Durante o último inverno, a justiça da Rússia decretou a dissolução do organismo por alegadas violações da controversa lei sobre os "agentes estrangeiros", que levou a uma vaga de condenações com críticas e protestos no estrangeiro.
A condenação do grupo Memorial, encarado como um pilar da sociedade civil russa e símbolo da democratização da década de 90, após a queda da União Soviética, ocorreu poucas semanas antes da última ofensiva contra a Ucrânia, no passado mês de fevereiro.
Mais recentemente, o Kremlin aumentou a repressão contra os membros do grupo que criticam a campanha militar em território ucraniano, ameaçando-os com pesadas penas de prisão efetiva.
Fundada em 1989, a organização não-governamental continuou a desafiar o regime e foi alvo de represálias, incluindo assassinatos, de acordo com a agência France Presse.
Dos crimes estalinistas às campanhas de terror na Chechénia, a organização, criada por dissidentes soviéticos - entre os quais o Prémio Nobel da Paz, Andrei Sakharov, ganhou prestígio pelo rigor das investigações, que visaram também os grupos paramilitares russos atualmente destacados na Síria.
Paralelamente, a Memorial mantém listas de presos políticos, garante assistência aos reclusos, aos emigrantes e aos elementos das minorias sexuais perseguidos na Rússia.
Foi sobretudo pelo trabalho que realizou na Chechénia, república do Cáucaso onde se travaram duas guerras, que a organização não-governamental (ONG) se fez conhecer no estrangeiro, recebendo o Prémio Shakarov do Parlamento Europeu, em 2009.
Durante os dois conflitos na Chechénia, os colaboradores da ONG mantiveram-se no terreno, documentando as ações dos soldados russos e dos apoiantes locais.
"O poder ainda hoje nos detesta por isso", disse à France Presse (AFP) em novembro do ano passado a historiadora Irina Chtcherbakova, uma das fundadoras da organização.
Em 2009, a responsável da ONG na Chechénia, Natalia Estemirova, foi raptada e executada com um tiro na cabeça, em Grozny.
O dirigente tchetcheno, Ramzan Kadyrov, um apoiante do ataque do Kremlin contra a Ucrânia, foi acusado de responsabilidade no assassinato de Estimorova e apontado como "inimigo do povo" pelos membros da ONG.
Em 2018, o responsável local da Memorial em Grozny, Oioub Titiev, foi acusado num caso de estupefacientes, que segundo a ONG foi orquestrado pelas autoridades, para acabar definitivamente as atividades da Memorial em território tchetcheno.
De acordo com os fundadores, a Memorial iniciou atividades muito antes da criação oficial do organismo, em 1989.
O objetivo do grupo era identificar e prestar homenagem às milhares de vítimas esquecidas da repressão soviética e do Gulag (Administração do Sistema de Campos de Prisioneiros da União Soviética).
Nas décadas de 60 e 70 do século XX, vários ativistas começaram a recolher de forma clandestina informações sobre os crimes soviéticos mantendo as ações de forma aberta durante o período da Perestroika, na década de 80, altura em que o país foi dirigido por Mikhail Gorbachev.
"A Memorial é herdeira de um movimento e é uma organização que não deixou de gritar bem alto que seria um perigo deixar desaparecer da consciência coletiva a memória da ditadura", disse a historiadora, Irina Chtcherbakova.
Após a chegada de Vladimir Putin ao poder, no ano 2000, as investigações da ONG tornaram-se mais difíceis de levar a cabo porque o Kremlin passou a defender uma interpretação da História que minimiza os crimes da época soviética.
Durante o processo de dissolução da ONG, o procurador russo Alexei Jafiarov, acusou a Memorial de "criar uma imagem falsa e mentirosa da URSS, transformando-a num Estado 'terrorista'" ao mesmo tempo que "reabilitava os crimes nazis".
A Memorial tem denunciado outras formas de pressão contra si.
Um dos historiadores que investiga as purgas do estalinismo na Carélia (noroeste da Rússia), Yuri Dmitriev, foi condenado no passado mês de dezembro a 15 anos de prisão num processo de "violência sexual", uma acusação que diz ser falsa.
No passado mês de abril, após o início da campanha militar contra a Ucrânia, Oleg Orlov, um dos dirigentes históricos da Memorial, disse à AFP que estava a viver "o período mais sombrio" de sempre.
"O que se passa agora não é comparável ao que se passava antes (...) um país deita abaixo o sistema totalitário mas regressa ao totalitarismo", disse Orlov, que faz parte da ONG desde a década de 80 e é autor de várias investigações sobre o envolvimento militar soviético no Afeganistão (1979-1989).
O Prémio Nobel da Paz 2022 foi hoje atribuído a Ales Bialiatski, da Bielorrússia, e às organizações de defesa dos direitos humanos Memorial, da Rússia, e Centro de Liberdades Civis, da Ucrânia, anunciou o Comité Nobel Norueguês.
Ales Bialiatski, 60 anos, atualmente preso na Bielorrússia, fundou a organização Viasna (Primavera) em 1996, para ajudar presos políticos e as suas famílias, na sequência da repressão do regime do Presidente Alexander Lukashenko.
O Centro de Liberdades Civis foi criado em Kiev, em 2007, para fazer avançar os direitos humanos e a democracia na Ucrânia.
Leia Também: Comité Nobel norueguês apela à Bielorrússia para libertar Ales Beliatski