Rui Nunes, candidato a bastonário da Ordem dos Médicos (OM), defende que se tem assistido a uma generalizada falta de reconhecimento do papel dos médicos e da sua dignidade.
Numa altura de rebuliço no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e após a demissão da ministra da Saúde, Marta Temido, o profissional de Saúde defende, em entrevista ao Notícias ao Minuto, que a ministra deve ser substituída de imediato.
Sobre as mudanças que se propõe defender na OM, esclarece que os portugueses "já disponibilizam uma enorme quantidade de recursos para o setor da saúde", pelo que estes têm, apenas, de ser "bem geridos", "acrescentando valor, aprofundando a autonomia da gestão hospitalar, introduzindo uma efetiva descentralização administrativa".
Importa perceber, definitivamente, que o principal capital de um centro de saúde ou de um hospital são as pessoas que lá trabalham
O que motiva a sua candidatura à OM?
A necessidade de afirmar a Medicina como elemento essencial do sistema de Saúde. De facto, aquilo a que se tem assistido é uma falta generalizada de reconhecimento do papel dos médicos, da sua dignidade e da sua valorização. Não se trata de procurar privilégios de qualquer natureza. Trata-se, sim, de fazer ver à sociedade que só profissionais de saúde altamente motivados, com boas condições de trabalho, com uma remuneração adequada, com acesso às mais modernas tecnologias, poderão tratar bem os doentes. Afinal, esta é a missão principal de um médico.
Este espírito de missão ficou bem patente durante a pandemia, onde os médicos, apesar do risco em que incorreram, estiveram sempre presentes, nunca abandonaram os pacientes, apesar de existirem frequentemente condições inadequadas para trabalhar.
Defende uma reforma profunda e estrutural do sistema de saúde, de modo a concretizar o direito universal à Saúde. Com que medidas?
A reforma da Saúde depende de uma nova conceção de Estado e do modo como este cumpre com as suas funções sociais. As principais medidas prendem-se, precisamente, com um choque de gestão que permita combater o desperdício e gerar ganhos de eficiência. Isto é, os portugueses já disponibilizam uma enorme quantidade de recursos para o setor da saúde. Estes têm de ser bem geridos, acrescentando valor, aprofundando a autonomia da gestão hospitalar, introduzindo uma efetiva descentralização administrativa – e não a centralização como parece estar a acontecer – e promovendo uma efetiva integração de cuidados entre a medicina geral e familiar e os hospitais, e entre o setor público, o privado e o social.
Importa perceber, definitivamente, que o principal capital de um centro de saúde ou de um hospital são as pessoas que lá trabalham. Valorizar os médicos, e as suas carreiras, é outra das reformas essenciais.
Não se entende por que é que [Marta Temido] não procurou uma solução de consenso com a Ordem dos Médicos
Como vê a demissão de Marta Temido?
Trata-se do reconhecimento, por parte da ministra da Saúde, de que existem problemas de fundo no sistema de Saúde que ela já não conseguia resolver. Ou em outro prisma, torna-se evidente a necessidade de uma reforma profunda e estrutural no setor, em especial no SNS, e a ministra não encontra as condições para encetar essas reformas. Por exemplo, não se entende por que é que não procurou uma solução de consenso com a OM a propósito do regulamento das escalas de urgência e optou por remeter esta questão para parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República. Nenhuma reforma da Saúde pode ser concretizada contra os profissionais.
É urgente o novo titular da pasta da Saúde iniciar funções
António Costa já veio dizer que a substituição não será rápida, uma vez que será Marta Temido a concluir o processo de definição da nova direção executiva do SNS. Concorda?
Em abstrato, entendo que a ministra devia ser substituída o mais rapidamente possível. É urgente o novo titular da pasta da Saúde iniciar funções de modo que se possa programar estrategicamente o setor. E assim ultrapassar algumas das suas falhas estruturais, nomeadamente no atendimento urgente de mulheres grávidas. Porém, podem existir razões imperiosas que justifiquem um atraso.
Vivem-se tempos difíceis no SNS. O que considera mais urgente para reverter este momento?
Planeamento e capacidade de decisão estratégica. Um planeamento adequado é fundamental, dado que em Portugal o principal problema não é a escassez de recursos. Nem de recursos humanos, nem materiais, nem tecnológicos. Há, sim, uma dificuldade endógena de programar a médio e longo prazo as necessidades de saúde da população e de promover uma distribuição equitativa pelo território nacional. E, para isto acontecer, é necessário ter capacidade de decisão estratégica.
Por exemplo, defende-se há décadas que a medicina geral e familiar deve ser o pilar do sistema de Saúde. Então por que é que ainda hoje nos deparamos com falta de médicos de família, com uma implementação apenas parcial das Unidades de Saúde Familiar, com disparidades salariais importantes entre as USF-A e as USF-B, entre outras falhas que há muito deviam estar ultrapassadas?
Ainda que a carreira médica seja em si própria estimulante da meritocracia, sou favorável a um maior equilíbrio entre ambos os géneros no acesso aos lugares de chefia
Liderou a equipa que propôs a Declaração Universal de Igualdade de Género. O que considera ainda ser necessário em Portugal neste tema?
A igualdade de oportunidades é um fator decisivo para a construção de uma democracia plena e avançada E a igualdade de género, ao permitir que homens e mulheres possam usufruir de forma idêntica de todas as oportunidades sociais e económicas, respeitando as suas diferenças, deve ser amplamente promovida no setor da Saúde. Isso implica, por um lado, que os hospitais e centros de saúde se adaptem à existência de cada vez mais médicas. Por exemplo, gerando as condições para que as médicas e os médicos possam exercer as suas responsabilidades parentais com mais facilidade.
Uma maior flexibilidade laboral pode ser uma excelente medida nesse sentido. Por outro lado, e ainda que a carreira médica seja em si própria estimulante da meritocracia, sou favorável a um maior equilíbrio entre ambos os géneros no acesso aos lugares de chefia nos serviços, departamentos, conselhos de administração dos hospitais e conselhos executivos dos ACES.
É o principal mentor do testamento vital. Qual a importância desta ferramenta que conta já com cerca de 47 mil registos?
Propus em 2006 à Assembleia da República a legalização do testamento vital, porque percebi que os médicos se confrontam diariamente com enormes dilemas éticos em doentes terminais, nomeadamente no que respeita à suspensão ou abstenção de tratamentos fúteis e desproporcionados.
O testamento vital, para além de reafirmar o princípio da autodeterminação pessoal, é um importante instrumento de auxílio à tomada de decisão médica, dado que um médico ao respeitar uma diretiva antecipada de vontade toma a decisão mais adequada. Note-se que a medicina é uma profissão especialmente suscetível de gerar 'burnout' [exaustão] e sofrimento moral, pelo que o testamento vital pode também ser um instrumento para promover o autocuidado dos médicos reduzindo a ansiedade em decisões críticas.
Foi um dos principais impulsionadores da realização de um referendo nacional à realização da eutanásia. O que gostava de ver acontecer em Portugal no que concerne a este tema?
Defendi há mais de uma década a realização de um referendo nacional. Porquê? Porque antecipava aquilo que veio a acontecer. Ou seja, creio que seria um enorme contributo para uma cidadania mais participada permitir que o povo português se pronunciasse sobre a despenalização da morte assistida. Teria sido uma decisão mais legítima no plano democrático, e mais sustentável na ótica da estabilidade legislativa. E teria permitido também que os médicos se tivessem adaptado a uma prática potencialmente disruptiva no plano deontológico e que, como se sabe, gera enorme controvérsia social.
Por que considera importante criar-se um conselho consultivo para aconselhamento ao bastonário?
A medicina confronta-se hoje com enormes desafios, alguns destes completamente imprevisíveis. Por exemplo, durante a pandemia pela Covid-19 a opinião dos anteriores bastonários – ainda que reunidos informalmente – foi especialmente relevante para que a OM e o seu bastonário pudessem ter uma intervenção junto da sociedade mais serena e consensual. Por outro lado, a criação deste conselho consultivo seria também um excelente exemplo da unidade que preconizo para os médicos. Para todos os médicos. Só juntos conseguiremos ultrapassar obstáculos, e propor soluções para melhorar a qualidade da assistência médica e assim a saúde dos portugueses.
Leia Também: "A Ordem dos Médicos tem sido um reduto de conservadorismo"