populações treinadas. De maneira que a guerra passou a ter uma outra orientação. Eles eventualmente perceberam que o esforço não podia ser feito em Kyiv e adaptaram-se à situação. E passaram a exercer o esforço sobretudo na zona do Donbass. 

Mas basta olhar para o mapa. Olhando para o mapa, um invasor pensa: "o que é que eu vou controlar? Tenho de controlar o cérebro e depois tenho de controlar o coração". E o coração, neste caso, são os portos. E até agora já controlaram. Só falta Odessa. O mar de Azov já está praticamente na mão deles. Já têm a Crimeia, mas falta aquela zona de Odessa. 

Mas é complexo bombardear Odessa, porque eles têm lá grande investimentos. É o 'Algarve' deles, onde muitos russos têm casa de férias. Penso que o esforço ainda não foi feito aí também por isso. Não é que eles não tenham capacidade para o fazer, pois em vez de bombardearem outros sítios, bombardeavam naquele. Até mesmo a partir da Transnístria podiam exercer uma força por trás e outra pela frente. Esse objetivo de isolar os portos, de controlar os portos, esteve sempre presente desde o início. Mas ainda não está completamente concretizado. 

O que me indica que esta guerra não vai terminar é que os russos estão a fazer combates em profundidade

Muito se fala sobre o 'Dia da Vitória', que se celebra a 9 de maio, e que essa data será o dia em que Vladimir Putin declara o fim do conflito, de acordo com a opinião de analistas, ou, contrariamente, um agravamento do mesmo. São suposições plausíveis? Em que é que uma eventual 'vitória' russa poderia consistir?

Nestas guerras nunca há vitórias. Há essencialmente derrotas, sobretudo para as populações, que são os mártires destas lutas pelo poder. Eu penso que o dia 9, que é um marco simbólico para eles, poderá ser usado na sua propaganda - pela conquista, pela derrota do batalhão Azov. Poderão ir por aí, porque esse é o símbolo nazi que eles identificaram e esse é o dia em que eles também derrotaram nazis, no passado. 

Mas nós olhamos para o mapa e vemos que eles têm algumas vilas e cidades conquistadas, mas não é nada de substancial. Agora, o que me indica que esta guerra não vai terminar é que os russos estão a fazer combates em profundidade. Eles atingem centrais de distribuição de eletricidade junto à fronteira com a Polónia; fazem exercícios nucleares em Kaliningrado; bombardeiam Odessa, Lviv e Kyiv (mesmo com o secretário-geral da ONU lá); e fazem estes ataques em profundidade. Mas depois, na componente operacional, eu penso que eles querem chegar ao Rio Dniepre. 

Se virmos os mapas da russofonia, onde se fala russo mais significativamente, vemos que vai até este rio. De maneira que esta poderá ser uma ideia. O que é que eles fizeram em Zaporizhzhia? Conquistaram a central nuclear, que foi logo um dos seus primeiros objetivos. Agora querem aproximar-se cada vez mais do rio Dniepre. E depois, eventualmente, juntar a zona sul, das forças que defendem a Crimeia, com aquelas que vem de Kharkiv, a norte - e criar ali uma linha divisória, coincidente com a parte que eles dizem que é russófona.

Há aqui outra coisa que é muito importante. O facto de, com o evoluir da guerra, os russos estarem a introduzir a moeda, a introduzir a lei e a ordem deles. Numa cidade ucraniana até já controlam a internet. Ou seja, já estão a 'russificar' o território. Essa é a legitimidade do exercício. A guerra é sempre uma mudança de ordem: temos uma ordem, passa a haver outra. E eles já estão a consolidar isso. Revertê-lo, depois, vai ser muito complexo. 

E o que é que nós fizemos em relação à Crimeia e ao Lugansk? Nada. Aplicámos umas sanções, mas aquilo consolidou-se. De maneira que eles vão parar onde nós os deixarmos parar

Um aliado de Vladimir Putin e antigo presidente da Rússia, Dmitry Medvedev, sugeriu recentemente que o objetivo do Kremlin passa por construir finalmente "uma Eurásia aberta entre Lisboa e Vladivostok". Esta é uma preocupação que a Europa deve ter em conta? Até onde quer Putin ir?

Não devemos esquecer que a 'Águia Bicéfala' de Moscovo olha tanto para a Europa, como para a Ásia. A Rússia é o maior país do mundo. Quando se fala desta ideia é em termos culturais - porque se formos a Vladivostok, que é junto à Coreia do Norte, a Ocidente temos Pequim. Para nós, o que é uma localização no extremo Oriente, para eles passa a ser Ocidente. De maneira que é muito grande, são 11 fusos horários, e isso é simbólico. E aí encontramos eslavos, ou seja, europeus, nas ilhas do Japão que eles ocuparam, desde a II Guerra Mundial. De maneira que é essa é uma ideia mais cultural.

Agora, a Rússia vai insistir muito nesta componente, que vem da tradição da escola de Munique da geopolítica. Karl Haushofer dizia que onde havia um alemão, havia interesses alemães. Putin veio reabilitar essa ideia: onde há um russo, ou russofonia, há interesses russos. E não nos esqueçamos que há, mesmo dentro da União Europeia, comunidades russófonas significativas e que não têm sequer passaporte. Essas populações são apátridas. 

Quando nós falamos em divisão da Ucrânia, é importante considerar que eles já dividiram a Alemanha, já dividiram a Coreia e também já dividiram o Vietname. Seria mais uma divisão. E o que é que nós fizemos em relação à Crimeia e ao Lugansk? Nada. Aplicámos umas sanções, mas aquilo consolidou-se. De maneira que eles vão parar onde nós os deixarmos parar. 

Se nós não mostrarmos força, eles não param. Eles já estiveram em Berlim, há 80 anos, de maneira que se nós não os fizermos parar, eles param em Berlim. Podemos pensar que não têm força para isso. Não sabemos se não têm. Sim, eles estão a enfrentar uma série de adversidades e resistência na Ucrânia. Os ucranianos estão bem preparados, nós estamos a ajudar os ucranianos a morrerem por nós. E agora a ideia passa por desgastá-los, para eles não terem a capacidade de, depois, irem até Berlim. Mas não sabemos. Apenas sabemos que se nós não nos mostrarmos resistentes, eles vêm até nós.

Recentemente têm-se registado várias explosões em várias zonas da Transnístria, que como sabemos é um território separatista dentro da Moldova que abriga tropas russas há décadas... O que se está alí a passar? A Moldova deve recear que a investida militar de Putin vise também o seu território?

Isso é mais uma situação mediática, ou seja, de discurso para gerirmos as perceções. A Transnístria é controlada por russos. A moeda que lá circula é o rublo, a língua que se fala é o russo.  Eles lá têm uma força que não é muito grande, mas que é significativa. Tão significativa que a Moldova não ocupa esse território. O que é que eles podem fazer? Uma ação tática - que pode passar, por exemplo, por apoiar um ataque que venha pelo mar ou pela zona oriental contra Odessa, 'cortando' depois Odessa pela retaguarda. Podem recorrer a isso e depois unir esse território até à Transnístria, já falaram nessa possibilidade.

Não sei se tal é possível e se têm essa intenção agora, mas se já nos falaram nisso, nós não podemos esquecer. Eles falaram na questão da Crimeia em 2014. Já passaram sete anos e agora voltam a este ataque. De maneira que agora falaram na Transnístria, e mesmo não tendo feito nada, temos de ter muita atenção ao problema desta região - sobretudo na perspetiva dos ucranianos, que podem ter uma ação pela retaguarda. Depois também temos outro problema mais a norte. Na quarta-feira começaram exercícios significativos na Bielorrússia e eu espero que os bielorrussos não entrem na guerra. 

A ideia que nós, ocidentais e países da NATO, devemos ter passa por conter o conflito naquele território. Para ver se os russos não alargam à Transnístria ou à Bielorrússia. Porque, senão, até onde é que isso vai parar? Há até cenários em que os norte-americanos dizem que para o ano já começa a III Guerra Mundial. Vamos ver. Eu espero que não.

Estamos a sofrer as consequências da guerra. Não temos tropas nossas a combaterem e a morrerem, ainda, (...) mas esse papel é desempenhado pelos ucranianos, que combatem e morrem pelo resto dos europeus. E nós ajudamo-los a combaterem e a morrerem, para eles nos defenderem. Essa é uma dívida que o resto da Europa vai ter para com os ucranianos

Mas acredita que pode acontecer?

A guerra é sempre uma luta pelo poder, pela conquista ou pela manutenção do poder. E isso tem de ser interpretado em várias áreas. Nas áreas da estratégia, quanto às formas de coação, eu tenho sempre a área socioeconómica, a político-diplomática, a mediática e das perceções, e finalmente a militar. Em todas as vertentes, menos na militar, o Ocidente já está mais do que envolvido. Na componente das sanções políticas e diplomáticas, nas sanções económicas, na guerra dos media, estamos envolvidos. Na componente militar, pusemos os ucranianos a combater por nós, estando nós a fornecer-lhes equipamento. E, ao mesmo tempo, a treiná-los. E com conselheiros nossos no terreno. De maneira que não se pode dizer que estamos em guerra, senão fica tudo em pânico. 

Mas estamos a sofrer as consequências da guerra. Não temos tropas nossas a combaterem e a morrerem, ainda, e espero que nunca venhamos a ter, de forma conter a guerra, mas esse papel é desempenhado pelos ucranianos, que combatem e morrem pelo resto dos europeus. E nós ajudamo-los a combaterem e a morrerem, para eles nos defenderem. Essa é uma dívida que o resto da Europa vai ter para com os ucranianos. E nós temos que os ajudar a recuperar, porque eles é que se estão a sacrificar. Nós temos apenas os custos do gasóleo e, portanto, viajamos menos. Se o preço do gás sobe, tomamos banho mais rápido. Temos de nos conter. Mas até quando? 

Há aqui um outro dado muito importante, por causa da parte psicológica. Neste momento aceitamos tudo: fechamos o gás e mais não sei o quê, vamos todos contra os russos. Se isto durar dois, três ou cinco anos, iremos nós manter esta situação, do petróleo a subir e das consequências económicas? Nós vamos ficar cansados disto. Começamos a ir para as ruas, a fazer manifestações, e os próprios governos começam a deixar cair estas medidas. A guerra cai no esquecimento e pode passar a ser um 'frozen conflict'. Como é o da Crimeia, em que morreram 14 mil pessoas nestes sete anos e nós esquecemos esse facto. De maneira que há muitos cenários possíveis. Numa guerra, sabe-se como tudo começa, nunca se sabe quando e como acaba. 

O nosso problema é que nós não temos soldados

Estará Portugal preparado militarmente para responder, no seguimento desta ideia, a uma eventual agressão que se perpetue sobre o seu território ou sobre território da NATO? Ou as nossas Forças Armadas estão longe de estar preparadas para oferecer tal resposta?

As Forças Armadas portuguesas cumprem as missões que o poder político as manda cumprir. Cumpriram na I Guerra Mundial, em Goa e em África. E têm cumprido as missões todas no pós-Guerra Fria. Têm cumprido sempre, com mais ou menos dificuldades. O nosso problema é que nós não temos soldados. É um problema estrutural. Mas os meios aéreos que temos, as nossas fragatas e os nossos submarinos, tudo isso contribui para o nosso desempenho. Há missões que nos podem ser atribuídas e para as quais podemos contribuir. Nós temos algumas capacidades terrestres, cibernéticas, de artilharia, e até alguns batalhões de infantaria. Mas são poucas. As dificuldades estruturais são muito grandes. 

Houve um desinvestimento significativo nos últimos 20 anos, na atração e na retenção de quadros, e depois no fornecimento de equipamentos. E, além do mais, nós preparámo-nos para operações de estabilização, de paz em África, nas quais damos cartas, porque apenas exigem combates ligeiros. Neste caso da Ucrânia, é preciso carros de combate, artilharia, forças pesadas. Nós temos muito pouco disso. Ainda assim, à nossa dimensão, nós podemos participar, e não fazemos má figura. Agora, temos de ter a noção dos défices estruturais e de equipamento que temos, e das missões que nos são usualmente atribuídas. Para se combater e para se fazer guerra precisamos de ter homens. 

Olhando para o caso nacional, o OE2022 estabelece um aumento de 2,5% da despesa no setor da Defesa... Um incremento deste valor é suficiente, no contexto de uma guerra na Europa e perante a atual realidade das Forças Armadas portuguesas?

Se não fosse o Presidente da República chamar à atenção, no 25 de Abril, para este desinvestimento, nós teríamos menos 800 mil euros para as Forças Armadas. Nós temos desinvestido significativamente, e mais uma vez refiro que o nosso problema é ao nível dos soldados, de quadros militares. E não precisamos de grandes equipamentos novos, precisamos apenas de manter aqueles que temos. Eu não posso é ter 30% ou 40% dos meus equipamentos sem funcionar. Mais de metade das fragatas estão paradas, os submarinos estão parados. Há muito equipamento que está parado e nós temos de por esses equipamentos a funcionar. E de ter homens para os operar. 

Mas é claro que também preciso de novos equipamentos para realizar operações com os 30 membros da NATO. O equipamento tem de estar mais ou menos ao mesmo nível e ser compatível, e temos de ter todos o mesmo treino. Porque se estiver a cooperar com checos, com búlgaros ou com polacos, temos todos de ter a mesma linguagem. Para que eles possam, claro está, emprestar-me as suas munições e eu possa emprestar-lhes outro material. Tem de ser interoperável. 

Corremos o risco, se houver um desinvestimento continuado, de qualquer dia não conseguirmos sequer fazer as missões ao mesmo nível e de ficarmos para trás. Isso vai-se colocar ao nível do diferencial tecnológico, sobretudo na Força Aérea. Se não fizermos uma atualização dos F-16 e não pensarmos já no avião que vem a seguir, como os outros países estão a fazer, depois ficamos apenas com os 'Legacy' e com os equipamentos velho, bem como com todo o ónus que isso tem: o de não participar nas operações e o encarecimento da manutenção do material. 

Na minha perspetiva, o problema não é o dinheiro que é atribuído no Orçamento do Estado, mas sim a execução desse dinheiro. Na quinta-feira foi noticiado que nós não executamos a lei. Nós temos o dinheiro e depois a lei não é executada. Ou seja, temos é de executar aquilo que temos de executar.

Nós somos um país pequeno e pobre, não podemos ser tão ambiciosos. Devemos ser tão ambiciosos como os outros, mas temos de ser realistas. Eu gostava de ter uma Forças Armadas como as norte-americanas, mas isso não é possível

E o que é que deveria ser executado, na sua perspetiva?

É muito simples. Nós temos um lei de programação militar. Nos próximos quatro anos, depois da aprovação do Orçamento do Estado, essa lei vai ser revista. Vamos redefinir as prioridades. Se eu quero comprar navios, não chego ao 'stand' e compro um navio. O navio tem de ser construído, tem de se garantir a guarnição e o treino da guarnição.  E isso leva anos. A mesma coisa com um avião. Eu encomendo um avião e ele demora cinco anos. Tem de se fazer um planeamento, não só da aquisição, mas também da atualização do equipamento. É o chamado ciclo de vida dos equipamentos. Numa fragata, o mesmo pode ser de 30 anos. Temos estas leis e o dinheiro existe. Não é todo o que gostaríamos de ter, mas se eu tenho aquele dinheiro no bolso, pelo menos esse eu tenho de executar. Eu penso que, com a revisão desta lei, vamos reatribuir ou redefinir prioridades. Mas temos de cumprir o que está na lei. Porque se nós temos o dinheiro e não o executamos, e ficamos apenas com 30% ou 40% do material operacional, não é possível atuar. 

Mas não vale a pena criticarmos. Nós somos um país pequeno e pobre, não podemos ser tão ambiciosos. Devemos ser tão ambiciosos como os outros, mas temos de ser realistas. Eu gostava de ter uma Forças Armadas como as norte-americanas, mas isso não é possível. Ter o topo do topo da tecnologia? Não é possível. Então, dentro do possível, é preciso executar. Ou seja, antes de começar a comprar equipamentos novos, tenho de me focar em pôr o que tenho a funcionar. Eu não posso ter os carros de combate parados. Temos viaturas em Santa Margarida, que já vieram do Vietname, e que atualmente são sucata. O único equipamento que substituímos nestes anos foram as G3. 

A título de exemplo, quando acabei a Academia Militar, comecei a testar as armas que só vieram a ser fornecidas ao Exército quando já eu estava na reforma. Foram 30 e tal anos de discrepância. De maneira que, assim sendo, temos algum material, mas não é para este tipo de operações, é apenas para as operações que fazemos em África ou em Timor. Agora, para uma guerra convencional, temos de ter os carros de combate a funcionar.

Tenho medo que o Putin se sinta completamente sem alternativa e parta para o apocalipse

Muito se tem falar da possibilidade da Rússia vir a recorrer à arma nuclear no contexto desta guerra na Ucrânia... No mês passado foi também lançada uma investigação sobre a possível utilização de armas químicas na Ucrânia, por parte das forças russas... Numa perspetiva do armamento que o exército de Moscovo tem ao ser dispor, quão longe julga que o Kremlin considera ir?

Uma das coisas que me preocupa muito no discurso do Kremlin é o nuclear. Porque desde o emprego do mesmo, pelos Estados Unidos, em Hiroshima e Nagasaki, o mesmo nunca mais foi empregue. Houve depois um crescendo significativo dos arsenais, que também depois da queda do Muro de Berlim, se foi renegociando para haver uma redução desses arsenais. E considero importante manter esses tratados em vigor. 

Só que Putin e Lavrov vieram falar nisso. E isso é muito perigoso. E, na quarta-feira, em Kaliningrado, que é um enclave entre a Polónia e a Lituânia e onde existem armas com ogivas nucleares, os russos já fizeram ensaios e exercícios. Nós temos de levar a sério esta ameaça, porque a base da dissuasão é essa mesmo, a credibilidade. E a verdade é que eles têm o maior arsenal do mundo. Se nós não possibilitarmos uma saída airosa para a Rússia, em que ele possa invocar alguma espécie de vitória, e o encurralamos... Um animal encurralado reage muito mal e eu tenho medo disso. Tenho medo que o Putin se sinta completamente sem alternativa e parta para o apocalipse. 

Podem argumentar que só vai ser usado sobre Kyiv ou Mariupol. Mas isso é apenas no começo. Eu espero que nós não entremos nessa loucura, mas temos de ter isso em consideração. Porque, aí, será o apocalipse. Podemos pensar que é apenas uma medida tática, só aplicada sobre uma cidade. Mas o emprego das armas nucleares tem sempre a finalidade de passar uma mensagem. Se eles a usarem, significa que estão encurralados. De maneira que é preciso levar essas ameaças a sério e, ao mesmo tempo, mostrar-lhes que somos capazes de reagir, para eles se conterem. É esta a base da dissuasão. 

Mas, mais do que isso, são as armas sobre as quais não há controlo e sobre as quais não existe um regime de controlo sobre a sua proliferação. Que são os mísseis hipersónicos, sobre os quais nós não temos qualquer capacidade de defesa. Como é que nós travamos isso? Tenho muito receio. 

Esta invasão russa sobre a Ucrânia levou a Suécia e a Finlândia a considerarem seriamente uma candidatura à NATO, que pode até mesmo vir a ser formalizada já em junho... Acredita que essa adesão vai mesmo avançar? Que consequências tal adesão poderia ter no contexto desta guerra?

Eu acredito que essa adesão vai avançar. Isto porque, para já, são países da União Europeia. Eles quiseram, até agora, manter-se neutrais porque tinham acordos e garantias de segurança por parte da Rússia e da NATO. Agora já chegaram à conclusão de que a Rússia não é uma vizinha credível. Ou que, pelo menos, diz uma coisa e pode, contrariamente, ter outra forma de atuação. E, então, é melhor prevenir. E têm todas as condições para aderir, pois eles já participam com a NATO no 'Partnership for Peace' (PfP), já fazem exercícios connosco, já partilham esta parte da logística e da doutrina. Só não são membros efetivos. 

Dizem que este processo vai ser muito rápido, mas eu acho que isso é que é mau. Eles têm de seguir o percurso normal, que é o 'Membership Action Plan' (MAP). Seguindo aqueles procedimentos, claro que será mais rápido do que se fosse o Montenegro ou a Sérvia. Porque são países que estão já preparados para integrar a Aliança. Mas as suas populações também têm de o querer, não apenas os poderes políticos. Se as suas populações e os poderes políticos o quiserem, eu acho que eles serão mais do que bem-acolhidos. Mas essa é uma opção deles. Essa é a vantagem dos mundos livres: nós temos a opção de escolher e ninguém nos pode impedir de o fazer. E eu tenho apenas de defender os meus ideais. Podem dizer que, se isso acontecer, anexam ou invadem os países. Mas eles assumem esse risco. 

O problema é que, a partir do momento em que estes países aderem, em todo o processo negocial existe um lapso de tempo, mais curto ou mais longo, em que as garantias de segurança que a NATO pode dar não estão ainda em vigor. A NATO tem de encontrar um mecanismo legal que confere a estes países, já no processo de adesão, as mesmas garantias de segurança detidas pelos membros. Isso é que é muito complexo, porque este é um processo de decisão por consenso. Esse é o único receio.

Se nós mostrarmos medo, os russos só param em Berlim

E essa eventual adesão pode asseverar a guerra?

Com o desgaste significativo que os russos estão a ter a sul, na Ucrânia, como é que depois deslocam forças para o norte, para fazer um disparate qualquer na Suécia ou na Finlândia? Ou até mesmo ataques submarinos ou com mísseis? Aí é que entraria o nuclear. Mas se nós não mostrarmos força, não paramos os russos. De maneira que os suecos e os finlandeses é que vão correr esse risco. E eles querem fazê-lo porque já chegaram à conclusão de que o seu vizinho não é fiável. 

A Finlândia, que perdeu 7% ou 8% do seu território pela altura do Tratado de Paz com a Rússia, tem uma fronteira de cerca de 1.000 quilómetros. Já perceberam que este é um vizinho que pode fazer-lhes o mesmo a sul, então assumem agora esta opção de integrar a NATO. São livres para o fazer e nós somos livres de os aceitar. É um risco que eles correm e nós temos é de dar-lhes garantias de que serão bem recebidos e de que os vamos proteger ao abrigo do Artigo 5.º. Essa é a vantagem dos mundos livres e se nós mostrarmos medo, os russos só param em Berlim. 

Fim da guerra? Há variadíssimos cenários que se podem colocar, mas qualquer um deles é péssimo para a população da Ucrânia

Numa ótica de balanço, que fim podemos esperar para esta guerra e quando pode ele acontecer? Tem a Ucrânia condições para sair 'vencedora'?

Isto tudo mudou na terça-feira passada, com aquela reunião em Ramstein (Alemanha), na qual a Europa e os Estados Unidos, e mais uns quantos aliados, decidiram desgastar o mais possível a Rússia. De maneira que há aqui vários cenários. 

Eu não acredito na capitulação de um ou de outro. Era um cenário possível, mas nenhum deles vai fazer isso. O outro cenário possível é o de um acordo para a cedência de territórios por parte da Ucrânia, mas cada vez menos me parece que ela vá fazer isso. Ao princípio pensei que fariam como a Finlândia, dando por adquirido, em definitivo, a perda da Crimeia e do Donbass. A Rússia pode até prolongar o território até ao Rio Dniepre e depois negociar essa metade - ou, então, ficar só com o Donbass, mas não sei como vai ser. 

Um último cenário, que seria o pior, passaria por um conflito congelado, prolongado no tempo. Contido, naquela zona, entre Dnipro, Lugansk e Mariupol, na qual viveríamos como temos vivido desde 2014. De vez em quando lembramo-nos de que a Ucrânia existe e decidimos ajudar a Ucrânia. Este cenário pode prolongar-se muito no tempo. 

Há variadíssimos cenários que se podem colocar, mas qualquer um deles é péssimo para a população da Ucrânia. Porque eles perderam os seus bens, os seus familiares, e não sabem quando é que podem voltar, em que condições podem fazê-lo e qual será o seu futuro - se a falar russo e a usar o rublo, ou se enquanto membros da União Europeia e da NATO. É tudo uma grande incógnita. 

São muitos os cenários e um deles pode passar até por um forçar da capitulação. Mas, como digo, num contexto de uma guerra, sabemos quando ela começa, nunca sabemos como é que vai terminar, nem quando e em que condições. E os inocentes é que sofrem sempre com isto. 

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