"Estou a caminho do último reduto que Cabo Verde tem e onde as pessoas ainda podem apreciar, ter uma ideia do que era a vida marinha", explicou o português, de 56 anos, em conversa com a Lusa em São Nicolau, ilha onde se instalou este ano, com o seu centro de mergulho, depois de mais de duas décadas a mergulhar no arquipélago.
Profissional de mergulho desde 1989, começou o negócio em Portugal e abriu o primeiro centro de mergulho de Cabo Verde em 2009, em São Vicente, onde chegou a receber num único ano mais de mil mergulhadores, de vários países, à procura da observação da vida marinha.
Quando a qualidade no fundo do mar começou a ficar em causa, mudou-se, em 2014, para a ilha de Santo Antão, até que a "excessiva" atividade de pesca também ali afetou a vida marinha na sua observação junto à costa.
Há cerca de dois meses mudou o seu centro de mergulho novamente e criou o "São Nicolau Diving", naquela ilha, nos arredores da localidade de Tarrafal de São Nicolau, que descreve como o último santuário para observação da vida marinha em Cabo Verde.
"O que tenho andado à procura é sempre dos melhores locais, com melhor qualidade (...) A qualidade do mergulho, o estado da vida marinha, nas outras ilhas, tem-se vindo a degradar imenso, imenso, imenso. Tem-se perdido muita, muita biomassa, muita quantidade da vida marinha", alertou.
Para António José Garcias, a "sobre-exploração dos recursos" em praticamente todas as ilhas, bem como "as formas de pesca utilizadas", que descreve como "extremamente predatórias", ajudam a explicar o cenário: "Aquilo que toda a gente tem vindo a observar é que a utilização de redes, a utilização de redes com recurso a equipamentos de mergulho, são extremamente danosas para os fundos marinhos - que nem permitem muito a utilização de redes, porque os corais prendem as redes. Para as soltarem partem os corais, ficam restos de redes no fundo".
Garante que um cenário de "degradação enormíssimo" no fundo do mar, junto à costa, é o que encontra praticamente em todas as ilhas, o que o levou a mudar-se para São Nicolau, talvez a última aposta que faz em Cabo Verde.
"Eu venho para Cabo Verde há mais de 20 anos e tenho observado de uma forma muito, muito, rápida, a enorme degradação dos fundos marinhos e aqui São Nicolau não vai escapar porque estamos a ver neste momento os barcos de pesca de ilhas maiores a virem para aqui, porque já não têm nada para pescar nas outras ilhas", desabafou.
A preocupação de Garcias prende-se também com as populações das ilhas que ainda subsistem da pesca, que praticam de forma sustentável, e que enfrentam "cercos imensos" no mar, em que as embarcações "recolhem tudo", com ou sem valor comercial.
"Não fica nada", afirmou, preocupado com o futuro dessas comunidades, que têm na pesca, por vezes, o único sustento.
A situação, antevê, vai deixar os pescadores locais sem recursos, apontando que já hoje "todos reconhecem" que "claramente há menos peixe" em Cabo Verde.
Numa mensagem alusiva ao Dia Mundial dos Oceanos, em 08 de junho, o ministro do Mar, Abraão Vicente, anunciou que Cabo Verde pretende reservar "pelo menos 30% das suas águas para área de não pesca, ficando apenas para preservação das suas espécies".
"É uma questão que a mim me aflige muito, e não é só pelo meu negócio (...) Quando isto não tiver nada eu vou-me embora, porque não tenho nada para mostrar aos meus clientes, mas eu tenho a possibilidade de ir fazer outra coisa para outro país qualquer. E os que cá ficam? Vão viver do quê, quem está ligado ao mar?", questionou António Garcias, apelando a uma aposta na reconversão.
"Explicar às pessoas a importância da riqueza que nós temos em Cabo Verde. Viajei muito pelo mundo e mergulhei pelo mundo inteiro. E Cabo Verde tinha - ainda tem, muito pouco - recursos marinhos e espetáculos de vida marinha únicos no mundo. Isso é um património sem preço", apontou.
Por isso, defende que é a altura de "dizer às pessoas a importância" deste património, e sobretudo explicar como "podem transformar isso numa forma de ter retorno financeiro, sem ser através da extração".
"Obviamente que sem qualquer conotação política, mas o que eu vejo é que continua a existir uma aposta muito grande na extração dos recursos marinhos aqui em Cabo Verde, quando nitidamente estamos a chegar ao fim. E toda a gente sabe disso. E não vejo a aposta na reconversão", observou.
Afirma que seguindo o exemplo de outros países de realidade semelhante, reconverter os barcos e os pecadores de Cabo Verde para atividades turísticas permitiria um "rendimento muito superior", ao atrair um turismo específico e com outro poder de compra.
A solução, defende, passaria por seguir o exemplo do "esforço coletivo" e "notório" que Cabo Vede desenvolveu nos últimos anos na proteção das tartarugas marinhas, que passaram de um cenário de ameaça para um dos principais pontos de desova mundiais, no arquipélago, com várias atividades turísticas à sua volta a gerar rendimento para a população.
"Cabo Verde tinha uma quantidade de tubarões fora do vulgar, com muitas espécies, uma coisa que praticamente acabou. Hoje em dia, para observarmos um tubarão, temos muita dificuldade", desabafou.
Com uma superfície de 4.033 quilómetros quadrados (km2), o arquipélago de Cabo Verde está espalhado por uma área de aproximadamente 87 milhas (140 km) de raio, com cerca de 1.000 km de costa e uma área marítima de responsabilidade nacional de 734.265 km2, que inclui as águas arquipelágicas, o mar territorial, a zona contígua e a Zona Económica Exclusiva.
Cabo Verde contava no final de 2021 com 3.125 pescadores artesanais e 1.881 vendedores de peixe, além de 1.434 barcos artesanais a motor e 127 embarcações de pesca industriais e semi-industriais, de acordo com os dados ainda provisórios do V Recenseamento Geral das Pescas. O arquipélago contava no mesmo período com 1.403 armadores de pesca, 36 embarcações de pesca desportiva e 151 infraestruturas de apoio.
Os dados apontam ainda que desde 2011, quando foi realizado o levantamento anterior em Cabo Verde, os recursos humanos no setor das pescas aumentaram em mais de 1.500 trabalhadores.
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