Turquia. Curdos decidem apoio a candidato presidencial da oposição
Na povoação de Turkozu, arredores de Ancara, concentra-se parte da comunidade curda na região da capital turca e que se dedica à recolha de resíduos, que depois vende para empresas de reciclagem, uma forma quase extrema de sobrevivência.
© Lusa
Mundo Turquia/Eleições
Num descampado, percorrido durante breves minutos uma estrada sinuosa, alagada e esburacada, dois adolescentes numa lixeira enchem enormes sacos com garrafas de plástico, latas, alguns metais. Preparam-se para os transportar aos ombros, as mãos protegidas com luvas, em direção a um dos centros de reciclagem locais, em troca de algumas liras. Um negócio ilegal, mas tolerado.
Junto deles está Yilmaz, 42 anos, o responsável pelo Partido Democrático dos Povos (HDP, esquerda e definido como pró-curdo), da região de Ancara. Vigia o trabalho dos jovens, emite algumas ordens e regressa à sede partidária, uma tosca casa situada junto a pequenos apartamentos recém-construídos.
O HDP enfrenta um processo judicial que poderá implicar a sua dissolução e dezenas de deputados curdos apresentam-se às legislativas do próximo domingo nas listas do Partido da Esquerda Verde (YSP), as cores que dominam nesta sede improvisada onde estão três amigos, todos de meia-idade e aparência humilde.
"Vou votar por Kemal Kiliçdaroglu nas presidenciais e pelo YSP nas legislativas", garante Yilmaz, numa referência ao candidato da oposição unida e líder do Partido Republicano do Povo (CHP, centro-esquerda) que enfrenta nas presidenciais o chefe de Estado, Recep Tayyip Erdogan.
Em 28 de abril, a Aliança Trabalho e Liberdade (EvO), que junta sete partidos de esquerda, com destaque para o YSP, num "contexto de múltiplas crises, incluindo política, social e económica", declarou o seu apoio a Kiliçdaroglu, candidato presidencial da Aliança da Nação (seis forças da oposição, nacionalistas e do centro à direita).
A declaração foi emitida por Mithat Sancar, copresidente do HDP, que justificou a decisão de não apresentar um candidato próprio "para cumprir o dever histórico face às gerações do passado e do futuro" e assinalar que "a tradição do povo da Turquia e dos oprimidos sempre foi a resistência contra as ideologias autoritárias e fascistas".
Yilmaz mantém-se cauteloso, e expectante, porque os curdos também reservam na memória as contínuas tergiversações do partido fundado por Mustafa Kemal Ataturk, o fundador da República laica em 1923.
"O CHP sempre teve uma abordagem problemática face aos curdos. As suas posições não têm contribuído para resolver o problema, mas o seu espírito democrático face aos curdos e alevis pode ser positivo", admite, também numa referência à minoria religiosa perseguida pelo poder central.
Os acompanhantes escutam a conversa junto à entrada da tosca casa, que parece ameaçar ruína. "Não houve ninguém que nos alugasse outro espaço", queixa-se. E ocuparam o casebre abandonado, um resíduo das "casas de uma noite", construções clandestinas construídas durante uma única noite pelos migrantes internos e ocupadas quando raiava a manhã.
As reservas de Yilmaz parecem percorrer toda a importante comunidade curda da Turquia e quando os tradicionais eleitores do HDP, terceiro partido no parlamento nacional após as eleições de 2018, também poderão ser determinantes para a derrota da coligação liderada pelo Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, islamita-conservador), o partido de Erdogan no poder desde 2003.
"Se não existir solução para o problema curdo, os novos governantes acabarão por ser afastados do poder. Se não existir uma abordagem positiva a nível constitucional é o regresso aos velhos tempos. E o povo curdo voltará a lutar", promete Yilmaz.
Com cerca de 64 milhões de eleitores inscritos para o duplo escrutínio de domingo, a população com raízes curdas - entre 10 a 20 milhões dos 85 milhões de habitantes - pode desempenhar um papel crucial no desfecho das legislativas, em particular no escrutínio presidencial.
As sondagens indicam uma ampla vantagem para Kiliçdaroglu nas três províncias curdas do sudeste da Turquia. Resultados excecionais em regiões onde o CHP nunca de afirmou.
O partido de Kiliçdaroglu nunca assentou raízes nas regiões curdas devido à sua associação com o nacionalismo turco e a severa repressão das insurreições curdas durante o regime de partido único, entre 1923 e 1950, para além da negação da existência do povo curdo e a proibição do uso da língua curda.
Já na década de 2010, o CHP opôs-se ao "processo de paz" desencadeado pelo Governo do AKP com o ilegalizado Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), na ocasião uma decisão sem precedentes na história moderna da Turquia.
O CHP tem ainda apoiado firmemente as ações militares turcas no norte do Iraque contra o PKK e no norte da Síria contra as milícias curdas locais, uma resposta aos seus sucessos militares e ao reforço da sua presença nesta região de fronteira.
O CHP também raramente se pronunciou contra a marginalização do HDP, e em maio de 2016 votou inclusive pela retirada da imunidade parlamentar a diversos dos seus deputados.
No entanto, e no decurso da campanha eleitoral, Kiliçdaroglu estendeu por diversas vezes as mãos aos curdos, consciente que o apoio massivo da principal minoria na Turquia é necessário para a sua vitória.
O candidato e presidente do CHP - que oscila entre a social-democracia, o nacionalismo e o "kemalismo" - censurou o Presidente cessante que "estigmatiza" os curdos ao tratá-los como "terroristas", e num vídeo que se tornou viral afirmou a sua identidade curda e alevi, uma minoria religiosa.
Mas a desconfiança entre os curdos permanece, e muitos consideram esta reivindicação "étnico-religiosa" de Kiliçdaroglu como uma mistificação apenas destinada a recolher votos. Receiam que no poder, e após terem resolvido os problemas económicos do país, a atual oposição regresse aos temas nacionalistas, em detrimento dos curdos.
À semelhança de Yilmaz, a generalidade da população curda da Turquia vai continuar a aguardar pelas novas promessas, incluindo o reconhecimento da língua curda elo futuro Parlamento, caso a oposição derrube Erdogan. Em alternativa, resta-lhe prosseguir o seu longo combate pela dignidade.
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