Humor é "armamento pesado" na propaganda ucraniana, diz analista

Kyiv lançou-se ao desconhecido e introduziu humor na comunicação da guerra, estratégia arriscada e contrastante com a brutalidade do conflito, mas bem-sucedida e planeada ao ínfimo detalhe, disse à Lusa um investigador na Universidade de Oxford.

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© Presidência da Ucrânia

Lusa
09/10/2022 09:32 ‧ 09/10/2022 por Lusa

Mundo

Guerra na Ucrânia

Os 'memes', as fotografias de gatos para enternecer o coração ou as constantes referências à cultura pop fazem parte do dia-a-dia no Twitter e em outras redes sociais, mas quase nunca têm palco quando o assunto é guerra, ainda menos quando são utilizados como "munições" por instituições governamentais.

Mas é mesmo esse o "armamento pesado" que o Ministério da Defesa ucraniano e as Forças Armadas empenharam na web desde 24 de fevereiro, dia em que o regime de Vladimir Putin iniciou a invasão do país.

Se vários analistas concluíram que Putin estava há anos a planear esta guerra, também a estratégia online de Kyiv estava há muito delineada, explicou à Lusa Corneliu Bjola, professor de estudos diplomáticos na St. Cross College: "Os ucranianos não começaram a construir esta rede online no dia 12 ou 21 de fevereiro. Dmytro Kuleba, o ministro dos Negócios Estrangeiros, foi ministro da Comunicação Estratégica entre 2014 e 2016, depois da invasão da Crimeia. Começaram, naquela altura e com a assistência do Reino Unido e dos Estados Unidos, a construí-la."

Kuleba foi inclusive convidado, a 21 de setembro, do programa "The Late Night Show with Stephen Colbert", algo que de acordo com Corneliu Bjola demonstra uma estratégia de comunicação de guerra completamente diferente.

"Era de esperar que um ministro falasse para um grande órgão de comunicação internacional, mas [Kuleba] preferiu um programa de um humorista nos Estados Unidos", sustentou.

"É a primeira vez que vejo o humor a ser utilizado estrategicamente e tão bem por um país em período de guerra. Não é algo natural, não é necessariamente a primeira coisa que nos vem à cabeça. A guerra é brutal e, obviamente, uma coisa não liga com a outra, mas os ucranianos conseguiram fazer essa conexão até hoje e muito bem", e a essa capacidade foi "construída ao longo dos anos".

O objetivo nesta "frente" é tripartido: "neutralizar as mensagens ameaçadoras" que provêm do Kremlin, através da chacota dos fracassos das tropas russas no terreno; fortalecer a moral dos militares e civis ucranianos, que foi "muito importante no início da guerra"; e criar laços de proximidade como Ocidente.

"Há um claro foco nos públicos internacionais", explicou o investigador do Departamento de Desenvolvimento Internacional em Oxford, já que para o Governo ucraniano o sucesso na guerra está dependente do interesse e atenção que os públicos ocidentais, nomeadamente o norte-americano, mantenham. Se esmorecer a atenção, também pode esmorecer o apoio que está a ser prestado.

"No início houve aquele 'meme' dos tratores que rebocavam tanques russos [abandonados ou parcialmente destruídos]. O exército russo não estava, de facto, a ter um bom desempenho e esse 'meme' ganhou muita tração. De uma maneira humorística, captou o estado dos militares russos", explicitou.

Contudo, "não se pode utilizar o 'meme' dos tratores sempre, as pessoas fartam-se", por isso, é preciso "ser criativo".

Dia 18 de agosto, as Forças de Defesa Territorial da Ucrânia publicam no Twitter um "trailer" para "No Country for Russian Soldiers", uma paródia do filme de Hollywood de 2007 "No Country For Old Men". Uns dias mais tarde, a mesma página faz um tweet com fotografias de panfletos com o rosto de Putin com o bigode de Hitler que estavam a ser deixados em automóveis. Na legenda podia ler-se "tal como fumar, ter um passaporte russo tem implicações para a saúde".

Há ainda outros exemplos de 'memes', como o de um mosaico de Captcha (uma ferramenta de verificação de autenticidade) onde é pedido ao utilizador para identificar os aviões em várias imagens e comprovar que "não se é um robô", mas apenas há imagens de aeronaves russas destruídas pelas tropas ucranianas. Uma imagem de "Putin esqueleto" a ilustrar o tempo que vai ter de aguardar para conquistar o país ou fotografias de soldados com gatos bebés acompanhadas pela legenda "são mais pessoas de cães ou de gatos?" fazem parte do "engagement" que Kyiv quer manter nas redes.

Do topo da cadeia, o Ministério da Defesa, até à base, os militares, há um esforço conjunto para ridicularizar os falhanços da Rússia de uma maneira cativante para os públicos ocidentais para "reduzir a distância cognitiva" entre a Ucrânia, um país que pertenceu à União Soviética, e o Ocidente: "Transmite a ideia de que a Ucrânia é uma nação europeia, que vivem no mesmo espaço cultural. O humor conseguiu criar uma espécie de uma ponte."

Seria de esperar que Volodymyr Zelensky, o humorista que chegou a Presidente, estivesse envolvido nesta estratégia, mas "não faz piadas", já que "tem um papel que é ser líder em guerra".

"Acredito que ele se contenha, porque gosta de fazer piadas, mas fá-lo porque tem de proteger uma imagem que nenhum outro governante tem de manter", acrescentou Corneliu Bjola.

Mas esta estratégia acarreta riscos, por exemplo, a extravasação. O professor na St. Cross College constatou que a Ucrânia não ridiculariza os aliados de Moscovo, para manter as atenções focadas no invasor e porque Kyiv percebe o impacto que humor a mais possa ter nas relações diplomáticas, das quais depende mais hoje para manter a pressão sobre a Rússia.

"É uma arte utilizar o humor de uma maneira que não crie problemas de reputação às instituições", comentou.

Parar de "fazer piadas" também não é algo que se possa fazer, explicou Corneliu Bjola, por poder "transferir implicitamente falta de confiança ao público", que pode pensar: "Os ucranianos deixaram de fazer piadas, estará assim tão mau?".

Há uma "linha muito fina" que não se pode cruzar, mas "até hoje não houve retaliação" dos cibernautas, muito menos de Moscovo que assenta a sua estratégia de comunicação "em fazer com que os outros tenham medo".

"É muito difícil introduzir humor neste contexto, porque se queremos que alguém tenha medo de nós, não podemos dizer piadas, diluem a nossa posição. Olhem para Medvedev, que está quase todos os dias a ameaçar o mundo com armas nucleares e o Armagedão nuclear. Ele não faz piadas, assim como Putin", argumentou.

As publicações humorísticas desaparecem durante algum tempo quando há notícias que acentuam a tragédia da guerra, como, recentemente, a morte de pelo menos 25 pessoas em Zaporijia, na sexta-feira, durante um bombardeamento atribuído à Rússia.

O humor tem-se adaptado às diferentes fases da guerra e mais recentemente têm surgido 'memes' com uma imagem dos dragões em CGI da aclamada série da HBO "Game of Thrones" com a legenda "A propaganda russa sobre a supremacia militar", e outra do boneco disforme que é mais tarde animado por computador e onde se lê "a realidade do poderia militar russo", aludindo aos sucessivos recuos das tropas russas, por vezes por falta de equipamentos.

"Vamos ver o que acontece nas próximas semanas, porque a situação deverá degradar-se dos dois lados", concluiu Corneliu Bjola, pelo que é incerto que a estratégia de comunicação inédita lançada pela Ucrânia se mantenha se houver um novo revés no conflito.

Leia Também: Rússia considera terrorista reação de Kyiv a explosão na ponte da Crimeia

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