"Aqui - vou apenas dar uma opinião -- penso que é difícil responsabilizar uma pessoa, porque um evento destes, um incêndio desta complexidade, deve ser gerido por uma equipa, por um grupo de pessoas, por uma instituição, neste caso por um sistema. Julgo que o que falhou foi esse sistema", afirmou aos jornalistas Domingos Xavier Viegas, coordenador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra.
O professor catedrático jubilado falava no intervalo do seu depoimento como testemunha no Tribunal Judicial de Leiria no julgamento de 11 arguidos para apurar eventuais responsabilidades criminais nos incêndios de Pedrógão Grande, no distrito de Leiria, em junho de 2017, nos quais o Ministério Público contabilizou 63 mortos e 44 feridos quiseram procedimento criminal. A maioria das mortes ocorreu na Estrada Nacional 236-1, que liga Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos.
Para o investigador, esse sistema "já vinha a falhar meses antes na forma como estava a organizar ou reorganizar o atraso que teve na nomeação de pessoas, na substituição de pessoas, também se falhava na falta de qualificação e de preparação de muitos dos seus agentes".
"Portanto, eu julgo que aqui o que há que responsabilizar é todo um sistema, mas que não deve deixar de ser responsabilizado, porque às vezes andamos à procura de bodes expiatórios (...), mas esquecemos que há, às vezes em escalões mais altos, também pessoas que contribuíram para este estado de coisas", salientou o também coordenador do relatório encomendado pelo Governo "O complexo de incêndios de Pedrógão Grande e concelhos limítrofes".
Domingos Xavier Viegas admitiu que essas pessoas não estão a ser julgadas.
"Mas também não é a mim que me compete avaliar isso, mas como cidadão julgo que a sociedade não pode eximir-se de tomar em conta essas situações, porque às vezes andamos à procura de agravar as penas dos incendiários e não temos em conta pessoas que são igualmente responsáveis por estes factos, pelas suas consequências", apontou.
Aos jornalistas, como já tinha afirmado na audiência, Domingos Xavier Viegas reconheceu, por outro lado, que se a gestão de combustível tivesse sido feita de forma adequada e atempada na Estrada Nacional 236-1, as condições de sobrevivência das pessoas que por ali passavam eram maiores.
"Eram sem dúvida, porque uma coisa é o incêndio, a sua origem, o modo como se propagou, as condições meteorológicas. Outra coisa são as vítimas e neste caso tivemos um número perfeitamente inaceitável de pessoas mortas e particularmente naquele troço (...). As condições que havia lá na estrada não eram, de modo algum, a facilitar a sobrevivência das pessoas, mesmo dentro de carros", garantiu, depois de ter dito no julgamento que a vegetação nesta fazia quase um arco, criando um túnel de chamas.
"Mas isso que dizemos 'a posteriori' em relação a Pedrógão, sabendo aquilo que lá se passou, já dizíamos e continuamos a dizer em relação a muitos outros locais no país, nomeadamente em muitas outras rodovias", alertou.
Ainda segundo Domingos Xavier Viegas, a investigação que a sua equipa desenvolveu concluiu pela "relação entre a origem do incêndio de Pedrógão Grande" com "dois pontos na linha elétrica de media tensão [Lousã-Pedrógão]".
"Foram factos que se relacionam entre o toque da vegetação com a linha elétrica que leva a que partes da vegetação entram em combustão e desprendem-se da árvore e ao caírem no chão podem dar origem a focos de incêndio que era muito fácil neste dia [17 de junho de 2017] dado o estado de extrema secura da vegetação", acrescentou.
Em causa neste julgamento estão crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, alguns dos quais graves.
Os arguidos são o comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, Augusto Arnaut, então responsável pelas operações de socorro, dois funcionários da antiga EDP Distribuição (atual E-REDES) e três da Ascendi (que tem a subconcessão rodoviária Pinhal Interior), e os ex-presidentes da Câmara de Castanheira de Pera e de Pedrógão Grande, Fernando Lopes e Valdemar Alves, respetivamente.
O presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu, também foi acusado.
O antigo vice-presidente da Câmara de Pedrógão Grande José Graça e a então responsável pelo Gabinete Florestal deste município, Margarida Gonçalves, estão igualmente entre os arguidos.
Aos funcionários das empresas, autarcas e ex-autarcas, assim como à responsável pelo Gabinete Técnico Florestal, são atribuídas responsabilidades pela omissão dos "procedimentos elementares necessários à criação/manutenção da faixa de gestão de combustível", quer na linha de média tensão Lousã-Pedrógão, onde ocorreram duas descargas elétricas que desencadearam os incêndios, quer em estradas, de acordo com o Ministério Público.
O julgamento prossegue hoje à tarde com a continuação do depoimento de Domingos Xavier Viegas.
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