Um advogado de Raffaele Mincione, um financeiro instalado em Londres, submeteu a queixa na semana passada ao Alto-Comissariado das ONU para os Direitos Humanos, através de um processo especial que autoriza indivíduos ou grupos a fornecer à ONU informação sobre alegadas violações de direitos em países ou instituições.
Esta queixa é a mais relevante sobre o julgamento do Vaticano, ilustrando a peculiaridade do sistema de justiça criminal do Vaticano e da sua aparente incompatibilidade com as normas europeias e democráticas.
O Vaticano é uma monarquia absoluta onde o papa tem o poder supremo nos campos legislativo, executivo e judicial.
O julgamento, que começou em 2021 e acabou em dezembro, focou-se nas perdas de 350 milhões de euros registadas pela Santa Sé em investimentos no imobiliário londrino.
Os procuradores do Vaticano alegaram que os intermediários e representantes do Vaticano espoliaram a Santa Sé em dezenas de milhões de euros em custos e comissões, e depois extorquiram-na em mais 15 milhões de euros, para lhe cederem o controlo dos bens.
O julgamento acabou em dezembro com a condenação de nove dos 10 acusados, incluindo Mincione e o ex-poderoso cardeal Angelo Becciu.
As razões da condenação ainda não foram divulgadas, mas tanto os procuradores do Vaticano como os advogados dos nove condenados já anunciaram que vão recorrer.
A queixa de Mincione à ONU focou-se no papel do papa durante as investigações, uma área classificada como problemática pelos advogados de defesa durante o julgamento e peritos externos depois.
A base da queixa consiste em quatro decretos executivos secretos assinados pelo papa em 2019 e 2020 que davam poderes alargadas aos procuradores do Vaticano para investigarem, incluindo escutas sem controlo e práticas fora da lei.
Os decretos só vieram a ser conhecidos antes do julgamento, nunca foram publicados, não adiantaram qualquer justificação e quadro temporal para a vigilância nem mencionaram qualquer controlo das escutas opor um juiz independente.
O procurador-chefe argumentou que os decretos de Francisco deram "garantias", não especificadas, aos suspeitos, e os juízes rejeitaram na altura as moções da defesa, em que esta considerava que os decretos violavam os direitos fundamentais dos acusados a um julgamento justo.
Em uma decisão, de algum modo complicada, os juízes decidiram que não tinha ocorrido qualquer violação do princípio da legalidade desde que Francisco assinou os decretos.
A queixa de Mincione também alega que o tribunal não é independente ou imparcial, ao que o Vaticano já tinha rejeitado. Francisco pode contratar e despedir juízes e procuradores, bem como decidir remunerações, pensões e duração dos mandatos.
Não está claro o que é que a ONU pode fazer com a queixa, se é que pode fazer alguma coisa.
Esta sua agência, sedeada em Genebra, tem peritos, ou relatores especiais, para monitorizarem áreas específicas de direitos humanos, incluindo a judicial e a independência de juízes e advogados.
Queixas anteriores sobre o Vaticano ou a Igreja Católica, por abuso sexual de menores e discriminação da comunidade LGBTQ+, resultaram em cartas do relator especial da ONU ao embaixador do Vaticano na ONU em Genebra, a listar problemas e a reclamar respostas e mudanças.
Mincione também já tentou envolver o Conselho da Europa (CdE) no caso, uma vez que a Santa Sé está sujeita a análises periódicas previstas no processo Moneyval, do CdE, para prevenir lavagem de dinheiro.
Em Janeiro, um representante do Reino Unido inquiriu o CdE sobre a possibilidade de analisar a situação dos direitos humanos no Vaticano, dado o resultado do julgamento.
O presidente da assembleia do CdE esquivou-se ao solicitado.
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