"O que se passa atualmente é raro. Nas anteriores reformas do sistema de pensões, não havia esta incerteza sobre o voto na Assembleia Nacional", disse à agência Lusa o historiador Jean Garrigues, presidente do Comité de História Parlamentar.
Referiu que a situação se deve ao resultado "das eleições legislativas de 2022, que dão ao Governo uma maioria relativa, havendo uma grande dificuldade para votar esta reforma, já que a oposição e hesitações de deputados mesmo do partido do Governo e à direita, fazem com que seja um momento excecional".
A reforma do sistema de pensões está hoje a ser finalizada entre o Senado e a Assembleia Nacional numa comissão paritária que vai acordar o texto final. Na quinta-feira de manhã, caberá ao Senado, onde há uma maioria de direita, votar esta nova lei e à tarde o voto será na Assembleia. No entanto, não há qualquer certeza sobre se há uma maioria absoluta para a sua aprovação no Palácio de Bourbon.
Para aprovar esta lei, a coligação de partidos de centro que apoia Emmanuel Macron e o Governo precisam de 287 votos a favor na Assembleia Nacional, mas apenas tem 250 deputados e terá que contar com possíveis abstenções e votos contra, mesmo no campo dos 'macronistas'.
Com as negociações dos últimos meses, as forças do Presidente podem contar com a direita, mas nem todos os votos serão favoráveis.
"Talvez o risco de votar a favor de uma reforma tão impopular, já que mais de dois terços dos franceses estão contra, seja maior do que a pressão exercida pelos partidos. São escolhas muito difíceis. Penso que os deputado que não têm medo de não ser reeleitos vão votar com o Governo, mas quem quiser voltar a apresentar-se às eleições tem de pensar duas vezes", referiu Garrigues.
Caso as contas do Governo não levem à aprovação, caberá à primeira-ministra Elisabeth Borne utilizar o artigo 49.3 da Constituição francesa, que prevê a possibilidade de aprovar uma lei sem voto no Parlamento, mesmo antes da votação, algo que o executivo tenta evitar ao máximo.
"O cálculo do Governo é votar esta reforma sem recorrer ao 49.3 e atualmente o Governo terá mais votos do que os necessários para fazer passar esta lei, mas é por poucos votos e há uma incerteza. Caso não haja certeza, terá de recorrer ao 49.3 e até agora, as leis que passaram por 49.3 foram promulgadas pelo Presidente, mas será que haverá movimentos sociais mais fortes?", questionou Alain Laquièze, professor de Direito Público na Universidade Paris Cité.
Devido à agitação social e à insatisfação da oposição, sobretudo à esquerda, sobre esta lei, a utilização desta ferramenta seria altamente criticada e poderia levar, segundo os sindicatos à degeneração dos protestos nas ruas francesas.
"O 49.3 é uma ferramenta constitucional e ninguém põe isso em causa, mas a sua utilização nas condições de forte mobilização social que temos hoje em dia e de insubmissão face a este projeto de reforma do sistema de pensões, é algo antidemocrático e que pode gerar mais raiva na população face às instituições, incluindo Assembleia Nacional e Presidente da República, gerando protestos anárquicos", alertou secretário confederal da CGT.
Para Jean Garrigues, esta reforma faro de Emmanuel Macron de forma fundir os diferentes sistemas de pensões e aumentar a idade da reforma para 64 anos foi feita sem "concertação social", o que manchou toda a conceção e aprovação do diploma.
"As consultas que houve foram realizadas a partir de uma base de negociação bastante restrita, as concessões só foram feitas aos republicanos [da direita] para obter uma maioria. É óbvio que a posição dos sindicatos nunca foi tida em conta, nunca houve uma verdadeira negociação à volta de uma mesa onde todos os interessados estivessem representados. Houve um défice de concertação social", detalhou o historiador.
Recorrer ao 49.3 implicaria também consequências na Assembleia Nacional, já que haveria uma moção de censura contra o Governo, que não tendo maioria absoluta, poderia cair, algo que só aconteceu uma vez na V República, quando em 1962 foi aprovada uma moção contra o executivo de Georges Pompidou.
Este pode ser um momento delicado para utilizar esta ferramenta, já que até 2027, Emmanuel Macron quer levar a cabo mais reformas, nomeadamente uma reforma institucional que pode implicar a diminuição de deputados e a inscrição na lei da liberdade do aborto em França, o que levaria a uma reforma constitucional.
"Penso que teremos outros movimentos de descontentamento e resistência na Assembleia Nacional. Como o partido do Presidente não tem uma maioria absoluta, todos os votos serão complicados. Ele quer avançar para uma reforma das instituições, o que supõe uma revisão constitucional, mas todas as reformas serão muito complicadas daqui para a frente", concluiu Alain Laquièze.
Ao mesmo tempo que senadores e deputados acertam a lei final a ser votada na quinta-feira nas duas câmaras, a França cumpre hoje mais uma jornada de greve geral, com fortes perturbações nos transportes, portos de mercadorias, educação e recolha de lixo.
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