No início do cerco sanitário que impôs várias restrições a esse concelho do distrito de Aveiro, Natália Moreira, dona de um salão que suspendeu temporariamente os contratos das respetivas funcionárias, assumiu estar com insónias provocadas pela apreensão e pela perda de amigos cujos funerais não pôde acompanhar.
Entretanto, a empresária foi-se mantendo ocupada com tarefas que alguns viram como uma antecipação exagerada da reabertura do estabelecimento e agora, com um ânimo totalmente diferente, tem tudo preparado para retomar o serviço na próxima segunda-feira, à porta-fechada, mediante reserva prévia.
"Já tenho tudo preenchido até 14 de maio e estou ansiosa. Fui dando conta do que andava a fazer nas redes sociais, as minhas clientes estão mortas por regressar e, apesar desta trabalheira toda, parece que só isto já é suficiente para melhorar a boa disposição de toda a gente", confessa Natália.
Algumas das adaptações operadas no salão foram-lhe inspiradas pelo exemplo da filha, que, sendo paramédica no Reino Unido.
"Foi ela que me disse para costurar uns sacos de algodão muito grandes para guardar todas as toalhas, fechadas, antes de as lavar a 60 graus. Depois fiz ainda outros 15 sacos mais pequenos para os clientes guardarem todas as suas coisas mal entram no salão", explica.
Essa clientela já foi avisada quanto a outras mudanças: só é permitida a estada no estabelecimento a quem usar máscara; logo à entrada todos terão que calcar uma solução de água e lixívia para desinfeção de calçado; zonas de espera e diagnóstico foram reconfiguradas para garantir maior distanciamento entre utilizadores; sessões de fisioterapia, estética e massagem estão suspensas para o respetivo gabinete ficar afeto apenas ao tratamento de unhas; todas as funcionárias estarão a trabalhar com roupa especial e viseira e no recinto haverá até "um medidor de temperatura à distância".
Além disso, o salão também deixará de ter disponíveis as revistas cor-de-rosa, para evitar manuseamentos partilhados, e vão cortar-se cortesias como café e bolachinhas, para facilitar os procedimentos de higienização de todo o espaço.
Os preços poderão não permanecer iguais, para se recuperar os "cerca de 1.000 euros" investidos em questões sanitárias e se contrabalançar a redução de seis para dois clientes na lotação do atendimento simultâneo, mas Natália garante que "mimo" não vai faltar.
"Vai ser uma terapia para todos, depois de tanto tempo fechados e sem grande contacto humano", diz Natália, numa voz de otimismo quase palpável.
Hugo Gilvaz não está assim tão entusiasmado após um mês e meio com "rendimento zero", mas mostra-se decidido, preparado para reabrir a barbearia e cheio de sentido prático.
"Só vou atender reservas e já tenho marcações até dia 09 de maio. A principal diferença é que antes atendia dois ou três clientes numa hora e agora só vou conseguir tratar de uma pessoa no mesmo período, porque preciso de tempo para desinfetar tudo antes de receber a próxima", revela.
Apesar do reforço no equipamento de segurança e em produtos para desinfeção dos instrumentos de corte, a oferta de serviços foi reduzida, de acordo com as instruções das entidades reguladoras do setor: deixa de haver corte de barba para se evitar o contacto com áreas particularmente sujeitas a contágio como a boca e o nariz.
Receios quanto à pandemia em geral, agora que parte da economia local e nacional se prepara para retomar a normalidade possível, Hugo ainda tem alguns, dado o seu registo lúcido e realista.
"Depende tudo de como as pessoas se comportarem. Se se puserem a sair à tola e a fazer vida como tínhamos antes, num instante isto fica tudo 'lixado' na mesma", avisa.
Zita Sousa é esteticista e não tem facilitado. Mesmo quando algumas clientes insinuaram que gostariam de ser atendidas a título especial durante o estado de calamidade, fez-se desentendida e continuou firme, oferecendo-se apenas para distribuir limas profissionais pela caixa de correio de vizinhas cujas unhas de gel já pareciam garras impróprias para qualquer vulgar corta-unhas.
Com a agenda da primeira semana preenchida, a também formadora em cursos de estética não precisou de fazer muitas alterações no gabinete porque sempre trabalhou com marcações antecipadas, bastando-lhe agora garantir um 'stock' de máscaras e álcool-gel, e aumentar a periodicidade das higienizações.
Rigorosa com contas, prevenida e frontal, Zita não faz dramas sobre o mês e meio em que esteve sem faturação. "Vou receber 292,6 euros da Segurança Social, que é o apoio máximo para trabalhadores independentes, e tento nem comentar quando vejo colegas minhas a dizerem na net que não têm o que comer porque a o Estado só lhes vai dar 20, 40 ou 60 euros. É que o apoio é em função do que declararam às Finanças; se agora só recebem 20 euros, é porque nos outros meses não declararam o que realmente ganhavam", argumenta.
Cinco anos "só de trabalho e quase mais nada" foram precisamente para que pudesse enfrentar imprevistos sem excessos de angústia e foi essa cautela que lhe permitiu alguns dias de descanso no início da pandemia, até que "o stresse do confinamento" a incentivou a cumprir tarefas há muito adiadas.
Uma amiga autorizada a circular fora de Ovar durante o cerco geográfico comprou-lhe tintas em Santa Maria da Feira, entregou-lhe várias latas à porta e Zita acabou por concretizar pela sua própria mão as pinturas que, noutra altura, teria pago a profissionais.
Com portas novas em branco casca-de-ovo, "agora a casa está muito mais luminosa, parece ter o dobro do espaço" e Zita promete: "Quando isto tudo acabar, vou lá fazer uma festa de arromba, que a casa merece e eu ainda mais".
No município de Ovar, a autarquia já regista 35 óbitos e cerca de 700 infetados com o vírus SARS-CoV-2 entre os seus 55.400 habitantes. Apesar de levantado o estado de calamidade pública no território, esse continua sujeito a restrições especiais ao nível da sua atividade económica.