"Quando abre uma porta, não está a fechar a outra", afirmou Haddad, à margem da visita à China do Presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. "As transações em dólar vão continuar a acontecer e a maioria das transações vão ser feitas em dólar, mas, em casos específicos, onde os parceiros são muito fortes e tradicionais. Pode pensar em mecanismos muito mais condizentes com essa situação", explicou.
Reconhecendo a "complexidade" do tema, Haddad disse que se "ninguém se debruça sobre o assunto, a rotina faz o seu papel" e lembrou que o Brasil "sempre dialogou com todos os quadrantes do planeta sem privilegiar fortemente ninguém".
O debate sobre a fragmentação do mercado monetário e a diluição do domínio do dólar norte-americano foi renovado pelas sanções impostas pelo Ocidente contra a Rússia. A China reforçou a cooperação com Moscovo, a nível de sistemas de pagamento, promovendo o uso do yuan nas trocas comerciais bilaterais.
A China tem tentado internacionalizar o yuan desde 2009, visando reduzir a dependência do dólar em acordos comerciais e de investimento e desafiar o papel da moeda norte-americana como a principal moeda de reserva do mundo. Esta questão tornou-se mais urgente à medida que fricções políticas e a prolongada guerra comercial e tecnológica entre Pequim e Washington resultaram na imposição de sanções contra várias entidades chinesas.
Desde 2009, a China é o principal parceiro comercial do Brasil, com o comércio bilateral a passar de nove mil milhões de dólares (8,3 mil milhões de euros), em 2004, para 150 mil milhões (139 mil milhões de euros), em 2022. O Brasil desempenha, em particular, um papel importante na segurança alimentar da China, compondo mais de 20% das importações agrícolas do país asiático.
Fernando Haddad lembrou que a guerra na Ucrânia teve um "impacto muito forte" no sistema financeiro e no sistema internacional de pagamentos, pelo que "refletir sobre esse tema vem a calhar".
O país asiático é a maior potência comercial do planeta e o principal mercado para várias matérias-primas, incluindo petróleo, minério de ferro ou soja, mas grande parte das suas trocas com o resto do mundo continuam a ser feitas em dólares.
O dólar é utilizado em 84,3% das trocas comerciais a nível global, segundo dados recentes divulgados pelo jornal britânico Financial Times. Mas a participação do yuan mais do que duplicou desde a invasão da Ucrânia, de menos de 2% para 4,5%, refletindo o maior uso da moeda chinesa no comércio com a Rússia.
Na quinta-feira, Lula atacou, em Xangai, o domínio do dólar norte-americano como moeda de reserva mundial e apelou para o uso de outras divisas na relação comercial entre Brasil e China.
"Eu todos os dias me pergunto por que motivo os países estão obrigados a fazer o seu comércio em dólar", afirmou o chefe de Estado brasileiro, na sede do Novo Banco de Desenvolvimento, criado pelo BRICS, o bloco de economias emergentes que junta Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. "Nós precisamos de ter uma moeda que dê aos países um pouco mais de tranquilidade", acrescentou.
Michael Pettis, professor de teoria financeira na Faculdade de Gestão Guanghua, da Universidade de Pequim, escreveu na sua conta oficial no Twitter que as afirmações de Lula são "palavras de político" e "não de quem conhece o balanço de pagamentos global".
"Ele não percebe que o que importa não é a moeda em que o comércio brasileiro é denominado. Podem ser dólares, yuan, reais, euros ou até o ringgit da Malásia", apontou. "O que importa são os ativos em que os exportadores desejam acumular o produto das suas exportações", afirmou.
Para os exportadores brasileiros acumularem o yuan nas suas trocas com a China, Pequim teria que executar reformas no sistema financeiro e monetário que são incompatíveis com o seu modelo de governação, apontou.
Pettis considerou que a "rigidez" do sistema financeiro da China, em contraste com o mercado de capitais "aberto" dos Estados Unidos, "impede o yuan de assumir maior predominância como moeda de reserva".
"A China teria de abdicar do controlo sobre as contas correntes e de capital" e "aceitar um sistema de governação no qual as decisões de uma ampla gama de autoridades estariam sujeitas a um processo legal transparente e previsível", para que o yuan pudesse, "pelo menos parcialmente", ameaçar a posição do dólar, afirmou o académico, que vive no país asiático há duas décadas.
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