Este ano, 76 crianças guineenses já foram retiradas das ruas de Dacar
Na sede da Associação dos Amigos da Criança (AMIC) em Gabu, nordeste da Guiné-Bissau, o barulho é ensurdecedor com 23 crianças a tocarem tambor, a jogarem à bola ou simplesmente a rirem-se das brincadeiras dos outros.
© Reuters
Mundo Dacar
Nos quartos, as camas estão feitas e as malas arrumadas nos armários. O corredor da casa é pista para corridas entre o pátio da frente e a sala das traseiras, para troca de sorrisos e cumplicidades.
Estas crianças, 21 meninos e duas meninas, são as últimas que a AMIC resgatou das ruas de Dacar, capital do Senegal, onde se encontravam a mendigar dinheiro. Um trabalho que realiza desde 2005 e que já fez regressar ao país, desde então, três mil crianças.
"O regresso deste efetivo de 23 crianças veio engrossar o leque de crianças resgatadas no Senegal. No ano passado conseguimos fazer o regresso de 150 crianças e este ano já estamos em 76 crianças", afirma à agência Lusa o secretário-geral da AMIC, Laudolino Medina.
Agora, a associação vai analisar as condições de reintegração destas crianças nas famílias. Todas as crianças são acompanhadas, as famílias apoiadas e sistematicamente avaliadas para não voltarem a enviar os filhos para fora do país.
Estas crianças são conhecidas como "talibés", estudantes do livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão, e existem em quase toda a África Ocidental.
O problema é que a maior parte destas crianças são entregues a falsos mestres corânicos, que põem as crianças a mendigar nas ruas, as obrigam a trazer dinheiro e quando não trazem são espancadas e sujeitas a outros maus-tratos.
"Muitas famílias mesmo tendo informação sobre as situações de vulnerabilidade em que as crianças se encontram no Senegal teimam em mandá-las, porque acreditam que o bom conhecimento se adquire fora e com sacrifício. E muitas famílias dizem que se a criança morrer nesse processo vai para a glória e a família também. Esta é a mentalidade das nossas comunidades", explica Laudolino Medina.
O problema também subsiste porque na Guiné-Bissau as escolas corânicas não funcionam e as famílias as enviam porque é menos uma boca para alimentar.
"Há falsos mestres corânicos que chegam durante as grandes festas muçulmanas, treinam crianças a citar os versos corânicos, e depois as famílias pedem aos mestres que levem os filhos e esses acabam por deixar as comunidades com muitas crianças. Há outros casos em que crianças que foram com esses falsos mestres corânicos servem agora de intermediários" para atrair mais crianças, diz o secretário-geral da AMIC.
Questionado sobre se há um aproveitamento da religião muçulmana para traficar estas crianças, Laudolino Medina considera que sim.
"A aprendizagem corânica é positiva, é um valor, e os pais têm o direito legítimo de orientar os filhos, o que não é normal nisso é colocar os filhos na rua a mendigar, a estender as mãos a um estranho, e ter de trazer imperativamente uma soma de dinheiro, caso contrário, é sujeito a maus-tratos", afirma.
Para Laudolino Medina, o mal não está na aprendizagem do Alcorão, mas na "exploração da mão de obra infantil".
Questionado pela Lusa sobre a razão pela qual o Estado não pune os pais das crianças, já que existe lei que criminaliza o tráfico de seres humanos, Laudolino Medina explica que até hoje ninguém foi presente à justiça, julgado e condenado.
"A justiça é uma das nossas grandes preocupações devido à morosidade e impunidade", diz.
Sobre a razão pela qual o fenómeno atinge sobretudo Gabu e Bafatá, Laudolino Medina explica que as duas regiões são fronteiriças, principalmente Gabu, que está muito próxima da fronteira com o Senegal e a Guiné-Conacri.
"As etnias que estão nestas duas regiões, além de serem muçulmanas têm muitas afinidades com as comunidades do outro lado da fronteira. Há fulas e mandingas em ambos os lados da fronteira", diz.
Mas, a Guiné-Bissau tem agora regras mais rígidas para a saída de menores do país, e, segundo Laudolino Medina o problema não reside nas passagens controladas pelas autoridades.
"As fronteiras são muito vulneráveis. Há casas que estão na Guiné-Bissau e os anexos no Senegal. Há famílias que uma parte está na Guiné-Bissau e a outra na Guiné-Conacri. É difícil de controlar", afirma.
A AMIC tem nos imames da Guiné-Bissau "excelentes colaboradores" e têm tido um papel preponderante, através da sensibilização, alertando para a existência de mais casos. São também quem muitas vezes avisa para a possibilidade de saída de crianças do país.
A AMIC iniciou recentemente com outras organizações não-governamentais um projeto de três anos, financiado pela União Europeia, para a prevenção do radicalismo e extremismo violento, que está a ser desenvolvido nas regiões de Gabu, Bafatá e Oio.
"Temos de trabalhar com as nossas crianças para evitar o pior e nada melhor do que a educação. Até recentemente havia apenas em Bafatá e Gabu um único liceu de Estado, agora é que já há liceus privados. Quando a população é abandonada, não há serviços sociais de base, não há educação, não há escola, o que podemos esperar das pessoas é a radicalização", afirma.
Por isso, diz, "o melhor instrumento para prevenir tudo isto que paira sobre o céu da Guiné-Bissau é trabalhar fortemente na área da educação". "Estamos a trabalhar em toda a rede nordeste, a dar respostas, e também a trabalhar com as comunidades", afirma.
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