Tiroteio, lóbi e conspiração. Estados Unidos das armas numa encruzilhada

Num exercício que se vai repetindo, os Estados Unidos dão por si a debater a legislação sobre as armas na sequência de um massacre. Não se preveem grandes mudanças na lei nem o fim de um debate que irá, certamente, repetir-se no futuro, quando o próximo tiroteio em massa acontecer.

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© iStock/Paul Campbell

Pedro Filipe Pina
24/02/2018 08:30 ‧ 24/02/2018 por Pedro Filipe Pina

Mundo

Fenómeno

Nos últimos anos, Nikolas Cruz deu vários sinais da sua intenção de levar a cabo um tiroteio na escola. A polícia local recebeu informações nesse sentido, tal como o FBI. Mas as investigações nunca deram a devida atenção ao caso.

No passado dia 14 de fevereiro, o jovem de 19 anos entrou na sua antiga escola, na Florida, armado com uma AR-15, uma arma semiautomática que comprou legalmente, e matou 17 pessoas. Mais uma vez os EUA envolvem-se num debate cada vez mais estranho quando visto desde lado do Oceano Atlântico.

Tiroteios em massa não são um exclusivo norte-americano. Nenhum país do mundo está imune à violência. De resto, as estatísticas, por úteis que sejam, também só nos contam parte da história, nem que seja pelo simples facto de os critérios que definem um tiroteio em massa poderem mudar – já aconteceu no passado com o FBI, por exemplo.

Mas a verdade é que, desde 1999, quando dois adolescentes mataram 13 pessoas na sua escola, em Columbine, este fenómeno de tiroteios (não só em massa mas particularmente em escolas) se tornou cada vez mais frequente. Aqui na redação – como acontecerá em tantas outras – quando um jornalista se apercebe de que há informações de um tiroteio a decorrer, é possível alguém arriscar o local: é nos EUA. E a maior parte dessas vezes vai acertar. É uma simples questão de probabilidade. Uma a que os EUA nos habituaram.

Os Estados Unidos das armas

Independentemente das variações estatísticas, há algo que se repete em diferentes estudos: há mais vítimas de tiroteios em países onde há mais armas. E nenhum país parece ter tantas armas como os EUA. Mas esta é só parte da questão.

Mesmo em países como o Canadá ou a Suíça, onde também é maior a percentagem de pessoas com armas, não se verificam tantos nem tão violentos episódios. E isto mesmo tendo em conta as diferentes dimensões dos países. Para tal, contará a cultura com as armas de cada país, mas também critérios mais apertados para o porte e uso de arma.

A violência dos números

A Gun Violence Archive é uma das plataformas que vai compilando os registos de episódios de violência com armas de fogo nos EUA. Fazem-no associando sempre a fonte jornalística que deu conta do caso, o que é uma porta aberta para testemunharmos como o fenómeno ganha cada vez mais contornos  – e perdoem-nos a palavra – bizarros.

Um dos casos aconteceu em finais de janeiro, no Kentucky, e dava conta de uma jornalista que saiu da redação em direção a uma escola local após relatos de que tinham sido ouvidos tiros. Quando lá chegou, descobriu que o atirador era um rapaz de 15 anos que tinha pegado numa arma pouco antes de as aulas começarem e matado dois colegas, ferindo outras 14 pessoas. Descobriu também que o atirador era o seu filho.

Quando se espreita o site – e a atualização mais recente tinha sido na última quinta-feira, 22 de fevereiro –, uma das páginas é referente a adolescentes (entre os 12 e 17 anos) feridos ou mortos com armas de fogo. Já havia 404 registos. Isto apenas desde que 2018 começou. Pior: o tiroteio na Florida já nem surgia na primeira página. No espaço de uma semana, mais 46 episódios com violência envolvendo vítimas adolescentes tinham sido acrescentados à lista. Só na Florida, e embora nenhum tivesse sido mortal, já tinham surgido mais cinco registos.

Catherine Rampell, colunista no Washington Post e natural da Florida, realçava esta semana que, entre as 'liberalidades' legislativas daquele Estado no que a armas diz respeito, se inclui a possibilidade de qualquer pessoa poder praticar tiro ao alvo no quintal da sua casa. Não há restrições para a hora do dia ou para as armas. O que quer dizer que se um residente na Florida quiser treinar disparos com uma arma automática no quintal da casa às nove da manhã de um domingo, está no seu direito.

Previsivelmente, há dois anos, uma rapariga de 14 anos estava simplesmente na sua casa quando foi atingida na mão por uma bala perdida de um vizinho.

A NRA e o novo aliado das teorias da conspiração

A National Rifle Association (NRA) é a organização que concentra todas as atenções quando se debatem as armas.

Invocando a Segunda Emenda de uma Constituição com dois séculos de vida, e que permite o porte de armas, a NRA aposta forte no lóbi, pagando a políticos (republicanos mas também alguns democratas, saliente-se) para fazerem a defesa incondicional do direito a ter armas,  o que inclui as mais diversas peças de armamento. Entre elas está a AR-15 que Nikolas Cruz usou e que levou uma radiologista a confessar num texto na The Atlantic que, após anos e anos a tratar ferimentos de balas, nunca tinha visto danos nos tecidos tão violentos como os que esta arma é capaz de fazer. 

A juntar à NRA e às demais organizações que defendem a emenda, há teorias da conspiração a atingir novos níveis. Como as que surgiram em torno do jovem David Hogg, de 16 anos, que sobreviveu ao tiroteio na Florida e que tem falado publicamente sobre o caso – e que entretanto tem sido acusado de tudo, desde ser ator, até a ser um 'peão' dos democratas, passando por pertencer até ao FBI, com 'provas' ao nível das da teoria de que o mundo é governado por reptilianos (e sim, há quem acredite nisto).

Absurda que fosse, a teoria da conspiração em torno do tiroteio na Florida ganhou tal atenção que até mereceu referência em talk-shows.

O que pode um presidente fazer?

A 14 de dezembro de 2012, um homem armado entrou numa escola primária em Sandy Hook, no Connecticut. Matou oito adultos e 20 crianças. Na sequência deste episódio, a Casa Branca propôs alguma legislação para tentar limitar o acesso a armas semiautomáticas mas também aumentar os critérios da chamada 'verificação de antecedentes'. A tentativa, porém, parece particularmente tímida quando vemos que um jovem de 19 anos conseguiu, legalmente, comprar armas, mesmo após várias denúncias contra ele.

Dan Hodges, analista político, na sequência de um outro tiroteio, publicou em 2015 uma frase no Twitter que tem sido recuperada a cada novo massacre: "em retrospetiva, Sandy Hook marcou o fim do debate sobre o controlo de armas nos EUA. Assim que a América decidiu que era suportável o assassinato de crianças, o debate acabou".

A mãe de uma das crianças assassinadas em Sandy Hook foi uma das pessoas que marcou presença numa sessão na Casa Branca esta semana, com Donald Trump. Na mesma sessão, filmada e transmitida pelas televisões, estavam também pais de vítimas do recente tiroteio na Florida.

Trump ouviu os diversos pedidos e sugestões. Mas a reunião ficou marcada por fotografias que mostravam as notas que Trump tinha para aquela conversa com vítimas. O papel incluía simples frases genéricas que Trump não deveria esquecer, como "o que podemos fazer para vos ajudar a sentirem-se seguros?".

Notícias ao MinutoAs notas de Trump durante sessão com sobreviventes e familiares de vítimas de tiroteios © Reuters

E o que pode Trump fazer? O presidente norte-americano evitou falar de armas na primeira reação aos acontecimentos, preferindo colocar o ênfase nas questões de saúde mental. Outra das propostas que o próprio tem referido passa por aumentar a idade permitida para comprar armas para os 21 anos. Mas mesmo esta tem tido resistência entre os seus apoiantes, como se verifica nas reações à publicação.

Mas a proposta de Trump que se tem destacado é outra e que implica armar professores. Na prática, isto passaria por dar treino militar a docentes, para que pudessem andar armados na sala de aula.

Não é a primeira vez, mas a proposta repete-se por quem se opõe à mais pequena restrição ao porte de armas. Ora, se há muitos tiroteios em escolas, o melhor é ter mais gente armada, defende-se... fortemente armada.

A reação é diametralmente oposta à de países como a Austrália e o Reino Unido que, em décadas recentes, reagiram a tiroteios em massa procurando limitar ao máximo a proliferação de armas de fogo. No que a tiroteios em massa diz respeito, reconheça-se, as medidas parecem ter resultado.

Entretanto, na Florida, o único polícia armado que estava de serviço na escola foi despedido. A razão? Perante um jovem armado até aos dentes a disparar indiscriminadamente, optou por fugir.

Se ignorarmos a imagem mental de escolas a tornarem-se autênticas fortalezas militares, com guardas armados e detetores de metais, se calhar a teoria de ter mais armas a responder a armas até poderia ter sentido. Isto se cada professor de Química, História ou Matemática se tornasse uma espécie de Rambo, de livros numa mão e uma pistola na outra. A realidade, porém, nem sempre 'respeita' a teoria.

Se há países onde as crianças aprendem na escola o que devem fazer em caso de sismos, a ter cuidado a atravessar a estrada ou a não falar com estranhos, nos EUA crianças da mesma idade têm de saber tudo isso e também onde se devem esconder quando alguém entra aos tiros na escola. Talvez não seja acaso haver cada vez mais pais nos EUA que optam por comprar mochilas à prova de bala.

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