China. Fim súbito da política de 'zero casos' é desafio de credibilidade

O súbito desmantelamento da estratégia 'zero casos' de covid-19 e subsequente avalanche de infeções e mortes suscitou um "desafio de credibilidade" para Pequim, admitiu à agência Lusa um especialista chinês em políticas de saúde pública.

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Lusa
25/01/2023 07:14 ‧ 25/01/2023 por Lusa

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Covid-19

"Até para a propaganda do regime é desafiante construir uma narrativa coerente sobre o que está a acontecer", descreveu Yanzhong Huang, que dirige a pesquisa em assuntos de saúde global no Conselho de Relações Externas, um centro de reflexão ('think tank') com sede em Nova Iorque.

Face ao descontentamento popular e colapso dos dados económicos, as autoridades chinesas optaram por um desmantelamento acelerado da estratégia 'zero covid', que vigorou no país ao longo de quase três anos e incluía o isolamento de todos os casos positivos e contactos próximos, bloqueio de cidades inteiras durante semanas ou meses, a realização constante de testes em massa e o encerramento das fronteiras.

A súbita retirada das restrições, sem estratégias de mitigação, resultou numa vaga de infeções que inundou o sistema hospitalar e os crematórios do país.

"Certamente que a situação atual está a causar um desafio de credibilidade para o governo, já que o que foi dito durante a era 'zero covid' é bem diferente da mensagem promovida durante a reabertura", notou o especialista. "As narrativas são mesmo diametralmente opostas", realçou.

Durante período em que vigorou a política de 'zero casos', as autoridades chinesas enfatizaram os perigos da covid-19 como um vírus "mortal" e "incapacitante". Até novembro passado, o epidemiologista encarregue da estratégia chinesa, Liang Wannian, continuou a frisar que a China "não podia vacilar" na contenção da doença. No mês seguinte, ele concluiu que, afinal, o "vírus deixou de ser perigoso".

"O mantra era que, em primeiro lugar, estava a saúde das pessoas", apesar dos custos económicos e sociais, lembrou Huang. "Agora, nem os tratamentos para a covid-19 são subsidiados pelo Estado", apontou.

Dados publicados por diferentes províncias da China mostram que várias regiões gastaram, nos últimos três anos, o equivalente a dezenas de milhares de milhões de euros no combate ao vírus. Os custos de pôr em prática as diretrizes de Pequim obrigaram ao desvio de fundos destinados a outros setores. Funcionários públicos, incluindo professores, ouvidos pela agência Lusa, relataram cortes salariais de até 50%.

Após Pequim abandonar as políticas de prevenção, pelo menos 14 cidades e províncias da China pararam de fornecer tratamento gratuito para o coronavírus, de acordo com anúncios dos respetivos governos locais, citados pelo jornal britânico Financial Times. Hospitais em Xangai e Cantão, duas das maiores cidades da China, estão agora a cobrar a pacientes com sintomas graves de covid-19 até 20.000 yuans (2.700 euros) por dia para tratamento nos cuidados intensivos.

Yanzhong Huang considerou que na raiz da "incoerência" da resposta da China à pandemia está a ausência de um "processo de tomada de decisões democrático e com bases científicas".

A importância daqueles elementos na governação do país foi frisada por Deng Xiaoping, que liderou as reformas económicas no país, nos anos 1980, após os desastres causados pelo totalitarismo de Mao Zedong (governou entre 1949 e 1976).

O atual Presidente chinês, Xi Jinping, reverteu várias das reformas políticas lançadas por Deng, que procuraram basear a tomada de decisão num processo de consulta coletiva, afastar o Partido Comunista de órgãos administrativos do Estado e descentralizar a autoridade pelas províncias e localidades. Em outubro passado, ele assumiu um terceiro mandato sem precedentes, reforçando o seu estatuto como um dos líderes mais fortes na História da República Popular.

A estratégia de 'zero casos' de covid-19 foi assumida por Xi como um trunfo político e prova da superioridade do modelo de governação chinês, após o país conter com sucesso os surtos iniciais da doença.

"Não há dúvida de que o governo chinês tem uma forte capacidade de mobilizar a burocracia e os recursos para executar planos num curto espaço de tempo" destacou Huang. "Mas, quase quatro décadas após o início do processo de 'reforma e abertura', o sistema político chinês continua a ter uma organização de cima para baixo, não participativa e arbitrária, que culminou numa reabertura caótica e confusa", afirmou.

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