"Não é um conflito entre Rússia e Ucrânia. É entre a Rússia e o Ocidente"
Pavlo Sadokha, presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.
© Global Imagens
País Pavlo Sadokha
Quando, desde cedo, começou a ouvir as histórias aterradoras do que tinha acontecido na Ucrânia, no tempo dos seus avós, Pavlo Sadokha pensou até que pudesse ser "exagero". Nascido em Lviv, vê agora a sua geração "também" a passar por "todos estes horrores".
E é a partir de Portugal que ajuda. O presidente da Associação dos Ucranianos no nosso país, afirma que "já todos perceberam" que os seus compatriotas "não se vão render." Daqui, faz um "balanço muito positivo" do apoio institucional e social que quem chega recebe: "Os portugueses, estão a fazer o máximo possível. Isto é evidente, sentimos isso em tudo".
Quanto ao futuro, não tem dúvidas e, em entrevista ao Notícias ao Minuto, salienta que os conflitos podem (apenas) estar a começar.
A Rússia não vai parar na Ucrânia e vai também continuar até ao Atlântico. O plano de Putin é igual ao plano da União Soviética na altura da Guerra Fria
O que sente quando ouve as informações e vê as imagens que todos os dias nos chegam da Ucrânia?
Na verdade, fazem-me lembrar daquilo que me contava a minha avó quando era criança. As histórias do que o povo ucraniano viveu no século passado, antes e depois da Segunda Guerra Mundial. Sempre pensei que estas coisas não poderiam acontecer, não imaginava a realidade de tudo isso que eles contavam e que sobreviveram. Mas, afinal, passados cerca de cem anos, a nossa geração também tem de acompanhar todos estes horrores que eles passaram. Não mudou nada. São as mesmas forças – na altura, ainda eram os alemães nazis, mas o exército vermelho da Rússia fazia as mesmas coisas que faz agora o exército russo de Putin.
A minha avó sobreviveu ao grande Holodomor, à grande fome, em 1932. O irmão dela vivia em Moscovo e conseguiu ir buscar a família e, assim, ela salvou-se. Contou à minha mãe – que me contou a mim –, que viu valas comuns com pessoas lá sepultadas. Dizia até que viu pessoas vivas misturadas com mortos. As pessoas desesperadas nas ruas. Sempre pensei que tinha inventado um pouco. Que isso não podia acontecer.
Que poderia ser um exagero…
Sim. Afinal, não era exagero. Afinal, isso pode acontecer e aconteceu, infelizmente.
Ele [Putin] disse, claramente, que quer que os ucranianos desapareçam. A única forma de agora ajudar a Ucrânia é fornecer armas, aplicar mais sanções
Pensa que a Europa – a comunidade internacional - está a fazer o necessário para ajudar o seu país?
Se fosse feito o necessário não havia estas mortes, por isso alguma coisa não corre muito bem. Nós sabemos que, apesar de os russos agora terem recuado, estão a preparar outra vez as forças para atacar. Ou, então, ainda um pior cenário que é poderem atacar numa ofensiva mais mortífera, como uma bomba nuclear ou armas químicas ou biológicas. Já acredito absolutamente que [Vladimir] Putin as pode usar na Ucrânia.
Acho que, neste momento, já não há possibilidades de negociar com tiranos. Ele [Putin] disse, claramente, que quer que os ucranianos desapareçam. A única forma de agora ajudar a Ucrânia é fornecer armas, aplicar mais sanções. Parar aquele país para o próprio povo perceber que está a ser feito algo de mal.
Pensa, então, que são necessárias mais armas para a Ucrânia e mais sanções para a Rússia.
Sim, sim. São essas coisas principais que o nosso presidente [Volodymyr Zelensky] e nós sempre apoiámos: é preciso bloquear completamente a Rússia e dar a possibilidade aos ucranianos de se defenderem. Já todos perceberam que os ucranianos não se vão render.
Alguma vez na vida negociações com criminosos deram algum resultado? Imagine um cenário do século passado: negociar com o Hitler. Negociar o quê?
Acredita na possibilidade de negociação com a Rússia? Já existiram várias reuniões entre russos e ucranianos e diversas ofertas para mediação…
Alguma vez na vida negociações com criminosos deram algum resultado? Imagine um cenário do século passado: negociar com Hitler. Negociar o quê? Nós gostaríamos de acreditar e que tudo isto parasse de imediato, mas o plano de Putin... E até há poucos dias Medvedev, que era também presidente da Rússia - falso, digamos assim -, disse que os planos da Rússia eram criar um império de Vladivostok até Lisboa. Vamos negociar o quê? Vamos dar o Alentejo aos russos para ele parar? Não é por aí.
Que comentário lhe merece essa afirmação de Medvedev?
Desde 2014 [ano da anexação da Crimeia] que a nossa comunidade cá em Portugal fez centenas e centenas de manifestações e sempre dissemos que isto não é um conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Este é um conflito entre a Rússia e todo o mundo do Ocidente. A Rússia não vai parar na Ucrânia e vai também continuar até ao Atlântico. O plano de Putin é igual ao plano da União Soviética na altura da Guerra Fria.
É reconstruir um império?
Exatamente, reconstruir o império soviético. Reconstruir, mas com outra ideologia. Eles mudam o nome, mudam a cor da bandeira, mas, no fim, têm um objetivo chauvinista, imperial. Construir um império com um único partido que toma decisões por todos os povos.
Defende a entrada da Ucrânia na União Europeia e na NATO?
Sempre defendemos isso. Acreditamos que, se a Ucrânia tivesse entrado na NATO, isto não acontecia agora. A história de que os russos iniciaram esta invasão para a NATO não se alargar é só história… uma desculpa inventada para atacar a Ucrânia. A NATO nunca ameaçou a Rússia, nem fazia ideia de ameaçar. É ao contrário: a Rússia é que fazia ideia de expandir as suas forças, por as suas tropas nos países perto da NATO. A NATO nunca foi um problema para a Rússia, só para os líderes agressivos. Mas, neste momento, era difícil que a Ucrânia entrasse na NATO.
Contudo, se esta guerra terminar, a Ucrânia tem de entrar. No futuro, a Ucrânia tem de fazer parte de estruturas europeias de defesa do Ocidente. E não acredito que, mesmo que Putin saísse do poder na Rússia, que fosse fácil que a sociedade russa mudasse a sua estratégia e a sua visão sobre a defesa mundial e a paz no mundo.
Sabemos que a Rússia não luta só no campo de batalha, na linha da frente, mas também luta com os seus agentes, agentes políticos, e até com partidos em alguns países do Ocidente
E Portugal? Estamos a fazer o tudo o que poderíamos?
Portugal, enquanto sociedade, os portugueses, estão a fazer o máximo possível. Isto é evidente, sentimos isso em tudo: no nosso trabalho, na nossa vida, nos nossos vizinhos. Querem sempre ajudar os ucranianos e nós agradecemos. Se olharmos para o apoio institucional, político, Portugal desde o primeiro dia desta guerra, nas palavras do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e, depois, do primeiro-ministro, António Costa, condenou a agressão russa e apoiou a Ucrânia.
Mas gostaríamos que isso continuasse. A firmeza de cada país acerca da agressão ajuda muito a defender a Ucrânia e nós sabemos que a Rússia não luta só no campo de batalha, na linha da frente, mas também luta com os seus agentes, agentes políticos, e até com partidos em alguns países do Ocidente. O facto de, por exemplo, terem sido expulsos dez agentes da embaixada russa também é um sinal de que Portugal está com a Ucrânia. E estão a defender não só a Ucrânia, mas também o seu interesse contra os agressores.
Como estão a ser recebidos os ucranianos que vieram para Portugal em fuga da guerra? Como está a ser o processo de acolhimento?
Acho que o balanço é muito positivo. O problema maior é o linguístico, porque os que vêm não foram preparados para emigrar – foram expulsos do seu dia a dia. Alguns ficaram sem nada, estão psicologicamente desorientados e os portugueses dão todo o carinho e solidariedade para se sentirem bem. Quando vem alguma família ucraniana, até mesmo as que não conhecemos, eles telefonam-nos e dizem: ‘Nós fugimos, o que é que temos de fazer a seguir?’ E logo aparece uma família portuguesa que diz que os pode acolher no momento, sem conhecerem as pessoas. Sem se prepararem. ‘Podem vir que já vamos fazer o jantar’. Isso, às vezes, até nos leva a sentir as lágrimas por esta humanidade que sentimos que os portugueses nos dão a nós, ucranianos, neste tempo difícil.
Mas as medidas, os recursos que o Governo deu, também acho que são positivos, porque já foram criadas respostas para os problemas. Ninguém ficou sem casa, ninguém ficou sem atenção. Pode ser que alguns processos demorem, mas isso é normal. Portugal também não é um dos países mais ricos.
Reforcei pessoalmente à Embaixadora da #Ucrânia em #Portugal, Inna Ohnivets, a nossa solidariedade para com o povo ucraniano. Solidariedade com medidas concretas, concertadas com os parceiros europeus e da @NATO mas também a nível nacional para proteção temporária dos deslocados. pic.twitter.com/4QZiZcB897
— António Costa (@antoniocostapm) March 2, 2022
Mas dentro das possibilidades do país sente que são acompanhados.
Exato. Agradecemos a todos os portugueses que, mesmo com dificuldades económicas, percebem o problema dos ucranianos e ajudam. Mesmo não tendo muito estão a dar muito para ajudar.
Uma organização que há meses defendia a política de Putin e agora, de repente, diz que está a ajudar os refugiados ucranianos… qualquer coisa não está bem
A Associação dos Ucranianos em Portugal, da qual é presidente, denunciou a existência de "agentes infiltrados russos" no nosso país. Em que se baseiam essas afirmações?
Isso não acontece só em Portugal. Isso é um sistema que a Rússia criou há anos, antes desta invasão. Criaram uma agência estatal russa e uma fundação que fazia, no mundo Ocidental e também na Ucrânia, um papel de propaganda de desinformação. E nós sabíamos isso. Só que, agora, com o início desta guerra, de repente, mudaram 'a cor' e começaram a recolher bens de ajuda humanitária para a Ucrânia e não percebemos qual é o destino destas recolhas. E também outra questão: estão a acolher os ucranianos refugiados da guerra e isso é perigoso, porque podem ficar com dados pessoais, informações estratégicas para a Ucrânia. Isso pode trazer perigo até para a vida das pessoas.
Por exemplo: está cá a mulher e os filhos de algum combatente que está na Ucrânia e eles facilmente podem ganhar a confiança e saber muita coisa sobre o marido. Contactos e outras informações que, em tempos de guerra, são perigosas de dar. E vão também continuar a fazer o mesmo tipo de influência nestas pessoas que estão agora numa situação psicologicamente má e que são alvos fáceis para trabalhar a propaganda. E, por isso, nós denunciamos que, em tempos de guerra, estas organizações têm que ser verificadas e tomadas medidas para que não consigam fazer este trabalho.
Nós não exigimos que estas organizações sejam fechadas, mas os ucranianos que venham têm de perceber com quem falam. Porque uma organização que há meses defendia a política de Putin e, agora, de repente, diz que está a ajudar os refugiados ucranianos… qualquer coisa não está bem. Os ucranianos têm de ser avisados e também os portugueses têm que perceber que podem ter relações não com uma organização de ucranianos, mas que tem contactos diretos com a embaixada russa, com serviços russos… ter isso em atenção.
Ainda tem família atualmente na Ucrânia?
Fui buscar a minha família direta – a minha irmã, os meus pais e os meus sobrinhos – e estão agora aqui comigo. Tenho muitos amigos e ainda outros parentescos ainda na Ucrânia, com quem falo.
Quando falo com os meus amigos que estão lá na linha da frente, naquelas cidades com combates, para eles já parece um jogo. Falam com naturalidade: 'Vamos ali agora abater mais um blindado russo e já voltamos a falar'.
Qual a situação em que se encontram? Que relatos lhe chegam do país?
Infelizmente, já perdemos alguns amigos nesta guerra e, na verdade, se não fosse o trabalho que tenho aqui para fazer – e que é importante para a comunidade – já tinha ido para lá. É essa a vontade que tenho e que quase todos os ucranianos têm.
E há uma coisa estranha que sentimos: depois do primeiro choque, depois dos primeiros bombardeamentos do dia 24 de fevereiro, quando os ucranianos não se renderam, quando o presidente da Ucrânia não se rendeu… os ucranianos mudaram. Agora, quando falo com os meus amigos que estão lá na linha da frente, naquelas cidades com combates, para eles já parece um jogo. Falam com naturalidade: 'Vamos ali agora abater mais um blindado russo e já voltamos a falar'. Têm uma voz completamente sem medo e todos acreditam que vão ganhar. E nós todos acreditamos que vamos vencer esta guerra.
Pensa que as imagens que vimos de Bucha se repetirão noutras cidades?
O que vimos em Bucha… Mesmo aquelas histórias que ouvimos dos nossos avós, infelizmente, não vou dizer que todos, mas a maioria do povo russo não mudou o seu comportamento. Estas imagens que vimos, isto não é normal. Não é humano. É algo que não conseguimos explicar. Uma coisa é uma guerra entre soldados e pronto, infelizmente os humanos são assim. Mas quando a sangue frio se matam pessoas que simplesmente estão na rua - como nós assistimos -, queimarem-se pessoas que são civis, violar e matar mulheres, matar crianças… isso é algo que não cabe na cabeça, que vemos nos filmes, na ficção, e pensamos: ‘Isto só pode ser inventado’. Afinal não. Afinal pode ser tudo real.
Não tenho solução mas, em primeiro lugar, temos de os parar todos juntos, não só os ucranianos, mas todo o mundo. Temos de parar esta guerra e, a seguir, temos muito trabalho para tentar mudar a mente deste povo que quer guerras e que quer matar, expandir-se… não sei que mais querem. Mas paz não querem.
Zelensky está no lugar dele. Temos um presidente que foi eleito para defender e não para render o país
Como vê a posição do presidente Volodymyr Zelensky durante esta guerra? É um herói nacional?
Quando Zelensky foi eleito eu, por exemplo, não votava Zelensky. Estava contra. O facto de ele ser comediante… Até ao início da guerra não acreditava e tinha alguns receios. Mas este terror que nós sentimos, esta invasão tão injusta, parece que mudou tudo. E agora o que acontece é que não temos partidos na Ucrânia. Nós temos um povo ucraniano que está a defender a sua vida e a sua pátria. E Zelensky está no lugar dele. Está como presidente e faz aquilo que acho que cada presidente tem de fazer: está a defender o nosso país. Temos um presidente que foi eleito para defender e não para render o país.
Que mensagem gostaria de deixar aos portugueses tendo em conta o que o país tem feito até agora e o que poderá ainda vir a fazer para ajudar a comunidade ucraniana?
Todas as manifestações que nós organizamos, quase a cada semana, para apoiar a Ucrânia, para chamar a atenção do que se passa, nós começamos por gritar: 'Obrigado Portugal'. E isso é do coração de cada ucraniano. Um grande agradecimento a todos os portugueses e a Portugal por todo o apoio que dão.
Mas a outra mensagem é que esta guerra não é só com a Ucrânia. Esta guerra é entre um império que quer tudo fechado e o mundo livre, como é Portugal. Esta guerra também é dos portugueses, dos ucranianos, de todas as pessoas que defendem valores humanos, paz e a Democracia.
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