Síria: O que a queda de Assad revelou sobre o tráfico de droga Captagon?

Desde a queda de Bashar al-Assad foram descobertas na Síria instalações de fabrico de Captagon que, segundo especialistas, ajudou a florescer um comércio global anual de 10.000 milhões de dólares (9.550 milhões de euros) desta droga altamente viciante.

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Lusa
18/12/2024 23:28 ‧ há 2 horas por Lusa

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PERGUNTAS E RESPOSTAS

Entre os locais utilizados para o fabrico à escala industrial da droga encontram-se a base aérea de Mazzeh, em Damasco, uma empresa de comércio de automóveis em Latakia e uma antiga fábrica de batatas fritas nos arredores da capital síria, apreendida pelas forças governamentais em 2018.

 

"Os colaboradores de al-Assad controlavam este sítio. Depois da queda do regime vim aqui e encontrei-o a arder. Vieram à noite e pegaram fogo às drogas, mas não conseguiram queimar tudo", disse Firas al-Toot, o proprietário original da fábrica, à The Associated Press. "

"Daqui saíram comprimidos de Captagon para matar o nosso povo", disse Abu Zihab, um ativista do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), o principal grupo que governa atualmente o país, quando permitiram o acesso dos jornalistas ao local.

A guerra civil de quase 14 anos na Síria fragmentou o país, desmoronou a economia e criou um terreno fértil para a produção da droga. As milícias, os 'senhores da guerra' e o governo de al-Assad transformaram o Captagon de uma operação em pequena escala gerida por pequenos grupos criminosos num fluxo de receitas industriais de milhares de milhões de dólares.

Os especialistas dizem que a recente destituição de al-Assad pode criar uma oportunidade para desmantelar a indústria.

Como construiu a Síria um império de Captagon?

O Captagon foi desenvolvido na Alemanha na década de 1960 como um estimulante de prescrição médica para doenças como a narcolepsia. Mais tarde, foi proibido devido a problemas cardíacos e às suas propriedades viciantes. Os seus efeitos semelhantes aos das anfetaminas tornaram-no popular no Médio Oriente, nas elites e nos combatentes, uma vez que aumentava a concentração e reduzia a fadiga.

O governo de al-Assad reconheceu uma oportunidade nesta droga de fabrico barato no meio da crise económica da Síria e das pesadas sanções a que estava sujeita.

O Captagon é produzido através de um processo químico simples, que envolve a mistura de derivados de anfetamina com excipientes para formar comprimidos, geralmente em laboratórios improvisados. 

O comércio de Captagon começou a industrializar-se por volta de 2018-2019, quando o regime de al-Assad, e outros grupos armados na Síria, investiu em instalações de produção, armazéns e redes de tráfico, permitindo à Síria emergir como o maior produtor a nível mundial, com alguma produção também a ocorrer no Líbano.

A maior parte das remessas apreendidas de Captagon era originária da Síria, segundo dados do Projeto de Comércio de Captagon da New Lines, uma iniciativa do grupo de reflexão do New Lines Institute.

Segundo um relatório publicado em maio, um gabinete militar chefiado pelo irmão de Bashar al-Assad, Maher, supervisionou as operações e criou um sistema de produção coordenado.

Onde e como foi o Captagon contrabandeado?

O Captagon foi contrabandeado através da fronteira escondido em camiões, carregamentos de carga e mercadorias. Alguns carregamentos são escondidos em alimentos, produtos eletrónicos e materiais de construção para evitar serem detetados.

As principais rotas de contrabando eram as fronteiras porosas da Síria com o Líbano, a Jordânia e o Iraque, a partir das quais a droga é distribuída por toda a região. Os principais mercados são os países ricos do Golfo, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. 

No Líbano, o tráfico de Captagon floresceu, sobretudo perto da fronteira com a Síria e no vale do Bekaa. As autoridades libanesas esforçaram-se por travar o fluxo de Captagon proveniente da Síria, que, segundo os analistas, era facilitado pelo Hezbollah.

Após a descoberta de caixas de fruta meticulosamente embaladas com fardos da droga escondidos entre romãs e laranjas, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos impuseram proibições aos produtos agrícolas libaneses. Mas o Captagon também entrou nos mercados internacionais, chegando ao Sudeste Asiático e a partes da Europa.

Quanto é que produziu de receitas para o regime de Assad?

Segundo Caroline Rose, diretora do Projeto de Comércio de Captagon do New Lines Institute, com sede em Nova Iorque, o comércio global anual desta droga tem um valor estimado em 10.000 milhões de dólares, com o lucro anual da família al-Assad deposta a atingir cerca de 2.400 milhões de dólares (2.293 milhões de euros).

"Ver a descoberta de tantas instalações à escala industrial associadas ao regime foi chocante, mas não surpreendente. Havia muitas provas que ligavam os principais comparsas do regime e os membros da família al-Assad ao comércio", disse Rose, cuja organização acompanha todas as apreensões de Captagon registadas publicamente e as rusgas a laboratórios.

O Captagon como instrumento narco-diplomático

O número exato de fábricas na Síria ainda não é claro, mas os especialistas e os membros do HTS estimam que devem existir centenas espalhadas pelo país.

Embora os países vizinhos há muito tentem proibir o tráfico de drogas, a influência sobre al-Assad era limitada. A Arábia Saudita impôs sanções rigorosas para o tráfico de Captagon e reforçou a segurança nas fronteiras, colaborando com outros Estados do Golfo para monitorizar as rotas de contrabando. Estes esforços, porém, enfrentaram desafios devido às complexas redes na Síria, no Líbano e na Jordânia.

O Captagon proporcionou a al-Assad uma alavanca para pôr fim ao isolamento político. Nos últimos anos, à medida que vários Estados árabes restabeleciam laços com Damasco, o fim do comércio era uma exigência fundamental nas conversações para normalizar as relações. 

Em maio de 2023, a Síria foi readmitida na Liga Árabe, suspensa desde 2011 devido à brutal repressão de al-Assad contra os manifestantes. A Síria comprometeu-se a combater o contrabando, o que levou à formação de um comité regional de coordenação da segurança.

Pouco depois da cimeira, e num possível sinal de cedências de bastidores, a Jordânia intensificou a vigilância ao longo da fronteira síria. Ativistas e especialistas atribuíram à Jordânia, provavelmente com o consentimento de al-Assad, os ataques aéreos contra a casa de um conhecido 'barão da droga' e contra uma suposta fábrica de Captagon perto de Daraa.

Al-Assad transformou a Síria na "maior fábrica de Captagon do mundo", declarou o líder do HTS, Ahmad al-Sharaa, num discurso de vitória na Mesquita Umayyad de Damasco, a 08 deste mês. "Hoje, a Síria está a ser purificada, graças à graça de Deus Todo-Poderoso".

Embora Assad e o seu círculo possam ter sido os principais beneficiários, há também provas de que grupos da oposição síria estiveram envolvidos no contrabando de droga, e que grupos rebeldes, milícias locais e redes de crime organizado fabricaram e contrabandearam o Captagon para financiar as suas operações, dizem os analistas.

"Provavelmente, assistiremos a uma redução da oferta a curto prazo no comércio, com um declínio na dimensão e frequência das apreensões, uma vez que a produção à escala industrial foi largamente interrompida. No entanto, os criminosos são inovadores" e "os níveis de procura permanecem estáveis", disse Rose, notando que podem também "procurar outros negócios ilícitos para se envolver".

Leia Também: Responsável por ajuda humanitária da ONU apela a ajuda "maciça" à Síria

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