Desde a fuga do ditador sírio para a Rússia, em 08 de dezembro, o novo líder de facto, Ahmed al-Charaa, anteriormente conhecido pelo nome militar de Abu Mohamed al-Jolani, conseguiu manter uma parte do país, a começar na sua capital, em aparente normalidade, marcada por receios das minorias com possíveis imposições religiosas e pelo regresso de refugiados a um país em grande parte destruído.
Eis alguns pontos essenciais do primeiro mês desde a queda da dinastia Assad na Síria, agora governada pela coligação de rebeldes liderada pela Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, HTS), de Ahmed alCharaa.
Ameaça de radicalismo islâmico
Al-Charaa tem insistido que o seu percurso radical pertence ao passado, mas muitas das bases da coligação de rebeldes que depôs Assad vieram de movimentos ligados à al-Qaida e ao Estado Islâmico.
Apesar da sua mensagem inclusiva e integradora num país de maioria sunita mas com grande diversidade étnica e religiosa, têm surgido sinais de eventuais tentações em relação à lei islâmica.
Alterações aos currículos nas escolas foram justificadas com o afastamento da propaganda nacionalista do partido Baas, de Bashar al-Assad, mas em seu lugar surgiram referências a Deus, bem como correções a versículos do Corão.
Têm sido observados incidentes com minorias cristãs e acusações de perseguições aos alauitas, que controlavam o anterior sistema sírio, suscitando protestos.
Em resposta, o Governo de transição proibiu a difusão de "conteúdos de natureza sectária" na imprensa ou nas redes sociais que promovam a discriminação.
O porta-voz do Governo de transição, Obaida Arnout, porta-voz do Governo de transição, defendeu que a "natureza biológica e fisiológica" das mulheres as tornava inadequadas para certos cargos, e al-Charaa absteve-se de apertar a mão da chefe da diplomacia alemã, Annalena Baerbock, quando a recebeu em Damasco, mas não teve a mesma atitude com o ministro dos Negócios Estrangeiros francês.
Laços diplomáticos e sanções
Nas primeiras semanas após a queda do regime, Damasco tornou-se num centro de grande atividade diplomática e vários países, a começar pelos vizinhos árabes mas também europeus, enviaram missões à capital síria, com sinais de reatar relações que estavam interrompidas ou arrefecidas nos últimos anos de Assad.
Os Estados Unidos levantaram a recompensa de dez milhões de dólares que ofereciam pela captura de al-Charaa devido ao seu papel na frente grupo al-Nusra, que esteve ligada à al-Qaida, bem como algumas restrições (e apenas com fins humanitários) das sanções que pendem sobre o país desde a brutal repressão de Assad aos protestos internos a partir de 2011.
Também a União Europeia tem em análise o levantamento de sanções contra a Síria.
O novo líder sírio tem usado uma linguagem neutra sobre os aliados do anterior presidente sírio, incluindo Irão e Rússia, que abandonou as suas posições militares no país, e até em relação a Israel, sinalizando o desejo de coexistir pacificamente com os seus vizinhos, porém, subsistem grandes desconfianças.
Persistência de conflitos
Desde a queda do regime do presidente sírio, os grupos armados curdos, que recebem apoio dos Estados Unidos devido à sua luta contra o Estado Islâmico, têm combatido, sobretudo no norte da Síria, contra as milícias apoiadas pela Turquia.
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, declarou na segunda-feira estar pronto a intervir militarmente na Síria em caso em caso de "risco de fragmentação" do país.
O novo líder da Síria já tinha afirmado que se encontrava em negociações com as forças curdas "para resolver a crise no nordeste" do país, mas manifestou-se contra uma eventual autonomia na região.
Esta crise espelha a dificuldade em manter a unidade da aliança rebelde após a deposição do regime face aos seus interesses conflituantes, mas as fações armadas na Síria, incluindo o HTS, alcançaram um acordo para a sua dissolução e serem colocadas sob ordens do Ministério da Defesa.
Entretanto, no sul do país, Israel aproveitou a fase de transição em Damasco para avançar em relação às posições que já mantinha nos Montes Golã para ultrapassar a linha desmilitarizada entre os dois países, criada em 1974, e ocupar o lado sírio do Monte Hermón já nas proximidades da capital.
Israel alega que não tem intenções territoriais na Síria e que as suas ações se destinam a prevenir que as armas do anterior regime caiam nas mãos de indivíduos ou grupos que possam ameaçar a segurança israelita.
O sul da Síria é uma região explosiva na confluência dos Montes Golã ocupados por Israel e do Líbano, onde as forças israelitas travaram uma guerra durante mais de um ano contra o grupo xiita libanês Hezbollah, aliado de Assad e do Irão, suspensa por um frágil acordo de cessar-fogo.
Justiça e direitos
As novas autoridades colocaram de forma visível mas não hostil os seus militares e polícias nas ruas de Damasco, muitos deles provenientes de Idlib, e que têm sido elogiados pela sua preparação e profissionalismo.
Ao mesmo tempo, alertam que não tolerarão atos de vingança contra funcionários e simpatizantes da anterior administração, enquanto prosseguem operações de busca de altos dirigentes ligados a Assad, sobretudo no seu bastião alauita no oeste do país, e que se saldaram em centenas de capturas.
Estima-se que mais de cem mil pessoas desapareceram durante a repressão do regime aos partidários de oposição e avolumam-se suspeitas de localizações de valas comuns em vários pontos do país.
No final de dezembro, o líder do mecanismo da ONU para investigação de crimes internacionais graves visitou a Síria e destacou a "montanha de documentos" descobertos após a queda do regime, pedindo ao novo Governo preservação dos locais suspeitos e das provas com vista à responsabilização dos autores de uma "desumanidade inimaginável".
Reconstrução e refugiados
Devastada pela guerra civil desde 2011, calcula-se que a economia síria tenha recuado 85% desde então, tendo pela frente custos de reconstrução estimados entre 250 mil e 400 mil milhões de milhões de dólares.
Cerca de 90% da população vive abaixo da linha de pobreza e, para contrariar esta herança de Assad, as novas autoridades preveem aumentar os perto de 1,25 milhões de funcionários públicos em nada menos do que 400% dos seus salários atuais a partir de fevereiro.
Grandes partes do país e dos arredores de Damasco estão completamente destruídas e sem energia na maior parte do dia, levando vários países vizinhos a acionar planos de ajuda de emergência e pontes aéreas de assistência de bens básicos.
Entre 08 de dezembro e o passado domingo, cerca de 115 mil refugiados regressaram à Síria, segundo as Nações Unidas, maioritariamente do Líbano, Jordânia e Turquia, do total de mais de quatro milhões que fugiram do país, onde acima de 660 mil pessoas permanecem deslocadas.
Constituição e eleições
Ahmed al-Charaa afirmou no final do ano que o processo de preparação e elaboração de uma nova Constituição pode demorar cerca de três anos e organizar eleições quatro.
"A Síria precisa de um ano para que os cidadãos experimentem mudanças radicais nos serviços", disse al-Charaa à emissora Al-Arabiya, acrescentando que "qualquer eleição adequada exigirá um censo populacional completo".
As novas autoridades preveem a criação de uma comissão com diferentes grupos sociais para preparar "uma conferência de diálogo nacional" sobre o futuro do país.
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