"É claro que estamos numa situação de emergência e temos que falar do assunto, mas eu sinto que as pessoas às vezes metem um bocadinho a cabeça debaixo do tapete, por debaixo da areia, mas esquecem-se que em saúde nós temos nichos de prioridades que não podemos deixar de contemplar", disse à agência Lusa a diretora do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC).
Fátima Pinto salientou que as principais causas de morte em Portugal são as doenças cardiovasculares e neoplasias e a causa por covid-19 vem mais para o fim da lista.
"Infelizmente, e eu percebo porque isto é a notícia do dia, nós perdemos todos os dias, horas e litros de tinta a escrever sobre covid. No entanto, esquecemo-nos que no nosso país até agora já morreram cerca de 12 mil pessoas com doenças cardiovasculares, 11 mil pessoas com AVC e não sei quantos milhares com cancro", elucidou.
Ressalvando que não pode falar pelos outros hospitais, a cardiologista afirmou que "existe uma discrepância entre aquilo que sai publicado, dada a grande relevância que tem tido este tema, e aquilo que é verdadeiramente feito a nível hospitalar".
Aludindo ao que tem sido feito no CHULC, Fátima Pinto afirmou: "a nossa desgraça foi a nossa felicidade, ou seja, nós somos um centro como muitos hospitais e cada hospital está na sua casinha dentro de Lisboa. Há o Hospital Santa Marta, o Curry Cabral, a Estefânia, o São José, os Capuchos cada um na sua localização", o que permitiu dividir "entre atividade infetada com covid e atividade não infetada".
"O Hospital de Santa Marta, sendo predominantemente cardiovascular, tem um peso muito significativo, porque somos o centro de referência para muitos doentes de todo o país, e manteve a atividade dentro daquilo que era possível, não tendo nunca doentes covid", explicou.
Neste momento, está a receber doentes de vários pontos do país, até do Norte. "Sempre que há necessidade nós vamos recebendo doentes, mas é óbvio que as capacidades" também vão esgotando.
"Até podemos montar muitas camas, em muitos sítios, até nos corredores etc etc... só que depois não temos nem médicos, nem enfermeiros para tratar os doentes", vincou.
Para Fátima Pinto, não pode haver um hospital único a dar uma resposta a 300%: "Isto tem de ser uma atitude concertada a nível nacional de todos os centros hospitalares e de todos os hospitais mais pequenos, e tem que se fazer uma gestão muito racional dos internamentos".
"Se há uma região que tem mais, tem que se divergir para uma região que tenha menos, para darmos apoio, para estarmos sempre com uma capacidade de resposta para tudo, agora não podemos deixar de tratar as outras doenças", alertou.
Para a especialista, o aumento de número de mortes "é multifatorial porque a população teve receio e achou melhor ficar confinada para tudo".
"Se calhar houve pessoas que tiveram AVC, enfartes em casa e que não foram ao hospital ou quando chegam ao hospital já vão num estadio tão avançado que a probabilidade de as coisas não correrem bem é maior", comentou.
Apesar de considerar que o país está numa "situação difícil e crítica", afirmou que ainda há capacidade de resposta dentro do Serviço Nacional de Saúde e do sistema de saúde, que envolve o setor social e privado.
"Numa situação de catástrofe todos temos a corresponsabilidade de colaborar de todas as formas, com qualidade, quer nos doentes infetados com covid como nos restantes (...) para que a população portuguesa tenha os melhores cuidados é para isso que serve o sistema nacional de saúde", defendeu.