Gustavo Carona é um dos médicos que, durante a pandemia da Covid-19, tem dado a cara e publicado nas redes sociais diversas situações acerca desta luta contra o vírus. Na semana passada, colocou um longo texto no Facebook - a que deu o título de 'A Angústia da Decisão' - onde traça um retrato brutal do que se passa nos hospitais portugueses a partir da sua própria experiência.
E a partilha inicia-se logo com uma questão cruel: "'Desisto ou não desisto deste?' Começamos o dia sem vagas nos Cuidados Intensivos. Talvez consigamos dar duas altas, mas temos dois doentes Covid a agravar no internamento e que precisam de Cuidados Intensivos".
Contudo, não são apenas os doentes Covid que estão na mente e nas preocupações dos profissionais de saúde porque, infelizmente, as outras doenças não pararam. "Temos dois doentes oncológicos que precisam de ser operados, são cirurgias prioritárias, mas não urgentes. Temos chamadas de outros hospitais para nos transferirem doentes que são nossos, e nós temos também doentes para transferir que são de outros hospitais, e a resposta dos dois lados é a mesma: 'Não temos vagas'. Já não se consegue disfarçar a angústia há muito tempo. Queremos salvar todos. Regemos as nossas decisões por princípios éticos bem definidos. Ajuda ter documentos que nos orientam, mas estes não nos protegem de dilacerar o coração ao olhar os doentes nos olhos sem saber se os vamos poder tentar salvar", sublinha Gustavo Carona.
E os exemplos das difíceis decisões que têm de ser tomadas prosseguem, como explica o profissional de saúde no texto: "Temos um doente previamente saudável com 40 e tal anos que admitimos ter uma probabilidade de sobrevida inferior a 10% por complicações abdominais, e a correr bem, vai precisar de largos meses de Cuidados Intensivos". A "razão talvez nos diga para 'desligar as máquinas'" mas, continua Gustavo Carona, este homem é "é marido, é pai e é filho". "Tentar salvá-lo é provavelmente em vão na nossa leitura clínica multidisciplinar, e poderia dar lugar a muitas vidas de diferentes patologias que não estamos a conseguir tratar. É angustiante esta decisão."
A vida dos médicos, enfermeiros e técnicos de saúde está, por estes dias, e mais do que nunca, em sobressalto. Até porque estão a ser confrontados com difíceis questões às quais a resposta também nunca foi tão complicada como neste momento. O intensivista explica que as equipas querem "apressar as altas de doentes que há pouco saíram do ventilador por Covid e por insuficiência cardíaca, para podermos tratar mais doentes." E os mas? "Mas e se as altas forem precipitadas? E se eles voltarem a descompensar e os tivermos de readmitir? E se recebermos agora um politraumatizado grave na urgência que precisa de Cuidados Intensivos? A angústia e a ansiedade são galopantes, embora as tentemos não deixar transparecer."
"Eu já deixei pessoas morrer em situações multi-vítimas por não poder salvar todos, mas morreram em segundos ou minutos. É muito diferente tomar uma decisão sobre alguém que podíamos salvar e vai morrer em dias longos e sozinho nos hospitais. Eu olho à minha volta e sei que há muita gente medicamente ultra-qualificada e gente boa de coração que vai ter dificuldades a sobreviver a estas decisões. Que elas venham mais tarde do que cedo. Isto é destrutivo", frisa.
A partilha termina com uma 'sugestão' de Gustavo Carona: "A todos que têm tantas alternativas na ponta da língua", que se desloquem aos hospitais, "olhem os doentes nos olhos e digam-lhes a eles e aos seus familiares quais é que vão deixar morrer. E depois expliquem aos médicos experientes que toda a vida trataram todo o tipo de doenças, como é que se sobrevive à Angústia da Decisão".