"A sociedade é mazinha para as pessoas em luto. Não as deixa chorar"

O que acontece a uma pessoa a atravessar um processo de luto? E como ajudar em tempo de isolamento? É possível fazer o luto sem velar o corpo do ente querido? José Eduardo Rebelo, presidente da associação Apoio à Pessoa em Luto (APELO), responde a estas questões, chamando a atenção para o papel da comunidade.

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Anabela Sousa Dantas
27/04/2020 09:05 ‧ 27/04/2020 por Anabela Sousa Dantas

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Apelo

Portugal tem, neste momento, um registo de mais de 900 óbitos associados à infeção por novo coronavírus (e outros por outras razões). Estando o país em Estado de Emergência, com todas as restrições que lhe são associadas, como vivem as pessoas enlutadas a fase mais difícil das suas vidas?

Recorde-se que, segundo o determinado pela Direção-Geral da Saúde, mantém-se a proibição das exéquias e outros rituais de cariz religioso que impliquem uma aglomeração de pessoas, e a determinação de limitações para a realização de funerais. Isto significa que não pode haver velórios e que os corpos das vítimas mortais associadas à Covid-19 devem ser ou cremados ou “embalados em sacos impermeáveis”, não se podendo abrir o caixão.

“O luto faz-se na mesma”, garante José Eduardo Rebelo, presidente da associação Apoio à Pessoa em Luto (APELO), em entrevista ao Notícias ao Minuto. O especialista no apoio ao luto, defilhado e viúvo à data de fundação da Apelo, enquadra o processo na sua natureza biológica e social, tentando trazer alguma luz sobre um tema que ainda é olhado como um tabu, numa sociedade centrada na experiência de felicidade que, muitas vezes, não se permite o tempo para interromper esse bem-estar e chorar, estar triste, zangado, em empatia com o próximo.

"O luto acontece independentemente de tudo"

“O luto acontece independentemente de tudo, porque é uma reação física e mental do nosso corpo para voltar a ter o equilíbrio”, diz José Eduardo Rebelo, explicando que para entender a convulsão emocional deste processo é preciso partir da biologia.

Todos os seres humanos, explica, têm relacionamentos que são alicerçados na afetividade e que podem ser, de forma geral, englobados em duas categorias de necessidade diferentes: a de sobrevivência (relacionamento do filho com a mãe/pai, relacionamento entre cônjuges) e a de perpetuação (relacionamento da mãe/pai com o filho). Estas relações são sedimentadas em expetativas emocionais grandes, que são colocadas em causa com o evento da morte.

“De um ponto de vista muito primário, é a sobrevivência que fica em causa. (...) É esse o desassossego que acontece quando se perde alguém, havia uma normalidade e uma previsibilidade que são quebradas. Isso é o pesar. O luto é uma resposta do nosso corpo - físico e mental - a esse turbilhão caótico no sentido de o normalizar com o tempo. É o processo de reação a uma perda pessoal profunda que tem como função fazer com que nós voltemos a recuperar a normalidade sadia, ou equilíbrio sadio”, elucida o docente universitário.

Apesar de não nos despedirmos das pessoas amadas, há uma certidão de óbito. Quando é um caso de corpo desaparecido, quem decide a morte é a justiça, volvido o tempo legal. Aqui não é o casoA importância dos rituais religiosos

O luto é um processo individual, mas o ser humano funciona em comunidade. “O que é que simboliza o casamento? O que simbolizam os funerais? Os rituais fazem parte da nossa natureza social, alguns têm expressão de natureza religiosa”, diz José Eduardo Rebelo, acrescentando que “o processo do luto é mais ou menos iniciado após a constatação da morte, na nossa cultura, através das exéquias religiosas”.

Este processo de reorganização de emoções depende, portanto, da visualização do cadáver, da comprovação de que a pessoa está efetivamente morta, e das condolências em relação aos familiares, que reforçam a consciência da morte para a pessoa enlutada.

Na opinião de José Eduardo Rebelo, o facto de não se poder ver o cadáver não encontra paralelo nos casos de desaparecimentos (quando o cadáver, a existir, nunca é encontrado), situações em que “entes queridos mantém expectativas emocionais”.

“As famílias não se podem despedir, não podem manter contacto físico, que é muito importante. Mas há provas da realidade, da morte, falando da perspectiva do luto individual”, explica. “Apesar de não nos despedirmos das pessoas amadas, há uma certidão de óbito. Quando é um caso de corpo desaparecido, quem decide a morte é a justiça, volvido o tempo legal. Aqui não é o caso. Embora as pessoas não se possa despedir, existe uma certidão de óbito. Não é a mesma coisa que dar um beijo de despedida, mas existe”.

Sendo o luto um processo, essencialmente, individual, o isolamento traz dificuldades acrescidas nesta altura. Infelizmente, o elevado número de mortes associadas à doença causada pelo novo coronavírus, traz uma atenuante. “Embora o luto seja individual, neste momento, estamos a assistir a um luto comunitário. Estamos a ser confrontados com imensas mortes e somos também reconfortados com a ideia de que não é só a nós. Um dos grandes problemas do luto é isolamento, a sensação de que acontece só a ela”.

Ainda assim, as pessoas que não se podem despedir da pessoa amada, “vão viver um luto, eventualmente, mais penoso e prolongado”. José Eduardo Rebelo destaca, porém, que “o luto faz-se sempre” e que “a generalidade dos processos são sadios”.

Temos de ter isto em consideração: neste momento, as pessoas estão a lutar pela sua sobrevivência"A sociedade, regra geral, é mazinha para as pessoas em luto"

“Se a morte é um tabu, o luto é ‘mal-visto’”. O fundador da APELO parte desta premissa para delimitar a dificuldade que um enlutado sente no processo de reintegração na normalidade. Se vivemos numa sociedade hedonista e o luto representa uma interrupção desse bem-estar - e da noção almejada de que “vai ficar tudo bem” -, é fácil depreender que o luto envolve um “conjunto de comportamentos com que as pessoas não se gostam de envolver”.

“À boa maneira latina, há uma tendência para as pessoas relegarem as pessoas que põe em causa a normalidade e o bem-estar para um certo isolamento. Enquanto noutros países, essa questão é resolvida de forma comunitária, em grupos de entreajuda. A comunidade tem respostas para o apoio ao luto. Nos países latinos ou não existem ou são precárias”, garante José Eduardo Rebelo, que, estando há 16 anos à frente de uma dessas tentativas de resposta, sabe que “há uma linha que separa umas respostas das outras” e que a linha “está entre o isolamento e a ação comunitária”.

“A sociedade, regra geral, é mazinha para as pessoas em luto. Não as deixa chorar, não as deixa falar, não as deixa expressar. ‘Já se passou tanto tempo’, ‘Mas tens outros filhos’... Reprimem constantemente as expressões do luto”, diz.

“Temos de ter isto em consideração: neste momento, as pessoas estão a lutar pela sua sobrevivência. Como o senhor Darwin e o senhor Wallace explicaram, existe uma teoria da evolução que se baseia na sobrevivência das espécies. A luta do mais apto. Neste momento há duas espécies que estão em guerra: uma chama-se ‘homo sapiens’ e outra chama-se ‘beta coronavírus’”, acrescenta, sublinhando que a natureza egoísta do ser humano no que respeita ao apoio ao outro se agudiza numa situação de sobrevivência.

A pessoa em luto manifesta raiva, manifesta tristeza, manifesta culpa, desalento, coisas que às vezes são confundidas com a depressão. Isso faz parte do luto O que é que é preciso para apoiar uma pessoa em luto?

“O apoio ao luto é muito simples e ao mesmo tempo complicado porque envolve uma conjunto de regras a que o ser humano não está habituado”, diz. “É preciso estar presente sem impôr a presença, mostrar disponibilidade sem impôr a disponibilidade. Ouvirmos sem julgar o que pessoa está a dizer”, acrescenta. “Uma pessoa estar frente a outra e não poder ripostar é complicado, não faz parte dos nossos hábitos. A pessoa em luta o que necessita é de manter viva a pessoa amada, falando sobre ela. Isto não requer resposta”, elenca, sublinhando que, depois de ouvir, é preciso não julgar.

“A pessoa em luto manifesta raiva, manifesta tristeza, manifesta culpa, desalento, coisas que às vezes são confundidas com a depressão. Isso faz parte do luto”, explica José Eduardo Rebelo, repetindo que “o luto pode ser mais ou menos complicado, mas, em regra, é sadio”.

“Já o Freud dizia que o luto não era uma doença, é um processo sadio que visa a recuperação da normalidade”, garante, colocando ênfase no papel da comunidade em torno da pessoa enlutada e na empatia que lhe é preciso estender. “O homem é um ser social, necessita de relacionamentos para sobreviver”, diz, estando nesta malha comunitária a melhor resposta para esta crise. Como acontece com a pandemia.

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A APELO promove o apoio ao luto à distância, através da plataforma Zoom, e tem espaços físicos em Aveiro, Coimbra, Estremoz e Lisboa. Pode encontrar os contactos nos links.

Se não está em luto, mas sente que precisa de falar, saiba que a Direção-Geral de Saúde lançou um site especial dedicado à saúde mental com respostas específicas para este tempo de pandemia.

Deixamos abaixo outros contactos úteis:

SOS Voz Amiga (entre as 16h e as 24h) - 800 209 899 (Número gratuito)

Conversa Amiga (entre as 15h e as 22h) - 808 237 327 (Número gratuito) e 210 027 159

Telefone da Amizade (entre as 16h e as 23h) – 228 323 535

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