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Fim da 'era Temido'. Resiste à pandemia, mas sucumbe a caos das Urgências

Marta Temido assumiu a pasta da Saúde em 2018. Depois de várias polémicas, mas também algumas vitórias, diz agora definitivamente adeus ao cargo de ministra da Saúde.

Fim da 'era Temido'. Resiste à pandemia, mas sucumbe a caos das Urgências
Notícias ao Minuto

09:41 - 30/08/22 por Notícias ao Minuto com Lusa

País Saúde

Foi na madrugada desta terça-feira que Marta Temido apresentou formalmente a demissão ao primeiro-ministro, António Costa, por "entender que deixou de ter condições para se manter" no cargo de ministra da Saúde. O chefe do Governo respeitou a decisão e aceitou o pedido.

O primeiro-ministro "agradece todo o trabalho desenvolvido" por Marta Temido, "muito em especial no período excecional do combate à pandemia da Covid-19".

Nos últimos meses, as falhas em torno do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a suspensão de serviços de urgência obstétrica por falta de profissionais de Saúde fizeram multiplicar os pedidos da oposição para que Marta Temido se demitisse, mas, na verdade, a ministra cujo ponto alto da sua governação foi o combate à pandemia de Covid-19 resistiu a muitas outras controvérsias desde que, em 2018, sucedeu a Adalberto Campos Fernandes na pasta. 

Não foi, ainda, revelado quem irá suceder a Marta Temido, mas, no mesmo comunicado, António Costa indicou que "o Governo prosseguirá as reformas em curso tendo em vista fortalecer o SNS e a melhoria dos cuidados de saúde prestados aos portugueses", dando uma ideia de que pretende manter a continuidade das reformas planeadas. Em cima da mesa, está o nome de António Lacerda Sales, mas há quem avance, também, com o nome de Fernando Araújo, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário São João.

Pode, também, não ser escolhido nenhum substituto imediato. "O primeiro-ministro gostaria que ainda fosse Marta Temido a levar ao Conselho de Ministros o diploma que regula a nova direção executiva do SNS" e que considera uma "peça central da reforma iniciada com a aprovação do Estatuto em julho passado", disse à agência Lusa fonte próxima do Governo, dando a entender que a escolha de um sucessor "não será rápida".

A gestão público-privada

Recuemos a esse mesmo ano, 2018, quando no final de uma audição na comissão parlamentar de Saúde, Marta Temido anunciou que o Hospital de Braga ia voltar à esfera do SNS por "indisponibilidade definitiva" do gestor privado - grupo José de Mello - em prolongar o contrato de gestão público-privada. Sem tempo para um novo concurso, a ministra disse que o gestor privado não estava interessado no prolongamento do contrato. 

Contudo, o grupo José de Mello Saúde desmentiu esta versão e seguiram-se as acusações mútuas. Em causa estavam as condições do contrato devido aos tratamentos do VIH/sida, esclerose múltipla e Hepatite C, que levou mesmo o grupo a reclamar ao Estado os custos do tratamento em ambulatório destes doentes.

Mais tarde, em abril, foi conhecida a decisão do Governo de desistir definitivamente de lançar um novo concurso e o hospital, até então gerido em regime de PPP, voltou às mãos do Estado. 

Mas a polémica em torno das PPP estendeu-se. Com a nova Lei de Bases da Saúde, as parcerias público-privadas foram o 'elefante na sala'. O PS queria que a nova lei expressasse que a gestão dos estabelecimentos de saúde é pública, "podendo ser supletiva e temporariamente assegurada por contrato com entidades privadas ou do setor social", mas os partidos à esquerda mostraram-se contra, não querendo a referência a entidades privadas na gestão da saúde. 

Na altura, o Bloco de Esquerda anunciou que havia chegado a um acordo com o PS, estabelecendo que as atuais PPP podiam ir até ao fim e "a partir daí", não havia mais PPP. Mas o PS negou ter fechado qualquer acordo "com um partido em particular", o que levou o BE a acusar o Governo de recuos.  

"Privilegiar, digo eu, o criminoso, o infrator"

Outra controvérsia está relacionada com os enfermeiros dos serviços de cirurgia, que se encontravam no final de 2018 numa longa paralisação. Na altura, Marta Temido disse que não ia negociar com os enfermeiros e acabou por dizer uma polémica frase. “Isso nem sequer seria correto para com as estruturas que decidiram dar-nos o benefício de continuar à mesa e a negociar connosco. Isso estaria a privilegiar, digo eu, o criminoso, o infrator”, disse, em dezembro de 2018.

Após várias críticas, Temido viria a pedir mais tarde desculpa através de Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros.

"Há sempre espaço para as pessoas poderem corrigir trajetos, caminhos e formas de estar", afirmou à agência Lusa, naquela altura, a representante dos enfermeiros.

A "chantagem" à ADSE

Também a ameaça das convenções dos grupos privados com a ADSE, sistema de saúde dos funcionários públicos, gerou preocupação - suspensão que se seguiu depois de a ADSE exigir aos grupos privados o pagamento de um total de cerca de 38,8 milhões de euros relativos a excessos de faturação ao Estado.

Na altura, Marta Temido recusou pactuar com "qualquer chantagem". "Não pactuaremos nunca com qualquer chantagem de onde quer que ela venha e é evidente que utilizaremos todos os meios que ao nosso dispor existem, como já o fizemos relativamente a outros temas, para defender os beneficiários da ADSE", disse, acreditando que seria "possível chegar a um acordo com os prestadores privados".

No final, os privados acabaram por continuar com ADSE, depois de esta dar a garantia de que as regularizações retroativas iam acabar em 2019. 

"Atitude persecutória" aos enfermeiros?

Marta Temido voltou a estar no centro das atenções em abril de 2019, quando pediu à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde para realizar uma sindicância à Ordem dos Enfermeiros, o que a bastonária considerou "uma atitude persecutória nunca antes vista".

O pedido surgiu depois de a governante ter enviado para Procuradoria-Geral da República um alerta sobre a Ordem e uma alegada relação com o incitamento à greve cirúrgica.

A  bastonária Ana Rita Cavaco acusou a ministra de usar o seu cargo para perseguir a Ordem e entendeu que se impunha uma atitude do Presidente da República.

Listas de espera da Administração Central do Sistema de Saúde

No mesmo mês seguiu-se a polémica com as listas de espera manipuladas pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), quando esta era presidida por Marta Temido. Um relatório dado a conhecer pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, confirmou que a ACSS retirou doentes das listas de espera para consultas e cirurgias entre 2014-2016.

Na altura, Marta Temido considerou uma "suspeição intolerável" dar a entender que houve eliminação de doentes das listas de espera para consultas ou cirurgias e que foram usados mecanismos para mascarar os números. Marta Temido repudiou "veementemente" que tenha havido doentes apagados ou eliminados das listas de espera "com uma intenção fraudulenta". 

"O objetivo foi sempre ter informação mais fiável a partir de instrumentos que não foram pensados na origem para dar informação do tipo que nós hoje queremos extrair deles", indicou, na altura, numa entrevista à Lusa.

O pedido de "resiliência" aos médicos

Já em 2020 foi o seu pedido de "resiliência" aos médicos que originou controvérsia e que, mais tarde, levou a então ministra da Saúde às lágrimas.

As afirmações foram feitas numa audição na comissão parlamentar de Saúde sobre 'Dificuldades que o Centro Hospitalar de Setúbal' está a enfrentar", requerida pelo PCP, e na qual Temido disse que era preciso pensar "nas expectativas e na seleção destes profissionais".

"Também é bom que todos nós, enquanto sociedade, e isto envolve várias áreas, pensemos nas expectativas e na seleção destes profissionais, porque porventura outros aspetos como a resiliência, são aspetos tão importantes como a sua competência técnica. Estas são profissões, de facto, que exigem uma grande capacidade de resistência, de enfrentar a pressão e o desgaste e temos que investir nisso", disse Marta Temido.

Após várias críticas, a ministra acabou a pedir desculpa: "Não disse aquilo que se refere que disse. Não disse em momento nenhum que é necessário recrutar profissionais mais resilientes. Disse que é necessário que todos façamos um investimento em mais resiliência, sobretudo quem trabalha em áreas tão exigentes como as da saúde. Se causei uma má interpretação, peço desculpa por isso. Genuinamente, do fundo do coração".

A saída de Jamila Madeira

Também durante a pandemia, a saída de Jamila Madeira como secretária de Estado Adjunta e da Saúde deu que falar, uma vez que a socialista não pareceu compreender a decisão de Temido. "Estou muito surpreendida com a opção da ministra", confessou. 

O caos nos serviços de urgência (e as escolhas feitas "nos anos 80")

Mais recentemente, o caos na Saúde e nas urgências obstétricas por falta de profissionais para assegurar escalas levou a vários pedidos de demissão. A ministra da Saúde reconheceu que os problemas nos serviços de urgência "resultam naturalmente de fragilidades ao número de recursos humanos disponíveis no SNS para assegurar as escalas" e apresentou apresentou, em junho, medidas a tomar para fazer frente à falta de médicos no SNS, nomeadamente uma comissão de acompanhamento.

Marta Temido confessou, perante os partidos da oposição, que "tudo o que falha" no SNS "é responsabilidade política da ministra" e pediu, por isso, desculpa, ressalvando que deve deixar melhores condições do que as que encontrou. 

Os problemas continuaram e, já este mês, Marta Temido terá telefonado a diretores de serviço de vários hospitais SNS a questionar por que não tinha cancelado as férias dos médicos, de forma a suprir as falhas nas escalas que têm provocado encerramentos de serviços em hospitais de todo o país. A denúncia foi feita pelo Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

Na última semana, a ministra voltou a estar debaixo de fogo depois de atribuir os constrangimentos atuais a escolhas feitas "nos anos 80".

"O facto de termos um número de médicos em determinadas especialidades que é insuficiente para a rede de prestação de cuidados de saúde que hoje temos - insuficiente e, em termos etários, desadequado daquilo que precisamos de garantir - não é o resultado de uma escolha de hoje, ontem ou do ano passado. É o resultado de uma escolha que foi feita há várias décadas, nos anos 80, quando o acesso aos cursos de medicina estava altamente limitado, o que levou a que tivéssemos agora o reflexo dessa escolha", disse Marta Temido, em conferência de imprensa, após uma reunião do Conselho de Ministros.

Entre críticas, várias pessoas acusaram o Governo de ‘descartar’ responsabilidades. 

A pandemia, vacinação e o Estatuto do SNS

Sublinhe-se que Marta Temido integrou um executivo por três vezes. Natural de Coimbra, onde nasceu em 1974, dividiu o protagonismo da pandemia com a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, e com o ex-coordenador da 'task force' da vacinação, Gouveia e Melo. Outro ponto alto da governação foi a aprovação em Conselho de Ministros, em outubro de 2021, do novo Estatuto do SNS, conforme previsto na Lei de Bases da Saúde publicada em 2019, e que, segundo o Governo, vem clarificar o papel e a relação entre os vários atores do sistema de saúde.

Ao longo da sua carreira profissional, Marta Temido, que possui também uma especialização em Administração Hospitalar, desempenhou diversos cargos de direção em entidades do setor.

Antes de assumir funções governativas, foi subdiretora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, presidente do conselho diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde, presidente não executiva da administração do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa e membro da administração de vários hospitais públicos.

Foi ainda presidente da direção da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. 

Mas a visibilidade pública de Marta Temida estendeu-se à atividade partidária, com a sua filiação no Partido Socialista, chegando mesmo a receber o cartão de militante das mãos de António Costa no congresso que se realizou em agosto de 2021 em Portimão, título que considerou ser "uma honra" e também "uma responsabilidade".

Nas eleições de 30 de janeiro, Marta Temido foi eleita deputada à Assembleia da República por Coimbra, distrito por onde foi cabeça-de-lista do PS.

Leia Também: Substituição de Marta Temido na Saúde "não será rápida"

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