Erdogan, o reabilitador do orgulho turco e otomano
Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, apresenta como principal legado de 20 anos de poder a exaltação do génio turco e muçulmano, a reabilitação dos sultões otomanos, a denúncia do ocidente colonialista e a defesa internacional do islão.
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Mas, após duas décadas de "erdoganismo", o "reis" ("chefe", como é designado pelos seus partidários), enfrenta nas presidenciais de 14 de maio próximo o maior desafio à sua liderança ao confrontar-se com um velho rival político apoiado por seis forças da oposição.
Dotado de rara oratória, defensor do islão político, o Presidente de 69 anos provém de uma modesta família muçulmana conservadora instalada numa povoação junto ao mar Negro, filho de um capitão da guarda costeira.
A mudança para Istambul foi fulcral no seu percurso. Esteve perto de se tornar jogador profissional de futebol, mas os ensinamentos numa escola religiosa onde conviveu com outros cofundadores do seu partido, o AKP, sobrepuseram-se, também por pressão familiar.
Durante a década de 1970 envolveu-se em meios conservadores e nacionalistas muçulmanos e reforçou as suas convicções: fidelidade ao islão sunita e à permanência do Estado turco, conservadorismo moral e liberalismo económico.
O orgulho face aos passados seljúcida e otomano, redescobertos e glorificados, é o contraponto à revolução kemalista, que considera ter afastado os turcos dos seus valores fundamentais, mesmo que Mustafa Kemal, fundador da República em 1923, permaneça uma figura intocável.
No início da sua atividade política teve como mentor o veterano líder islamita Necmettin Erbakan e líder do extinto Refah (Partido da Prosperidade), que chefiou um efémero governo de coligação entre 1996 e 1997, até ser deposto num designado "golpe pós-moderno" sob pressão da cúpula militar.
Apesar da constante pressão do "Estado profundo" laico, a sua ascensão foi meteórica. Em 1994 é eleito presidente da câmara municipal de Istambul -- um sinal da reemergência em força do islão político na Turquia republicana com os então partidos do sistema assolados por divergências insanáveis, escândalos de corrupção e um peso determinante dos militares nos assuntos internos.
Acaba por se demitir em 1998 após ser condenado a dez meses de prisão (que não cumpre na totalidade), sob a acusação de "incitamento ao ódio religioso", por ter citado um poema.
Desde então que recorda com frequência os quatro meses que passou na prisão em 1999, dois anos após os militares terem posto termo à experiência do Refah. Regressou à política, divergiu de Erbakan e esteve na fundação do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), vencedor por maioria absoluta das eleições legislativas de novembro de 2002, e que ainda dirige.
Primeiro-ministro entre 2003 e 2014, será eleito nesse ano Presidente, nas primeiras eleições presidenciais por sufrágio direto na Turquia, e reeleito em junho de 2018.
Nas suas primeiras deslocações ao exterior como chefe de Governo, Erdogan vai privilegiar diversos países europeus e os Estados Unidos, para dissipar receios sobre a subida ao poder do islão conservador num país euro-asiático estratégico para o ocidente e membro da NATO.
Progressivamente, reforçará a sua visão de um mundo injusto e binário - de um lado o ocidente, os países colonizadores e imperialistas, do outro os oprimidos muçulmanos.
O fim da proibição do uso do véu islâmico nos complexos universitários, decisão considerada pelos opositores como uma ameaça à ordem secular turca, ou as restrições ao consumo de álcool, acentuam as fraturas na sociedade turca.
O próprio Tribunal Constitucional não consegue travar a "vaga islamista" e em 2007 são aprovadas em referendo reformas constitucionais que retiram poderes decisivos aos militares, e reforçam o poder legislativo para a designação de juízes.
Nas legislativas de 2011, Erdogan garante um terceiro mandato como primeiro-ministro, após nova e absoluta vitória do AKP, mas que não garante os dois terços necessários para elaborar uma ambicionada nova Constituição.
Mas o primeiro grande desafio que Erdogan enfrenta nas ruas surge em 2013, no decurso de amplos protestos entre maio de junho contra a construção de um centro comercial no parque público Gezi, em Istambul. As manifestações alastram em várias cidades e no epicentro do protesto a polícia recorre a violência sem precedentes, com um balanço de nove mortos e centenas de feridos e detidos.
Estes acontecimentos foram entendidos por diversos setores como a comprovação do crescente autoritarismo de Erdogan e do AKP, com crescente linguagem agressiva face a protestos que mobilizaram muitos jovens.
Pelo facto de as regras internas do AKP impedirem um quarto mandato como primeiro-ministro, Erdogan lança-se à corrida presidencial de 2014, as primeiras em que o chefe de Estado, ainda com poderes meramente protocolares, será eleito por voto universal direto e não pelo Parlamento.
O AKP mantém-se o esteio da política interna, perdendo e recuperando maiorias absolutas. E quando se confronta com o golpe de Estado falhado de 15 julho de 2016, Erdogan interpreta-o como um "favor divino", ao permitir domesticar as Forças Armadas e efetuar purgas massivas na função pública, para além de detenções e julgamentos com pesadas penas de prisão.
O seu antigo aliado, o predicador islamista Fetullah Gulen, e a sua rede, são designados como os mentores do golpe falhado, e a repressão às suas estruturas ainda prossegue.
Em paralelo, Erdogan decide reforçar os seus poderes. Em referendo, são aprovadas profundas alterações à Constituição através da abolição do cargo de primeiro-ministro e que tornam o Presidente no chefe executivo do Governo.
Erdogan vence mais uma jogada arriscada após a legitimação por curta margem destas alterações, que deveriam ser aplicadas após o próximo ciclo eleitoral previsto para novembro de 2019. No entanto, convoca novas eleições antecipadas e em 24 de junho de 2018 garantiu um segundo mandato para a presidência, assumindo a partir de 09 de julho novos poderes presidenciais.
As opções económicas de Erdogan, a par de novas sanções impostas pelos Estados Unidos às exportações de aço e alumínio turco, levam o país à recessão. A lira turca perde um quarto do seu valor, e o abrandamento do crescimento económico prossegue em 2019.
O aumento de preços dos bens essenciais, que Erdogan também atribui a uma conspiração estrangeira, torna-se em assunto central nas municipais de março. Pela primeira vez desde 2002 os resultados denunciam um refluxo do AKP, que perde o controlo de cinco grandes cidades, incluindo Ancara e Istambul, um golpe profundo na agenda de Erdogan.
Nos meses seguintes, vários antigos dirigentes abandonam o partido, num crescendo de contestação a uma liderança pessoal.
A deriva autoritária acentuou-se quando o país se confrontou com uma nova crise em 2020, em pleno "surto pandémico" da covid-19. Os críticos à abordagem do Governo no combate à pandemia são silenciados. E Erdogan continua a exercer pressão sobre o banco central em torno da política monetária, com a lira em desvalorização contínua.
O estrito controlo do meio universitário a nível interno coincide com posições mais agressivas no exterior, com o envolvimento ao lado do Azerbaijão num novo e sangrento conflito em torno do enclave do Nagorno-Karabakh em meados de 2020, ou numa polémica visita a Chipre do Norte, sob ocupação turca.
Entretanto, surgiu a guerra da Ucrânia, e uma nova oportunidade para a potência regional euro-asiática, ciente deste estatuto, formular novas abordagens na política externa, com uma crescente aproximação a antigos rivais, da Arábia Saudita a Israel, do Egito à Síria, ou ao Irão.
Os devastadores sismos de fevereiro de 2022 e os seus efeitos também poderão determinar o futuro do 'reis', que quer permanecer no poder quando a Turquia celebrar em outubro próximo os 100 anos da República.
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