Com o Mundial de Futebol no Qatar perto do fim, as autoridades belgas e italianas apanharam de surpresa a União Europeia e detiveram uma vice-presidente do Parlamento Europeu (PE), por suspeitas de corrupção envolvendo o regime que tem acolhido a competição debaixo de muitas críticas.
Eva Kaili foi detida juntamente com outras seis pessoas, todas ligadas a um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro pelo Qatar, numa tentativa de lóbi do regime para melhorar a imagem do país junto das autoridades europeias.
Esta segunda-feira, a Autoridade de Combate ao Branqueamento de Capitais grega confiscou os bens (imóveis, contas bancárias, empresas) da vice-presidente e dos seus familiares mais próximos.
Vários especialistas e órgãos de comunicação social têm vincado a natureza inédita do escândalo. O diretor da Transparência Internacional disse à France24 que este é "o caso mais flagrante de alegada corrupção que o Parlamento Europeu viu em muitos anos".
Mas, afinal, o que está em causa? E quem é Eva Kaili?
Os rostos do escândalo
Na passada sexta-feira, começaram a surgir as primeiras notícias sobre as várias buscas domiciliárias e detenções feitas em Bruxelas e em Itália contra autoridades da União Europeia, avançados por meios de comunicação belgas, nomeadamente pelo jornal Le Soir e pela revista Knack.
Na base das detenções e das buscas está uma investigação a um alegado caso de corrupção, organização criminosa e branqueamento de capitais pela justiça belga. As autoridades suspeitam que o Qatar pagou quantias avultadas a pessoas em posições políticas relevantes, de modo a influenciar decisões na União Europeia.
No total, foram detidas seis pessoas. Além de Eva Kaili, foi detido também o seu companheiro, Francesco Giorgi, que é colaborador ligado ao Partido Socialista Europeu (PSE), grupo ao qual Eve Kaili pertence. Giorgi é também fundador da organização não-governamental Fight Impunity, que promove a "responsabilização como um pilar central da arquitetura da justiça internacional", segundo o site da organização.
European Parliament corruption case: The partner of Eva Kaili, Francesco Giorgi, was also detained by Belgian police after being monitored for several months, is an expert on human rights and—wait for it—is the founder of Fight Impunity organization. pic.twitter.com/hNVrjrmDtc
— Theresa Fallon (@TheresaAFallon) December 11, 2022
O presidente da Fight Impunity, Pier Antonio Panzeri, também do PSE, foi detido durante a manhã. Ao final do dia, a mulher e a filha foram também detidas pela polícia italiana. Segundo um mandado de captura citado pelo POLITICO, Panzeri foi acusado de "intervir politicamente com membros do Parlamento Europeu para o benefício do Qatar e de Marrocos".
Depois foi a vez de Niccolò Figà-Talamanca, que foi detido durante a noite. Figà-Talamanca é o diretor de outra ONG, a No Peace Without Justice, que se foca em promover direitos humanos e democracia no Médio Oriente e Norte de África. A ONG tem a mesma morada que a Fight Impunity, apesar de estar oficialmente sediada em Nova Iorque e Roma. Vários membros da direção da No Peace Without Justice, incluindo o antigo primeiro-ministro francês Bernard Cazeneuve e o antigo comissário europeu para as migrações Dimitris Avramopoulos demitiram-se na sequência da detenção.
After I read about the ongoing investigation against Panzeri on Friday evening, I immediately resigned, on principle, Fight Impunity’s Honorary Advisory Board, along with @FedericaMog & @BCazeneuve.
— Dimitris Avramopoulos (@Avramopoulos) December 11, 2022
No âmbito da investigação foi ainda detido Luca Visentini, que em novembro foi nomeado secretário-geral da Confederação Sindical Internacional.
No domingo, quatro dos detidos foram formalmente acusados e colocados em prisão preventiva (incluindo Eva Kaili).
A prova de amor ao Qatar que deixou um sabor amargo na UE
A 21 de novembro, Eva Kaili subiu ao pódio do Parlamento Europeu para falar sobre os direitos laborais no Qatar. Enquanto o país estava a ser criticado por todo o mundo pela forma como tratou os trabalhadores durante as obras para o Mundial - nas quais, segundo uma investigação do The Guardian, terão morrido cerca de 6.500 trabalhadores - e pelas paupérrimas condições em que habitam os migrantes, além da opressão de pessoas LGBTQ+, Kaili deu um discurso que surpreendeu muitos.
"O Qatar é a prova de como a diplomacia do desporto pode conseguir uma transformação histórica de um país com reformas que inspiram o mundo árabe. Eu própria digo que o Qatar é líder nos direitos laborais", afirmou a política grega.
Kaili acrescentou ainda que "apesar dos desafios, que levam até as empresas europeias a negar-se a aplicar essas leis, eles [o Qatar] estão comprometidos com uma visão por opção e estão abertos ao mundo".
As palavras de uma das 14 vice-presidentes do Parlamento Europeu deixou muitos chocados. Se é verdade que muitos políticos europeus desvalorizaram as violações de direitos humanos do Qatar em prol do Mundial de Futebol (nomeadamente Marcelo Rebelo de Sousa e Olaf Scholz, chanceler da Alemanha), poucos tomaram uma atitude tão congratulatória sobre o regime.
De estrela de TV, a vice-presidente, a demitida de todas as funções
Eva Kaili, de 44 anos, começou a sua carreira como uma glamorosa apresentadora de televisão na Grécia, tornando-se numa das figuras mais reconhecidas do país. Kaili foi eleita pela primeira vez em 2007 para o parlamento grego pelo PASOK, o partido social-democrata de esquerda centrista do país, e está desde 2014 no Parlamento Europeu. Em janeiro, foi eleita vice-presidente.
A política grega é uma das representantes da União Europeia no Médio Oriente, e tem sido nessa categoria que tem elogiado muito o Qatar como um "pioneiro dos direitos humanos" na região. Enquanto o resto do Parlamento Europeu condenou as violações do país aos direitos humanos dos trabalhadores e de minorias, Kaili continuou a promover a imagem do regime que, este ano, acolhe o Mundial de Futebol.
E, depois de Ursula von der Leyen e das principais autoridades europeias terem recusado convites para ir ao Qatar assistir às cerimónias do Mundial, Kaili foi de livre vontade, apresentando-se como uma embaixadora europeia.
A investigação e a detenção acabaram por manchar a reputação de Eva Kaili. Logo após o caso surgir, a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, destituiu a sua vice-presidente de todas as suas funções, incluindo a representação no Médio Oriente. O PSE suspendeu-a como eurodeputado e, na Grécia, o PASOK não esperou pelo final de sexta-feira para suspendê-la também do partido.
Our @Europarl_EN stands firmly against corruption.
— Roberta Metsola (@EP_President) December 10, 2022
At this stage, we cannot comment on any ongoing investigations except to confirm that we have & will cooperate fully with all relevant law enforcement & judicial authorities.
We'll do all we can to assist the course of justice.
Segundo contou uma fonte da justiça belga à France-Presse, Eva Kaili foi detida com um "saco de ingressos" na noite de sexta-feira.
Muitos eurodeputados estão, agora, a pedir que seja revogada a imunidade parlamentar de Eva Kaili para esta ser julgada pela justiça. Uma fonte da justiça belga disse à France-Presse que a imunidade parlamentar nem se aplica já que a vice-presidente foi detida "em flagrante delito".
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