"Só quando as pessoas virem valor no lixo é que vão cuidar dele"

O objetivo de Andreas Noe é pressionar empresas e governos a investirem numa economia circular.

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Andrea Pinto
13/12/2021 08:40 ‧ 13/12/2021 por Andrea Pinto

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Entrevista

Chegou a Lisboa em 2017. Na bagagem trazia uma educação assente na importância da reciclagem e, com isso, quis tornar-se num exemplo e numa voz ativa daquilo que pode ser feito, por cada um de nós, para ajudar a ‘limpar’ o planeta.

Assim nasce, em 2019, o ‘The Trash Traveler’, que em português significa "O Viajante do Lixo”. O seu protagonista é Andreas Noe, biólogo que quer dar a voz, de forma simples e divertida, para transmitir uma mensagem que diz ser simples mas que precisa de chegar longe, isto é, às grandes empresas e ao governo.

Dois anos depois, 'The Trash Traveler' tem a seu lado uma comunidade composta por várias ONG, instituições e pessoas singulares que se unem para mostrar que a ação humana pode ajudar a fazer a diferença.

Andreas já percorreu mais de mil quilómetros da costa portuguesa, e em cada um deles apanhou lixo que não era seu, mas que está a 'sujar' o seu (e o nosso) mundo. Contudo, salienta, o seu projeto não tem como objetivo limpar o mundo - tarefa que demonstra, aliás, ser praticamente impossível. O seu projeto é um 'abre olhos', para que todos comecem a fazer mudanças no seu estilo de vida e um dia consigam obrigar a mudanças maiores no próprio sistema de consumo.

A ideia nunca foi obrigar as pessoas a limpar, mas sim sensibilizá-las

Como nasce o 'The Trash Traveler'? E com que objetivos?

A quantidade chocante de plástico nos nossos supermercados, no nosso dia a dia, nas praias e no oceano foi algo que me começou a captar a atenção nos últimos anos. Como biólogo molecular, vim para Lisboa, em 2017, para trabalhar num laboratório e também como consultor médico. Em cada minuto livre que tinha, aproveitava para ir à praia para surfar e desfrutar da natureza.

Comecei a reparar, especialmente no inverno, que quando os municípios não estão a limpar as praias, surge uma chocante realidade: plástico por todo a parte. Deixei o meu emprego há dois anos e decidi criar o 'The Tash Traveler' porque queria fazer algo contra isto: alarmar as pessoas e fazê-las abrir os olhos de forma positiva e extraordinária.

O objetivo do projeto não é limpar as praias: "não se trata de limpar". O objetivo é divulgar o problema da poluição plástica e inspirar as pessoas a fazer o mesmo que nós. Não só inspirar as pessoas a limpar, mas também a fazer escolhas sustentáveis e em repensar a nossa produção de lixo. Se conseguirmos cumprir esse objetivo, isso contribuirá para uma mudança de mentalidade crescente na população, o que resulta em pressões sobre as empresas e os governos para que invistam numa economia circular e numa mudança da mentalidade de utilização única. 

Mudou-se da Alemanha para Portugal com o sonho de percorrer o país de autocaravana. O que é que o levou a querer ficar por cá?

Mudei por causa do meu emprego, pela natureza e pelas ondas. O projeto ‘The Trash Traveler’ fez-me ficar em Portugal na medida em que conheci a rede de ONG e iniciativas portuguesas. Em 2020, decidi percorrer cada metro da costa portuguesa (na areia, num total de 1.132 km) em 58 dias, sem um dia de pausa, no âmbito do projecto ‘The Plastic Hike' [Caminhada do Plástico] para mostrar de uma forma louca, que se pode caminhar toda a costa com apenas uma garrafa de água recarregável. Não estava apenas a fazer caminhadas, mas também a "limpar" pelo caminho.

A ideia nunca foi obrigar as pessoas a limpar, mas sim sensibilizá-las, juntamente com uma comunidade de oitenta ONG’s, ambientalistas e campanhas. Quinhentas e cinquenta pessoas acabaram por se juntar ao movimento. 

Este projeto comunitário resultou numa exposição de arte plástica e num documentário de sensibilização sobre a comunidade em Portugal. Esta rede e a quantidade de pessoas que se preocupam em Portugal fizeram-me ficar. Por isso, decidi criar uma grande aventura todos os anos, sendo que a deste ano ficou conhecida como 'The Butt Hike' [A caminhada das beatas].

Em dois meses, no âmbito desse projeto, o 'Butt Hike' [Caminhada da Beata], recolheram 1.1 milhões de beatas de cigarro em Portugal. Diz que esta não é uma mensagem sobre limpeza, mas uma chamada de atenção sobre a poluição dos Oceanos. Que mensagem é essa?

Um bom exemplo é: em dois meses, e com a ajuda de 70 ONG’s e 600 pessoas, foram recolhidas 1,1 milhões de beatas. Contudo, são atiradas ao chão uma média de 7 mil beatas por minuto em Portugal. Ou seja, são precisos dois meses de limpeza para compensar duas horas e meia a atirar beatas para o chão.

É obvio que o meu projeto não é sobre limpeza mas sobre abrir os olhos e mudarmos a nossa mentalidade. As beatas dos cigarros contêm plásticos e toxinas. A maioria das pessoas não sabe que as beatas contêm plástico e, por conseguinte, isso é o exemplo perfeito de que "plástico" e a "poluição por plástico" muitas vezes estão escondidos e nem sabemos onde. Cada ato pode fazer a diferença. Da mesma forma como atiramos algo para o chão, também metemos um cotonete na sanita, e tudo isso vai acabar no oceano. Este projeto tem sido um exemplo para mostrar onde começa a poluição plástica: Nas nossas cidades, nas nossas casas, sempre longe da praia. 

Não é possível limpar a praia, nem as cidades, nem a natureza se o nosso sistema continuar a ser um sistema de utilização única"It's my world but it’s not my plastic" [É o meu mundo, mas este plástico não é meu] é o seu lema. Acredita que a sua mensagem está a ser bem divulgada? O que conquistou até agora?

"It's not about cleaning [Não se trata de limpeza]" é o meu lema atual e sucede a esse "É o meu mundo, mas este plástico não é meu". Isto porque, no início, as pessoas agradeceram-me por limpar a praia. No entanto, não é possível limpar a praia, nem as cidades, nem a natureza se o nosso sistema continuar a ser um sistema de utilização única. Cerca de oito milhões de toneladas de lixo vão parar ao oceano. Se compararmos isso com as 1,6 toneladas de lixo que recolhi durante a minha caminhada, percebemos que isto não é nada. Precisamos de trabalhar na origem dos problemas e para isso é importante aumentar a sensibilização e, consequentemente, a pressão, sobre as empresas e Governos para que eles mudem o sistema.

Admite que há momentos em que perde a esperança de que seja possível tirar todo o lixo do mar. O que é que o mantém motivado a continuar?

Como disse anteriormente, limpo para chamar a atenção para o facto de isto não ser só sobre limpar. Sou realista e acredito que não será possível limpar se continuamos a produzir muito lixo e se os nosso sistema de consumo continuar a ser o de utilização única em vez de uma economia circular. Eu nem sequer estou a tentar limpar, apenas estou a tentar chamar a atenção de que o problema está na origem do problema, ou seja na forma como se consome. [Mantenho a esperança] em todas as pessoas que se juntam a nós e ajudam a limpar porque desta forma mais e mais pessoas irão abrir os olhos.

De que forma é que a Covid-19 – e a obrigatoriedade de ficar em casa – afetou o seu trabalho?

Passei a maior parte do meu tempo na praia. Mesmo em temos de Covid, é nos permitido fazer uma caminhada e com os equipamentos de segurança corretos foi também possível recolher máscaras nas praias e sensibilizar para a rapidez com que o plástico pode chegar à natureza. Enquanto caminhava pela costa portuguesa, encontrei máscaras em praias totalmente remotas, que foram ali parar com a corrente do mar.

Uma equipa de cientistas dos EUA e da China, diz que já se produziu mais de oito milhões de toneladas de lixo de plástico associado à pandemia. Podemos considerar que a pandemia da Covid-19 está a provocar uma nova pandemia, uma pandemia de plásticos nos oceanos?

A Covid-19 está a enfatizar a forma como os nossos sistemas de gestão e de reciclagem de resíduos não são suficientes. Por conseguinte, reduzir a quantidade de plástico e acabar com o ciclo do plástico requer uma maior atenção. Isto consegue-se através de uma maior sensibilização dos consumidores, maior inovação da indústria, maior investimento governamental. Tudo isto é necessário para nos concentrarmos na implementação de uma economia circular.

Só quando as pessoas - incluindo os pescadores que são os maiores responsáveis pela presença de plástico no oceano - virem valor no seu lixo, é que passarão a cuidar dele e a eliminá-lo de forma correta das suas vidas

A ONU prevê que a poluição causada por plásticos duplique até 2030. Como podemos evitar isto?

Apenas podemos preveni-lo se trabalharmos em soluções de economia circular e em novas soluções de embalamento. Em Portugal, as ONG's estão também a trabalhar na  implementação de um sistema de depósito para garrafas. Isto dará valor às garrafas e as pessoas irão trazê-las de volta. É um sistema importante para impedir a entrada de plástico na natureza. E é também um exemplo para mais pessoas implementarem para ajudar a prevenir a poluição. Só quando as pessoas - incluindo os pescadores que são os maiores responsáveis pela presença de plástico no oceano - virem valor no seu lixo, é que passarão a cuidar dele e a eliminá-lo de forma correta das suas vidas.

Este documento foi lançado cerca de 10 dias antes do início da COP26. Acha que o acordo conseguido vai ajudar de algum modo a evitar esta situação?

Como a maioria dos compromissos assumidos na COP, este terão de ser autopolitizados e, como o acordo não é de todo suficiente para atingir os prometidos 1,5º C do aquecimento global, também não acredito que venha a baixar o número estimado de poluição de plástico até 2030. Note-se que foi acordada a eliminação gradual dos subsídios que reduzem artificialmente o preço do petróleo, no entanto, não foram estabelecidas datas que possam exercer pressão sobre os produtores de plástico. Sabendo-se que se estima que a utilização do petróleo está a aumentar para a produção de plástico, será ainda mais difícil conseguir controlar a gestão do plástico.

Apesar de os efeitos negativos do aquecimento global serem para todos, a verdade é que nem todos estamos igualmente empenhados em tentar combater este problema. Qual é a melhor forma de incentivar os outros a juntarem-se a si nesta missão?

Passei muito tempo a pensar no propósito do meu projeto e no seu nome – 'The Trash Traveler'. Houve alturas em que receei que vissem o meu trabalho reduzido apenas a um coletor de lixo. Contudo, estou cada vez mais feliz com a minha escolha precisamente por causa da questão que colocou: alguém que não se importa, ou não está bem consciente ou motivado para fazer alguma coisa, está agora a ser alarmado para uma crise climática super complexa. As pessoas que nunca fizeram ou pensaram em algo relacionado com questões ambientais, precisam de ser alcançadas de uma forma mais leve.

A coisa mais fácil para todos é pegar numa beata ou num pedaço de plástico. Porque todos percebem que nenhuma destas coisas deveria estar no chão. Neste momento, quem apanha lixo do chão não precisa de se questionar sobre os seus próprios hábitos ou sobre a sua pegada pessoal. Porque é fácil de perceber, simplesmente, que aquilo não devia estar no chão. E este pequeno ato pode relacioná-lo de forma silenciosa ao início de algo e a levá-lo a questionar ‘porquê?’. Acredito que através de um simples ato, posso levar as pessoas perceber de forma gradual o caso na sua totalidade.

Leia Também: 'Menos Poluição Sonora em Lisboa' resulta na aprovação de recomendações

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