Pais não podem entrar? "Escolas devem parar de agir na sombra da lei"

Tânia Correia, formada em Psicologia, com Mestrado em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância/adolescência e autora da página e do blogue 3m’s, é a convidada desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

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Marta Amorim
19/09/2022 07:45 ‧ 19/09/2022 por Marta Amorim

Cultura

Tânia Correia

Tânia Correia é formada em Psicologia, com Mestrado em Psicoterapia Cognitiva-Comportamental na área da infância/adolescência e criou a página e o blogue 3m’s, onde fala sobre parentalidade.

É mãe de Letícia e Mel e foi a maternidade que a levou a escrever o seu primeiro livro 'Menina, Mulher, Mãe', que se tornou um imediato sucesso. Agora acaba de lançar o 'Laboratório de Emoções', - o mote desta conversa - um livro com ferramentas para uma parentalidade consciente e para aprender a lidar com as emoções, os pensamentos e os comportamentos de forma integrada e positiva. 

Ver uma criança de três anos, por exemplo, com um quadro já tão construído de ansiedade começou a preocupar-me

O que motivou a escrita deste novo livro e em que medida é que ele pode ajudar as famílias no dia a dia?

Um dia dei por mim e estava a receber muitas mensagens - no último ano, sobretudo - com descrições de problemas que eu percebi que eram de crianças com problemas de ansiedade. Pessoas que me relatavam situações, geralmente relacionadas com os filhos, sobrinhos, ou crianças com quem conviviam. Aquilo que me era descrito eram já quadros de ansiedade numa idade bastante precoce. Ver uma criança de três anos, por exemplo, com um quadro já tão construído de ansiedade começou a preocupar-me. 

Como eu trabalho com adultos e conheço muito esta base da ansiedade, que tem muito a ver com as dificuldades emocionais e com o facto de cada vez mais nós estarmos a perder literacia emocional, foi surgindo a ideia. As pessoas estão a ficar muito pouco conhecedoras daquilo que sentem. Na altura comecei a escrever histórias infantis para ajudar as crianças a processarem as emoções. Quando falei com a editora, em como já tinha uma das histórias fechada, disseram-me que eu estava a pensar muito pequeno e que a história precisava de uma explicação. Comecei então a escrever a parte para os adultos. Entusiasmei-me e escrevi outra história para complementar e nasceu o livro neste formato. 

A Tânia fala na sua obra na vivência saudável das emoções? Como é que lá chegamos? Com que ferramentas?

É algo transversal em qualquer ser humano: nós não vamos usar algo que não sabemos para que é que serve, e uma das maiores dificuldades é exatamente essa. Respondendo ao como: depende muito de eu perceber a função de cada emoção. Vejamos a analogia. Podem-nos dar a melhor ferramenta de todas e dizer-nos 'usa'. Se nós não soubermos para que serve e como pode ser usado, aquilo vai ficar ali parado. Então, a base é esta: primeiro aprendemos para que serve cada uma das nossas emoções, como é que nós podemos tirar partido delas, em que é que elas nos ajudam a estarmos mais adaptados ao meio, a nós próprios, aos outros e só a partir daí, entendendo essa função, é que nós, perante determinada situação, podemos ir à nossa mala de ferramentas e escolher o que precisamos para aquele momento, de forma ajustada. 

Felizmente temos um sistema que até faz isto de forma automática. Mas a maioria de nós o que faz é lutar com o sistema e tentar fechar a porta das emoções, porque não entendemos como é que aquilo pode ser vantajoso para nós. É aí que o livro nos ajuda, a perceber o que são as emoções, qual a função delas, e ligá-las à forma como pensamos e como agimos, comandados por esta parte emocional que vai fazer todo um processo e que se traduz num comportamento mais ou menos ajustado consoante nós termos dado espaço ao que precisávamos de sentir ou não. 

Fomos recebendo muita informação ao longo do nosso desenvolvimento para abafar emoções, pelo que um primeiro passo é assumi-las

Para tal é necessário assumir e lidar com emoções, algo do qual ainda se foge muito… Como é que revertemos este processo?

Primeiro precisamos de compreender a nossa história. Isto não começa do nada. Não é um dia, aos vinte e muitos anos, ou trinta, que nos sentimos de tal forma. Todos nós temos uma história de vida que, geralmente, é marcada por episódios onde nos ensinaram a ser desta ou de outra forma. Não é que alguém se tenha sentado formalmente connosco em crianças e nos tenha dito 'a partir de agora, não quero que sintas nada, abafa tudo'. Não. Mas todos nós recebemos dicas - umas mais subtis e outras, até, mais diretas - que nos ensinaram coisas como 'não chores, uma menina (ou menino) tão bonita a chorar, olha que feia'. Outro exemplo é quando os adultos estão muito aflitos à nossa volta e se nós reagíssemos com medo ou outra qualquer emoção, alguém nos dizia muito rápido 'não é preciso teres medo, não é preciso estares triste'. Não nos é permitido sentir nada. Fomos recebendo muita informação ao longo do nosso desenvolvimento para abafar emoções, pelo que um primeiro passo é assumi-las. Assumir que há uma história e perceber que partes dela é que nos levaram a começar a abafar emoções. Estes pensamentos mais antigos perduram.

O nosso sistema assenta numa estrutura sólida que, em muitos casos, são pensamentos acumulados ao longo dos anos. Seja de vivências, coisas que nos foram ditas ou conclusões nossas. Mesmo que nada nos dissessem. Vejamos, se cada vez que eu estava triste, alguém me trazia um chocolate ou umas bolachas e me punha a ver televisão, eu vou entender que quando estou triste, devo procurar coisas que rapidamente me façam sentir melhor. E isto transforma-se em crenças. 

Identificando a fonte destas crenças e pensamentos, como é que as silenciamos e impedimos que afetem a relação connosco e com os outros?

É curioso que o primeiro passo para trabalhar pensamentos e crenças é começar pela parte emocional. A parte cognitiva, dos pensamentos, e a parte emocional funcionam como quando estamos a conduzir: o acelerador e a embraiagem. Se uma estiver muito para cima, a outra obrigatoriamente está em baixo. Quando nós estamos a tentar responder aos nossos pensamentos, geralmente estamos a ouvir coisas que, de alguma forma, nos estão a magoar ou a perturbar, pelo que a nossa parte emocional está muito disparada. Assim, a parte cognitiva, de capacidade de resposta, está muito baixa. Vamos, então, tentar gerar boas respostas com uma parte emocional que não vai deixar porque a cognitiva está em 'serviços mínimos'.

Para sair daqui, temos primeiro de processar as emoções. Por exemplo, se sempre me disseram 'tu não tens jeito para nada' e eu estou a fazer uma atividade nova, esta voz vai aparecer. Assim que aparece, começo a sentir mágoa, tristeza... Aqui, se eu tentar responder, a minha parte cognitiva vai estar afetada pelas emoções. Então, primeiro vou assumir que é normal ficar triste. Eu estarei a recordar-me de todas as vezes que eu tentei fazer algo novo e que alguém apareceu a dizer que eu não seria capaz. 

Assim que eu validar as emoções, que eu as acolho, em vez de combater com elas, a parte emocional vai-se equilibrar, e a minha parte cognitiva terá recursos para funcionar. Agora, não é fazer isto uma vez e estamos curados, mas com repetição, conexão e empatia por mim, vai fazendo efeitos. 

Há que estar disposta a mergulhar na dor e na história. E sim, para muita gente o processo é doloroso. 

Para muita gente, este é um processo longo...

Depende. Há casos que sim, que demora mais tempo, mas falamos de pessoas que tiveram pais com patologias, por exemplo. Mas se a pessoa se dedicar, se encontrar o profissional certo, em meia dúzia de anos pode conseguir fazê-lo. Mas há que estar disposta a mergulhar na dor e na história. E sim, para muita gente o processo é doloroso. Vai perceber que por vezes os pais os magoaram, ainda que os amem. 

Só depois de nos conhecermos, conseguimos ajudar as nossas crianças a conectarem-se com elas próprias

Hoje em dia fala-se muito de empatia e inteligência emocional. Como é que os pais podem ajudar os filhos a desenvolver estas ferramentas?

É preciso começarmos por nós, ligando-nos a nós mesmos e às nossas próprias emoções. Não vamos conseguir passar nada aos nossos filhos que estejamos longe de conhecer. Nenhum de nós tem de ter uma performance perfeita - nem é isso que se procura - mas importa seguir esta lógica. Só depois de nos conhecermos, conseguimos ajudar as nossas crianças a conectarem-se com elas próprias. 

Sobretudo quando a criança começa a mostrar comportamentos desajustados, há que criar o pensamento de que há ali qualquer necessidade por satisfazer. Por exemplo, no regresso às aulas, sabemos que muitos miúdos chegam a casa muito desorientados e têm ações um pouco mais difíceis de entender. Por exemplo, se uma criança atira constantemente o comando para o chão e eu ralho com ela, o que esta provavelmente está a tentar dizer e não consegue, porque não tem essas ferramentas e essa maturidade ainda, é que teve saudades minhas durante o dia. 

Cabe aos pais tentar entender o que é que as crianças estão a tentar expressar com estes comportamentos. Se perguntarmos coisas como 'tiveste saudades minhas?', às vezes é automático e a criança desmonta daquele comportamento. 

É aqui que está a diferença da inteligência emocional. Se a criança for crescendo com isto, cada vez mais, vai-lhe ser facilitado expressar sentimentos, evitando comportamentos desajustados. Que adultos teríamos, atualmente, se toda a gente tivesse esta capacidade? Se em vez de andarmos com jogos, dicas e indiretas, fôssemos capazes de dizer o que precisamos. 

Recebo muitas mensagens de educadoras e todas elas me corroboraram, embora com alguma vergonha: os pais não são permitidos por questões de saúde, mas sim por que dá jeito não ter pais a supervisionar e avaliar o que fazem as escolas nas salas

Com o regresso às aulas, na semana passada, são muitas as famílias que vivem dias difíceis. Seja porque o processo em si é difícil, seja porque no nosso país ainda há escolas que proíbem pais de entrar nos espaços, transformando a experiencia ainda mais traumatizante. Como lidar com estas situações?

Há tanto a dizer sobre este tema tão importante, mas tentarei ser sucinta. Estas situação têm de ser lidadas seguindo a lei, apenas. As leis existem e são para ser aplicadas. Os direitos da criança estão consagrados na Constituição, que apoia a presença de um adulto de referência e o superior interesse da criança. Temos vários artigos que conseguimos ir buscar e que fundamentam a necessidade de os pais entrarem nas escolas. É muito agressiva a forma como as coisas estão a ser feitas. As escolas podem assegurar que são um espaço de segurança para crianças mas a criança não sabe isso. A criança não conhece aqueles adultos nem o espaço. E mesmo quando conhece, ela vem de outra realidade, ela vem das férias com os pais, pelo que vai precisar de voltar a sentir-se segura.

Os pais precisam de entrar nos estabelecimentos de ensino e acho, sinceramente, uma grande hipocrisia as escolas usarem nos últimos anos como argumento a DGS, que devido à Covid-19 recomendava - eram recomendações, não a lei - que os pais não entrassem nas escolas. Agora, mesmo depois de a DGS deixar cair as recomendações, mesmo não havendo nada neste sentido, acho uma hipocrisia as escolas não deixarem os pais entrar com os filhos.

Antes a DGS servia aqui de escudo e agora, de repente, já não importa o que a DGS diz. Sou-lhe franca, recebo muitas mensagens de educadoras e todas elas me corroboraram, embora com alguma vergonha: os pais não são permitidos por questões de saúde, mas sim por que dá jeito não ter pais a supervisionar e avaliar o que fazem as escolas nas salas. Isto é extremamente grave e precisava de mais espaço público para ser discutido, porque sinto que os pais não estão a conseguir dar a volta ao tema. 

Crianças que entrem agora no primário, vão associar a escola a abandono e isso vai condicioná-las para o resto do processo, até no rendimento escolar. As crianças começam a escola com medo. 

O meu conselho é mesmo os pais munirem-se das leis e falarem com as escolas, unirem-se, saírem dos grupos de WhatsApp e lutarem pelos direitos dos filhos

Neste caso, o meu conselho é mesmo os pais munirem-se das leis e falarem com as escolas, unirem-se, saírem dos grupos de WhatsApp e lutarem pelos direitos dos filhos. Vão è televisão se for possível, esgotem todos os meios para denunciar para que estas escolas parem de agir na sombra da lei. 

Tenho recebido relatos de escolas que têm mesmo no regulamento que a despedida entre crianças e pais deve ser rápida. É impensável uma escola pedir isto, negligenciando por completo o que as nossas crianças precisam. É necessário acolher a criança e não a culpar. Não dizer coisas como 'se choras depois a mãe vai triste para o trabalho'. É necessário um trabalho de fundo nestes temas. 

Fora isto, enquanto pais, há pequenas coisas que podemos fazer para menorizar o trauma destes dias. Fiz um vídeo há dias que mostrava os passos. Podemos, por exemplo, desenhar na mão das crianças e eles na nossa para quebrar a ideia de separação, para ter ali aquela lembrança dos pais. Pôr um pouco do nosso perfume na criança, levar uma foto da família para a escola ou até deixar um bilhete na lancheira. Mas atenção, isto funciona quando o ambiente escolar colabora. 

Falar neste tema abre uma caixa de Pandora para o que é necessário mudar nas escolas. O que considera que é preciso alterar no ensino em Portugal?

Precisamos de ter escolas para as crianças e não para os adultos. É um problema, na generalidade, o que se passa no nosso sistema de ensino. Mas quem diz ensino, diz Saúde, tudo... Os sistemas não são construídos nem para nem pelo utilizador. São construídos por quem está a gerir e que nunca o vai utilizar. Ninguém pergunta ou sabe o que o utilizador precisa. O que temos é pessoas no gabinete a tomar decisões. 

Quando à Educação, é preciso pegar num livro, ir a uma formação, o que seja, mas formar estrutura a partir de uma base de conhecimento. Comecemos pela situação anterior: que se abram os espaços aos pais. Se as crianças não equacionam os pais naquele espaço, vão afastá-lo de casa, vão esconder situações como bullying ou abusos, não contando, porque os pais não têm ali lugar. Se alguém diz 'não podes contar nada aos teus pais', aquilo fará sentido na cabeça da criança, uma vez que os pais nem lá entram.

É preciso criar programas mais ajustados às crianças e não ao que a criança deveria saber. É preciso ainda ter uma abordagem mais emocional. As crianças não têm de saber todos as mesmas coisas da mesma forma. Passamos a vida inteira a formatá-las para mais tarde dizer-lhes que têm de sair da caixa. Mesmo nas crianças mais pequenas é preciso este 'mindset'. 

Não esquecer os espaços exteriores, que tem de ser preparados para as crianças, para que elas o possam aproveitar. Não tem de ser perfeito e todo desinfetado. As crianças também têm de ter espaço para que as coisas corram menos bem, para crescerem. 

Começámos esta conversa com a Tânia a dizer que a ansiedade foi o mote para escrever este livro e nele refere que a ansiedade será uma dos problemas das próximas décadas. Como é que começamos a reverter isto enquanto sociedade?

A ansiedade existe se as emoções não foram trabalhadas. Ou temos ansiedade ou inteligência emocional, por isso o caminho é mesmo este. Abrirmos o caminho emocional e abrir esta caixa que fechámos anos a fio. Crianças que sabem o que sentem conseguem processar as emoções e não têm de ser [manifestadas] em defesa.

As emoções são, sem dúvida, a melhor ferramenta para qualquer ser humano, de qualquer idade, para se sentir mais ajustado, ligado a si e empático por quem é e por quem o rodeia. 

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