Portugal tem uma "brigada anti-hepatite disponível 24h por dia"
Rui Tato Marinho, diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais, é o entrevistado desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.
© Global Imagens
País Rui Tato Marinho
Desde que o Reino Unido lançou o alerta de que 10 crianças teriam sido internadas num quadro de hepatite grave e desconhecida, a 5 de abril, que os casos se têm multiplicado um pouco por todo o mundo. Em Portugal, as contingências começaram a ser preparadas mesmo antes de o primeiro caso suspeito ter sido identificado, através da criação de uma 'task force' de monitorização. Com nove casos em análise, Rui Tato Marinho, diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais, garante que o país dispõe de todas as ferramentas “para que as coisas não corram mal, se alguma criança precisar de nós”.
Em conversa com o Notícias ao Minuto, o diretor do Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) adianta o surto "de origem desconhecida", anunciado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a 15 de abril, apresenta, na sua génese, sintomas gastrointestinais – como dores abdominais, diarreia e vómitos –, assim como a elevação das enzimas do fígado. Se em alguns casos o 'culpado' poderá ser um adenovírus, noutros o coronavírus parece ser o 'agente misterioso'. O que é facto é que "não há certezas neste momento".
Os últimos dados divulgados pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, na sigla inglesa), que criou um Grupo de Crise para vigiar a doença, relatam a existência de, pelo menos, 450 casos de hepatite aguda infantil em todo o mundo, que já provocou a morte de 11 crianças. Contudo, o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) assegura que não se trata de “um foco explosivo”, reiterando que Portugal tem a seu lado “uma brigada anti-hepatite disponível durante 24 horas por dia”.
Mesmo antes de aparecer o primeiro caso em Portugal, já estávamos à defesa para atacar o que quer que fosse
O que é que poderá estar por detrás deste surto de hepatite aguda ou atípica? O que é que já sabemos?
Temos algumas evidências. Manifesta-se em crianças pequeninas, com uma média de três anos de idade, e tem um índice de gravidade superior ao que estamos habituados, em que 10% pode necessitar de um transplante. Houve também alguma concentração de casos numa região, no Reino Unido e países vizinhos. Numa determinada percentagem de casos, foi encontrada a presença do adenovírus – uma forma chamada F41 –, e alguns também tiveram infeção pelo SARS-Cov-2, o que poderá ter tido um efeito facilitador, com os dois vírus em comum.
Outra característica é que não se sabe ainda a causa, mas há algumas pistas. O que é facto é que há uma frequência grande de crianças com hepatite aguda, com transaminases muito elevadas - análises do fígado muito elevadas -, o que não é habitual. Ainda hoje falei com uma pediatra do Hospital de Santa Maria, que disse que não via uma hepatite destas há não sei quantos anos.
E por que é que o ECDC decidiu recuar até outubro para localizar potenciais casos suspeitos?
Estamos a falar de uma hepatite desconhecida, um 'criminoso' que não sabemos quem é, e que pode ter começado a atuar já há uns meses. Interessa olhar com novos olhos para algumas das hepatites raras que tenham acontecido há uns meses, sabendo que anda por aí uma entidade desconhecida, ou que entretanto aumentou a sua incidência, para colher toda a informação sobre crianças com menos de 16 anos que tenham tido hepatite aguda nos últimos seis meses. Poderá até levar à descoberta de mais uma dezena de casos.
1. Interesting update on #PediatricHepatitis from @ECDC_EU + @WHO_Europe. It contains the first epicurve I've seen, which is very helpful because reported cases include current & previous cases found through record searches. The 1st case here dates to Sept 2021. pic.twitter.com/16rST1K7F5
— Helen Branswell 🇺🇦 (@HelenBranswell) May 13, 2022
Mencionou a presença do SARS-CoV-2 em alguns casos; há especialistas que consideram que a doença poderá dever-se a uma causa infecciosa, lançando até que a Covid-19 poderá ter tido influência na mesma. Partilha, então, da mesma opinião?
Sim. Quando não se sabe uma causa com certeza absoluta, devemos colocar várias hipóteses de trabalho, umas mais prováveis do que outras. Daqui a seis meses, provavelmente com mais casos, com mais investigação de laboratório e clínica, poder-se-á chegar a uma conclusão mais efetiva. Qual é a conclusão mais certa? É uma hepatite de causa desconhecida, portanto tenho de colocar várias hipóteses e seguir essas pistas que os médicos colocam.
Neste momento, o que é que essas “pistas” indicam?
Em alguns casos pode ser o adenovírus, outros o coronavírus, outros podem não ter causa. Não há certezas neste momento. Aliás, em Portugal não existem casos confirmados – temos casos prováveis e em investigação.
Para prevenir, tem sido falado por todo o lado uma medida muito simples, que é lavar as mãos. É um pouco como andarmos na rua e protegermo-nos da chuva ou de um criminoso
Tendo em conta que não são só crianças a ser afetadas, uma vez que a doença também já se manifestou em adolescentes com 16 anos, como é que é possível preveni-la?
Dos dados que tenho visto dos vários países, a grande maioria são crianças com menos de cinco anos. Se o meu neto, que tem cinco anos, aparecer com febre e com dores, pode haver alarme, porque está no grupo de mais risco. Se o meu sobrinho, com 16 anos, aparecer com esses sintomas, ficarei mais descansado. Para prevenir, tem sido falado por todo o lado uma medida muito simples, que é lavar as mãos. Recomendaria lavar as mãos enquanto se conta até 10, e higiene respiratória, se for o caso de um vírus, o que ainda não temos a certeza. É um pouco como andarmos na rua e protegermo-nos da chuva ou de um criminoso.
Quais os sinais a que os pais devem estar atentos?
Devem ficar atentos se a criança estiver doente, com febre, vómitos, diarreia, prostrada, deixar de ter apetite. Além disso, se apresentar o sinal mais típico do fígado, que é a cor amarela nos olhos – a chamada icterícia –, que implica uma situação de mais gravidade, em que a pessoa deve ir para o hospital. Na maioria dos casos corre bem, mas implica fazer análises ao fígado.
Estamos preparados para o que for preciso, com uma brigada anti-hepatite disponível durante 24 horas por dia
E quais as opções de tratamento disponíveis, uma vez que ainda não se determinou uma causa?
Não há tratamento. Se for um vírus, poderia começar a experimentar vários medicamentos antivíricos. Não há muitos, mas há antivíricos muito eficazes, que até curam a hepatite C, por exemplo. Mas como não sei qual é o agente infeccioso, vou tratar as consequências da desidratação, e tentar parar a diarreia. Se a criança ganhar outra infeção, o que pode acontecer quando o fígado começa a falhar, tratarei disso. Se começar a ter hemorragias, a mesma coisa. É um tratamento global e não específico. Se o fígado falhar, há a opção do transplante – não é o mais frequente, mas pode acontecer. Agora, em 10 crianças, há uma que precisou de fazer qualquer coisa, o que é muito mais frequente em relação ao que estamos habituados neste tipo de hepatites.
Por enquanto, Portugal continua sem casos confirmados, apesar de ter nove situações suspeitas. Que contingências é que temos preparadas, no caso de isso vir a acontecer?
Portugal está muito bem preparado. Criámos uma ‘task force’, que é o corpo de intervenção anti-hepatite, composta por 13 elementos de várias vertentes – médicos, enfermeiros, especialistas em saúde pública, e jornalistas. Mesmo antes de aparecer o primeiro caso em Portugal, já estávamos à defesa para atacar o que quer que fosse. Temos reunido periodicamente, comunicamos todos os dias, ouvimos a opinião de colegas no estrangeiro, contactamos com a Organização Mundial da Saúde (OMS), e com estruturas europeias.
Estamos preparados para tudo o que vier e, além disso, temos uma excelente pediatria, com mais de dois mil pediatras no terreno. Temos excelentes mães, excelentes avós, excelentes cuidadores, sempre preocupados com as crianças – alguns um pouco mais alarmados, mas vamos tentar acalmar as pessoas. Temos uma excelente equipa para fazer transplantes hepáticos, já muito oleada. Acho que temos tudo para que as coisas não corram mal, se alguma criança precisar de nós.
Tendo em conta as circunstâncias em que vivemos, considera que há motivo para alarme?
Claramente que não. Não é uma epidemia, não é uma pandemia, não é um foco explosivo. É uma coisa que nos faz alguma confusão, que nos incomoda de alguma maneira pelo desconhecido, mas não estamos em pânico. Estamos preparados para o que for preciso, com uma brigada anti-hepatite disponível durante 24 horas por dia.
Do ponto de vista até das doenças do fígado, é uma oportunidade para as pessoas saberem que o fígado existe, que é um órgão vital, e que pode sofrer agressões
Caso se confirme um surto no nosso país, que consequências em termos de saúde ou de literacia em saúde poderá isso trazer para a nossa sociedade?
Uma coisa má, ou menos boa, pode ser uma oportunidade de literacia em saúde, e de promover o acesso ao contacto médico. Aqui, do ponto de vista até das doenças do fígado, é uma oportunidade para as pessoas saberem que o fígado existe, que é um órgão vital, e que pode sofrer agressões. Também que Portugal tem uma das melhores vacinações para a hepatite B em crianças, com a qual praticamente conseguiu acabar, e que temos tratamentos para a hepatite C e um excelente transplante hepático.
Considera que esta hepatite poderá colocar em causa a meta estabelecida com a OMS de erradicar as hepatites até 2030?
Não tem nada a ver. Antes pelo contrário, porque, se calhar, deu mais voz ao Programa Nacional para as Hepatites Virais, e isso pode ajudar a criar uma consciencialização em relação ao fígado, o que acaba por ser uma ‘publicidade gratuita’ por uma boa causa. Temos salvado algumas vidas assim, [através da comunicação social]. Brincando um bocadinho com as palavras, é ‘pôr o fígado na cabeça das pessoas’. O fígado existe, é um órgão muito silencioso, é um monstro adormecido. Aliás, recomendo que façam análises pelo menos uma vez na vida para a hepatite B e C e, cada vez que fizerem análises, vejam os valores das transaminases. Se estiverem alteradas, beber menos álcool ou emagrecer poderá reduzir o risco de morte.
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