Manuela Almeida Cardoso, assistente social a trabalhar em Inglaterra na prevenção da escravidão moderna e tráfico de menores, é autora do livro "Pedreira dos Húngaros", hoje apresentado no Centro Cultural de Cabo Verde, em Lisboa.
Esta cabo-verdiana e "húngara", como eram conhecidos os habitantes naquele "bairro de lata", que começou a ser erguido na zona de Miraflores ainda antes do 25 de Abril de 1974 e teve a última habitação destruída em 2003, lamenta que muitos dos jovens do bairro não tenham conseguido mostrar o seu potencial em Portugal.
Nas páginas do seu livro, dá conta dos "momentos de medo e tristeza" passados pelos habitantes -- sobretudo de origem africana, mas também de etnia cigana e portugueses nascidos em Portugal - que, "vivendo na escuridão de um bairro degradado", sofriam o abuso e 'bullying' de colegas, professores e patrões.
E também da tensão permanente com a polícia e o desânimo das frequentes notícias nos jornais que identificavam o bairro como "um antro de criminalidade e prostituição".
Em declarações à agência Lusa, a autora disse que, ao escrever este livro, quis ir mais além, porque nunca entendeu como ninguém quis entrar no bairro e procurar o bom que lá se fazia e que, segundo afirma, era muito, a começar pela manutenção das tradições dos países de origem dos habitantes.
Agora que "o mundo físico" do bairro desapareceu, a autora juntou a sua voz à dos milhares que foram realojados em outros bairros na Grande Lisboa, rumaram para outros países ou regressaram para os de origem.
Manuela Almeida Cardoso, agora com 51 anos, saiu do bairro em 1991. Foi a falta de apoios para prosseguir os estudos superiores que a fez querer sair de Portugal e não foi sozinha, pois mais jovens da Pedreira dos Húngaros sentiam que, em Portugal, não tinham ajuda para prosseguir.
"O racismo institucional foi uma coisa que, apenas saindo fora de Portugal, virou uma realidade total, porque agora havia uma oportunidade de comparar. Uma pessoa vivia isso, havia aquele racismo aberto, muito aberto", apontou.
E fala das muitas vezes em que respondeu a um anúncio de trabalho e as portas se fecharam quando se apercebiam que a candidata era de cor escura.
Foi perante a realidade e as oportunidades que encontrou em outros países que se apercebeu da dimensão da discriminação que sentira em Portugal.
"Eu queria permanecer em Portugal, era a minha terra, a terra onde tinha crescido, apesar de ter nascido em Cabo Verde, era parte da minha história e da minha nascença. Foi triste ter forçado essa escolha. Eu precisava de progredir e a única maneira de fazer isso foi sair de Portugal, e os meus colegas também", explicou.
No seu livro, dá conta de sentimentos contraditórios dos moradores em relação ao bairro onde cresceram, existindo quem considere a Pedreira dos Húngaros o centro do seu pesadelo e traumas, quem expresse vergonha das condições em que viveu e quem ache que os moradores podiam ter tido uma maior responsabilidade pela sua integração na sociedade portuguesa e não culpar tudo e todos na segregação e discriminação do imigrante africano.
Quem chegava à Pedreira trazia na bagagem "a esperança e os seus poucos pertences".
"O povo dos Húngaros escolheu a localização para erguer o seu bairro pela proximidade dos portos onde desembarcaram, a acessibilidade dos transportes e o propósito de encontrar trabalho. Outros já tinham família a viver nas proximidades, que ofereciam algum apoio dentro das suas circunstâncias", referiu.
"Aqueles que tinham a oportunidade de alguém interceder por eles, conseguiam no mínimo um trabalho nas obras para os homens e limpezas na casa das 'patroas' para as mulheres", prosseguiu a autora.
E acrescentou: "O trabalho do imigrante implicava longas e duras horas, baixa remuneração e mínimas possibilidades de progressão na carreira profissional".
A comunidade da Pedreira dos Húngaros começou como "um grupo de famílias vivendo em condições sub-humanas, sem recursos sanitários, sem acesso a água canalizada ou eletricidade, sem assistência social ou apoio para a integração na sociedade portuguesa".
À sua volta prédios de classe média e média alta, a mesma que ainda lá mora, agora sem os vizinhos que tanto receou.
"Os Húngaros viviam a sua realidade sofrida calados, dormiam no chão de lama, entre quatro paredes feitas de madeira barata que não oferecia nenhum conforto ou proteção, madeiras de baixa qualidade que eram por vezes sobras de obras, construções ou achadas abandonadas à beira de lixeiras", contou.
Ao país de origem escondiam a verdade sobre "a triste realidade da sua vida em Portugal", salientou.
"Os que conseguiam juntar um dinheirinho e viajar para Cabo Verde para visitar a família que deixaram para trás, muitas vezes esposa, filhos, pais de idade avançada, davam a ilusão de que Portugal tratava-lhes bem e a sua condição económica era boa", acrescentou.
Na sua opinião, "em Portugal e noutros países de imigração que o cabo-verdiano conheceu realmente os desafios e o sofrimento do que significa ser um imigrante, mas muito pior o de ser um imigrante negro".
Ao deixarem Portugal, muitos desses jovens provaram que, ao lhes ser dadas oportunidades, "mostraram o seu potencial".
"Esse potencial podia ter sido usado em Portugal. Temos doutores, médicos, professores e advogados e estão fora a fazer isso. Esse potencial podia ter ajudado Portugal", afirmou.
Na opinião da ex-moradora, foi isso que a Pedreira dos Húngaros mostrou: "Havia potencial ali dentro. Não era só prostitutas e criminosos".
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