Os bolcheviques tomaram o poder há 100 anos. Tudo mudou desde então

A Revolução de Outubro mudou não só a Rússia como todo o mundo. Olhar para o passado e pensá-lo é um exercício que se impõe, de forma a (tentar) compreender um dos principais acontecimentos do século XX. Para tal, falámos com dois historiadores e com um jornalista que viveu muitos anos na Rússia. Cem anos depois, qual o legado da revolução liderada por Lenine e Trotsky?

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Pedro Bastos Reis
07/11/2017 08:15 ‧ 07/11/2017 por Pedro Bastos Reis

Mundo

Revolução

Estávamos em 1917. O czar Nicolau II já tinha sido derrubado em fevereiro do mesmo ano. Um frágil governo provisório estava no poder, numa Rússia completamente desgastada pela participação na Primeira Guerra Mundial. A 7 de novembro (25 de outubro no calendário juliano), precisamente há 100 anos, os bolcheviques, liderados por Lenine e Trotsky, tomaram o Palácio de Inverno e os principais centros de poder. Estava consumada a Revolução de Outubro, que tinha começado a ser gizada já há alguns meses.

Insatisfeitos com o regime czarista, sucederam-se as manifestações e as greves gerais contra o poder de Nicolau II. Centenas de pessoas morreram na sequência dos tumultos da Revolução de Fevereiro, e o governo provisório de Alexander Kerensky segurou as rédeas do poder. Até à Revolução de Outubro, quando a força dos bolcheviques se impôs.

Passados 100 anos, o debate sobre os impactos da Revolução de Outubro, sobre a sua essência e sobre o seu legado, permanecem. Cem anos depois, não existem consensos sobre a política soviética nos seus cerca de 70 anos de existência.

Consensuais parecem ser, no entanto, as análises de algumas das causas que estão na origem da revolução. “A Revolução de Outubro de 1917 foi o culminar de uma situação de grave crise política e social que se vinha desenvolvendo na Rússia desde o final do século XIX e que foi particularmente agravada com a desastrosa participação do exército russo na Primeira Guerra Mundial”, começa por explicar Rui Bebiano, historiador e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, ao Notícias ao Minuto.

“O último czar levou o país a uma situação de crise económica, política e social agravada profundamente pela participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial”, concretiza o jornalista José Milhazes, que viveu durante 38 anos na Rússia, onde foi correspondente. “Lenine, Trotsky e companhia utilizaram a vagarosidade com que eram feitas as transformações para tomarem o poder através de um golpe de Estado”, acrescenta.

Decisivo foi o facto de os bolcheviques serem os únicos a oporem-se à participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial. Por isso, souberam explorar a vontade popular e foram conquistando apoios para consumar a revolução inspirada pelos ideais marxistas. Além disso, como grande parte da população russa era composta por camponeses, as políticas da terra de Lenine e Trotsky tornaram-se muito populares.

“Foi uma conjuntura muito especial que tem a ver com a falência do Império Russo na frente de combate, a agitação de objetivos que eram caros a um setor da população. Assim, escolheram o momento oportuno para avançar. Foi isso que garantiu o sucesso”, sentencia José Manuel Lopes Cordeiro, historiador e professor de História na Universidade do Minho.

Os "anos terríveis" que se seguiram à revolução

O ano de 1917 chegou ao fim e a transformação russa acabara de dar um salto gigante. Os ideais leninistas, inspirados pelo marxismo, prometiam transformar o mundo. No ano seguinte, chegaria ao fim a Primeira Guerra Mundial. A Europa, em particular, ficou devastada. A Rússia, além dos milhões de mortos e da destruição de parte do seu território, teve ainda de enfrentar um inverno rigoroso, o que dificultou a sua recuperação.

Neste cenário de grande instabilidade e incerteza, os bolcheviques continuavam a revolução. Contavam, sobretudo, com apoios nos centros urbanos e industriais. O resto do (gigante) país preocupava-se, essencialmente, com a sobrevivência, muitos certamente alienados do que se passava nas grandes cidades.

Notícias ao Minuto"Os países ocidentais não aceitaram totalmente a alteração de poder na Rússia". Em 1918, começou a guerra civil© Getty Images

Por essa altura, continuou e intensificou-se a expropriação das empresas industriais, que passaram a ser dirigidas por comités de trabalhadores. Foi implementada a política de oito horas de trabalho, os bancos foram nacionalizados, a soberania dos povos e o seu direito à autodeterminação foram decretados. As enormes transformações começavam a sentir-se.

Foi então que começou a violenta guerra civil no país, que durou entre 1918 e 1921, os “anos terríveis” que se seguiram à revolução. Forças conservadoras e leais ao czar, com o apoio dos países ocidentais, começaram a sua tentativa de derrubar os bolcheviques. “Os países ocidentais, nomeadamente os principais países envolvidos na guerra, não aceitaram a alteração de poder na Rússia. Promoveram uma invasão do território, que contou com forças internas ligadas ao czar, e desencadeou-se uma guerra civil num país que já estava exausto pela guerra”, afirma Lopes Cordeiro.

Ditadura sobre a burguesia e democracia para as massas e para o povo. Era este o conceito de ditadura do proletariadoCiente de que era a sua sobrevivência que estava em jogo, uma “questão de morrer ou matar”, Lenine começou a impor a sua força. Sucederam-se as perseguições aos opositores e foi instituído o sistema de partido único. “Os bolcheviques só tinham uma solução para manter o poder: ser implacáveis e impor a sua autoridade à força. Vão ter de o fazer, porque era uma questão de vida ou de morte. Se não o fizessem, eram completamente liquidados”. Nesse sentido, analisa o professor da Universidade do Minho, proibir os restantes partidos para lá do comunista assentava na política estipulada pelo conceito de ditadura do proletariado, ou seja, “ditadura sobre a burguesia e democracia para as massas e para o povo" e como os bolcheviques se apresentavam como os únicos representantes do povo, “não havia razão para haver outro partido a representar estes setores”.

Mas nem só de repressão se fizeram os três anos da guerra civil entre vermelhos (bolcheviques) e brancos (leais ao czar). Rui Bebiano salienta as “experiências revolucionárias de grande profundidade, que alteraram desde a estrutura económica às formas de organização do trabalho”, nomeadamente no que diz respeito à “atividade artística e cultural, à situação das mulheres, à organização do trabalho da terra, à educação e à política urbanística”.

Morte de Lenine, ascensão de Estaline

Depois de três anos de uma violenta guerra civil, Lenine morreu em 1924. Estaline, que já era secretário-geral do partido comunista mas que desempenhou um papel secundário na revolução, sucedeu-lhe na liderança e a União Soviética começou uma nova fase.

As transformações, nota o professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, assumem um carácter irreversível a partir de 1928, sendo confirmadas em meados da década seguinte. É precisamente nesta altura que se inicia um intenso programa de industrialização e de coletivação no país, ao mesmo tempo que muitos revolucionários bolcheviques, nomeadamente Trotsky, que foi acusado de traição, começam a ser perseguidos e afastados, verificando-se, desta forma, enormes alterações às “propostas iniciais do governo revolucionário”.

Notícias ao MinutoEstaline desempenhou um papel secundário na Revolução. Depois da morte de Lenine, subiu  ao poder© Getty Images

Entre as medidas tomadas na altura, enumera Rui Bebiano, destaca-se o “fim da ideia de uma revolução internacionalista”, a “coletivização forçada da agricultura com a destruição total da grande propriedade e dos pequenos camponeses” ou a “instalação de uma forte repressão política em larga medida exercida contra membros do próprio partido”.

Para José Milhazes, contudo, as transformações efetuadas por Estaline foram sobretudo a continuação do que já fora começado na Revolução de Outubro por Lenine. “É errado pensar que o estalinismo nasceu com Estaline. Não, o estalinismo nasceu antes, é uma continuação do leninismo, como o trotskismo seria a continuação do leninismo, que foi a imposição de um regime social-tolitário através da força”, vaticina o jornalista. “A revolução depois da morte de Lenine não foi traída, foi continuada por Estaline, segundo fórmulas criadas já na época de Lenine e Trotsky”.

Estaline percebeu que não tinha grandes alternativas. Ou industrializava o país a que custo fosse ou sucumbia

Ao mesmo tempo que a União Soviética se recompunha da guerra civil e continuava o seu processo revolucionário, o fascismo ia emergindo na Europa, nomeadamente em Itália e na Alemanha, a grande derrotada da Primeira Guerra Mundial. É neste cenário de humilhação que começa a ascensão de Adolf Hitler, que nos seus escritos iniciais manifesta não só a vontade de eliminar os judeus como também de destruir a Rússia. Estaline, diz José Manuel Lopes Cordeiro, teve de reagir. “No Mein Kampft está evidente que a Rússia ia ser invadida. Por isso, Estaline percebeu que não tinha grandes alternativas. Ou industrializava o país a que custo fosse ou sucumbia”, explica. Contudo, as consequências deste “custo” que foi preciso tomar, mudaram para sempre a União Soviética. “A opção que a direção soviética fez foi uma opção terrível, foi a aplicação de um voluntarismo, porque achou que não tinham alternativa”.

Neste cenário, com o nazismo cada vez mais forte, uma nova guerra era inevitável e acabou por acontecer, à custa de milhões de mortos. Estaline saiu como um dos grandes vencedores da guerra, mas pagou “um preço brutal em termos de perdas militares e civis”.

O legado da Revolução de Outubro

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, emergem duas superpotências que vão ‘dividir’ o mundo entre si: Estados Unidos e União Soviética.

É neste mundo bipartido que os países do chamado terceiro mundo, nomeadamente as colónias dos países europeus, de Portugal inclusive, começam a ganhar força para combater o imperialismo e o capitalismo. Esse é, nota José Manuel Lopes Cordeiro, um dos principais legados da Revolução de Outubro, isto é, o “despertar da consciência dos países do Oriente e de África”, algo que ia ao encontro das ambições soviéticas, que pretendiam que “esses povos se libertassem das situações coloniais”.

Notícias ao MinutoCom o fim da Segunda Guerra Mundial, começou a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética© Getty Images

Análise semelhante faz José Milhazes, que considera que a Revolução Russa “provocou uma onda de libertação nas antigas colónias, [apesar de] a União Soviética não ter soluções económicas e de desenvolvimento para esses países que queriam abraçar a ideia do socialismo”. O bloco ocidental quis responder a este despertar e nesse sentido, diz o jornalista, apoiou "regimes muito pouco aconselháveis do ponto de vista dos direitos humanos ou da democracia”. “Durante a Guerra Fria, os EUA e a União Soviética não olhavam a meios para atingir os seus fins”, explica.

 A construção de um mundo mais justo e igualitário não é um mero devaneio de caráter utópicoOutro dos legados da Revolução prende-se com as transformações no interior dos próprios países europeus, mais concretamente no que diz respeito às mudanças sociais. “Há um reflexo, a médio prazo, na garantia de direitos sociais por parte da população trabalhadora da Europa. Não estão na origem direta, mas contribuíram para a sua afirmação”, faz sobressiar Lopes Cordeiro. “A Europa acelerou o processo de criação de estados sociais, em que os trabalhadores passam a ter condições de trabalho e de vida muito melhores”, concorda José Milhazes.

Passados estes anos, o próprio socialismo teve de fazer uma catarse histórica para perceber as consequências da Revolução de Outubro. Para Rui Bebiano, a revolução trouxe a “confirmação, pela experiência negativa vivida, de que o modelo socialista não pode ser imposto de cima para baixo, mas harmonizado com um desenvolvimento da sociedade na qual se insere”. Por outro lado, afirma o historiador, a revolução bolchevique demonstra que a “transformação revolucionária, no sentido da construção de um mundo mais justo e igualitário, não é um mero devaneio de caráter utópico, mas pode resultar da intervenção da iniciativa humana, constituindo sempre um fator de esperança”.

A Rússia de hoje, no centenário da revolução

Com a queda do Muro de Berlim e o desmoronar da União Soviética, a ideologia que saiu da Revolução de Outubro, e que foi sendo transformado pelas lideranças soviéticas ao longo de cerca de 70 anos, sofreu um tremendo golpe, do qual nunca chegou a recuperar. Hoje, na Rússia, pouco mais resta do que as estátuas de Lenine e a nostalgia de certos momentos da história. Outros foram esquecidos, ou simplesmente não são recordados.

Uma das razões principais que levou à queda da União Soviética foi o esforço armamentista que não conseguiram manterNo entanto, desde que o atual presidente russo, Vladimir Putin, começou a concentrar o poder na sua figura, bem como a demonstrar uma intenção de reforçar um poder perdido da Rússia em certas partes do globo, que muitos analistas traçam algumas semelhanças entre a Rússia de hoje e a União Soviética.

“Há algumas semelhanças que se vão tornando cada vez maiores, como o aumento da repressão e do regime autocrático de Vladimir Putin, em que a oposição se vê limitada nas suas atividades, onde a liberdade de expressão é também limitada”, afirma José Milhazes, que denuncia, particularmente, “a política externa musculada de Putin”, nomeadamente na guerra da Síria, onde Moscovo apoia o regime de Bashar al-Assad, ou no Leste da Ucrânia, que resultou na anexação da Crimeia.

Notícias ao MinutoNo "regime musculado" de Putin há “uma certa tendência para a autocracia"© Reuters

Rui Bebiano, por seu turno, nota “uma certa tendência para a autocracia, e para a imposição da Rússia e de Moscovo como núcleo de uma grande potência com impacto mundial, incluindo do ponto de vista militar”, apesar de realçar as “realidades políticas muito diversas” entre a Rússia de Putin e a União Soviética.

José Manuel Lopes Cordeiro, por seu lado, considera que a Rússia de hoje “em termos de regime político e económico, não [tem] nenhuma semelhança”. Apesar de reconhecer o “regime musculado” de Putin, salienta a situação económica no país, que não é propriamente favorável. “Alimentar desejos expansionistas ou militaristas sem uma base económica que o suporte é um grande risco. A Rússia tem demasiados problemas internos para rivalizar com os Estados Unidos ou com o Ocidente”, sublinha.

Como recorda o historiador, “uma das razões principais que levou à queda da União Soviética foi o esforço armamentista que não conseguiram manter na rivalidade com os Estados Unidos”, nomeadamente devido ao impacto da guerra do Afeganistão na União Soviética, que acabou por precipitar o seu fim. Por isso, José Milhazes aponta o dedo ao presidente russo: "Em vez de modernizar o seu país e de aumentar a prosperidade da população, [Putin] gasta parte do orçamento em aventuras militares como é o caso da Síria, onde entrar é fácil mas sair é impossível”.

O futuro da Rússia é, portanto, incerto. Passados 100 anos da Revolução de Outubro, pouco parece restar no regime que hoje existe em Moscovo. No entanto, o debate sobre a natureza da revolução mantém-se, e as discussões efusivas sobre os anos que se seguiram à tomada do Palácio de Inverno também. Dificilmente haverá um consenso. Muitos continuarão a ver o ‘diabo’ nas transformações protagonizadas por Lenine e Trotsky, continuadas ou destruídas por Estaline, e outros tantos continuarão a ver a Revolução de Outubro como um farol no combate ao capitalismo. Divergências à parte, o centenário da revolução recupera um debate que, na verdade, nunca se esfumou.

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