"Marta Temido saiu e, até hoje, que evolução de fundo aconteceu no SNS?"
Rui Nunes, na corrida para substituir Miguel Guimarães como bastonário da Ordem dos Médicos, é o convidado do Vozes ao Minuto desta quarta-feira. O otorrinolaringologista defende que a sua candidatura "é a única que dá garantia "de independência", numa altura em que a Medicina "nunca esteve tão mal".
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País Ordem dos Médicos
Rui Nunes, otorrinolaringologista e professor na Faculdade de Medicina na Universidade do Porto, vai disputar com Carlos Cortes a segunda volta das eleições para bastonário da Ordem dos Médicos, que decorre entre os dias 7 e 16 de fevereiro.
O antigo presidente da Entidade Reguladora da Saúde defende uma "profunda reinvenção" e uma "reforma estrutural" de um sistema de Saúde "esgotado", que deve ser descentralizado e não a "duas velocidades".
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Rui Nunes, de 62 anos, o primeiro doutorado em Bioética em Portugal, fala sobre os problemas vividos nas Urgências, assume que é preciso dar condições e expetativas de futuro aos médicos, nomeadamente através do aumento de salários para que queiram permanecer no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e defende a criação da especialidade de Medicina Paliativa.
Na corrida à Ordem dos Médicos, considera-se a alternativa "a mais do mesmo".
O problema da Urgência é apenas a ponta do iceberg no que se refere a um sistema de saúde que precisa de uma profunda reinvenção, de uma reforma estrutural
Seria importante começar esta entrevista por uma das questões que mais preocupa a classe, mas também a população – o caos que se vive nas Urgências. Tem sido feito o necessário pelo Governo para resolver este problema?
Com certeza que se tivesse sido feito o necessário o problema estaria resolvido. A meu ver a questão é muito complexa porque é a própria conceção do sistema de Saúde que tem que ser naturalmente repensada. Porque o problema da Urgência é apenas a ponta do iceberg no que se refere a um sistema de Saúde que precisa de uma profunda reinvenção, de uma reforma estrutural. Reforma estrutural que não acontece e, em bom rigor, já não há nenhuma medida de fundo nos últimos 15 anos. Enquanto tivermos um sistema centralizado, um sistema onde o Serviço Nacional de Saúde - sendo o seu grande pilar, isso é inquestionável - não tiver abertura necessária para cooperar com o setor privado e social, um sistema mais descentralizado, um sistema onde os Cuidados de Saúde Primários e a Medicina Geral e Familiar são o verdadeiro pilar desse sistema, não vai ser resolvido o problema das Urgências.
Tentar resolver o problema das Urgências contratando tarefeiros, alterando o tipo de escalas, com certeza isso é muito importante - a racionalidade e racionalização de recursos - , mas vai-se adiando um problema que, paulatinamente, vai surgir. O problema das Urgências é sério, é um dos problemas centrais, se não o problema central do nosso sistema de Saúde hoje, e é preciso repensar o modelo de Saúde, não pondo em causa naturalmente os seus pilares, como o direito à saúde, o direito civilizacional dos cidadãos, mas, por outro lado, um SNS que tem que ser modernizado e ajustado ao século XXI.
A criação da especialidade de Medicina de Urgência não é a varinha mágica, porque se fosse, com certeza, já tinha sido implementada há muito tempo
Mas além dessa reforma estrutural de que fala - e que é um processo complexo – o que é que é possível fazer a curto prazo? Muito se tem falado da criação da especialidade de Medicina de Urgência, chumbada, aliás, pela Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos. É uma possibilidade com a qual concorda?
Falando na especialidade de Medicina de Urgência, acabou de ser debatida, há poucas semanas, no órgão máximo de decisão da Ordem dos Médicos. Não vale a pena pensar que, no curtíssimo prazo, vai haver uma inversão se, a partir do momento em que existem excelentes argumentos para criar a especialidade, ao mesmo tempo há uma maioria de médicos na assembleia de representantes que votou contra e que terá também os seus argumentos.
Com certeza que a criação dessa especialidade faz parte de uma reforma organizativa do serviço de Urgência, mas não vai resolver o problema de fundo. São na mesma médicos que vão trabalhar na Urgência. Temos de encontrar soluções que estejam para além da criação dessa especialidade, ou seja, soluções criativas. E o problema reside sempre no mesmo: Primeiro, dotar os Cuidados de Saúde Primários de melhores condições. Os médicos fazem o que podem com os recursos que têm, mas têm de ter mais condições. E, segundo, reformar o sistema de Saúde e torná-lo muito mais ágil de modo a que as Urgências se resolvam também por via da reforma estrutural do sistema.
Dito isto, é natural que tenha de haver uma maior racionalização, rever os mecanismos das escolas médicas, partilha de serviços, com certeza que sim. Mas que ninguém pense que é através da criação da especialidade de Medicina de Urgência que se resolve o problema das Urgências em Portugal. Como é evidente não é a varinha mágica porque se fosse, com certeza, já tinha sido implementada há muito tempo.
Marta Temido saiu da governação em agosto do ano passado e eu pergunto: Até hoje que evolução de fundo aconteceu no sistema de Saúde?
Certo, mas insisto, a curto prazo que medidas devem ser tomadas? Como se falássemos de medidas de urgência.
Primeiro reformar profundamente os Cuidados de Saúde Primários, transformando, no fundo. Revalorizando os Cuidados de Saúde Primários em Unidades de Saúde Familiar do tipo B (USF-B). É inaceitável que haja um país a duas velocidades e que uma parte do país, sobretudo a Norte, tenha um grande números de USF-B e depois, no restante território nacional, o numero de USF-B já é muito mais escasso. Isto é nitidamente falta de planeamento e de organização do sistema.
Segundo, descentralizar a Saúde, ou seja, exatamente o oposto do que está a acontecer agora. A tentação agora foi no sentido de centralizar ainda mais a Saúde e, como é evidente, ainda que isso possa permitir algumas economias de escalas, ou alguma racionalidade do sistema, um sistema que é desproporcionalmente grande torna-se muito mais dificilmente gerível. Portanto, uma descentralização da Saúde, porque a Saúde mais próxima das pessoas é muito mais facilmente gerível.
E, naturalmente, também dotar os hospitais dos recursos necessários para que eles possam também, no fundo, reformular as suas escalas de Urgência que, muitas vezes, não conseguem fazer por falta de recursos para o efeito. Imagine-se que, hipoteticamente, se criava uma nova especialidade, sem recursos não adianta. Além de que uma especialidade nunca é uma decisão imediata, porque demora anos a forma especialistas. Portanto, há medidas urgentes em matéria de sistema de Saúde e a minha questão é esta: a ministra Marta Temido saiu da governação em agosto do ano passado e eu pergunto: Até hoje que evolução de fundo aconteceu no sistema de Saúde? É a pergunta que eu deixo.
O que eu esperaria desta Direção Executiva é que pusessem o dedo na ferida: o salário dos médicos
Sei que veio ainda da governação de Marta Temido, mas foi já com Manuel Pizarro que entrou em cena uma Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde. Como olha para esta Direção Executiva?
Olho com espírito ambivalente. Porque, por um lado, como cidadão e como português, desejo o maior sucesso e que, naturalmente, consiga melhorar o sistema de Saúde, porque todos ficamos a ganhar. Mas repito, um sistema excessivamente centralizado não tem como dar, a longo prazo, bom resultado.
Se for bastonário vou obviamente trabalhar com as equipas governativas que existirem e com o modelo de sistema de saúde que existir, mas, pessoalmente, em abstrato, defenderia um modelo muito mais descentralizado, mais competências e autonomia para as Administrações Regionais de Saúde, exatamente o oposto do que está a acontecer agora.
Aquilo que eu também esperaria desta Direção Executiva é que pusessem o dedo na ferida e o dedo na ferida como medida absolutamente primordial é o salário dos médicos. Não é possível um sistema de Saúde moderno, sustentável, de vanguarda, existir e subsistir e ser sustentável com este regime salarial. É impossível isto acontecer, e portanto, a minha sugestão pessoal, que já fiz publicamente, é precisamente a de nivelar por cima os salários médicos, tendo como referência, precisamente, o modelo b das USF, que têm que ter, quer em valor absoluto, quer em composição do salário, um regime muito mais atrativo para os médicos. Faria com quem eles trabalhassem com muitíssimo mais gosto pela profissão, porque hoje trabalham, mas estão profundamente desgostosos, sentem-se abandonados, sentem-se excluídos por um sistema que efetivamente não os acarinha. Não acarinha em nada, nomeadamente do ponto de vista salarial.
Aquilo que eu não gostaria de ver era um país a duas velocidades, um sistema de Saúde a duas velocidades
Já iremos a essa questão. Mas aproveitando que falámos aqui da Direção Executiva, muito se tem falado sobre o encerramento de maternidades, uma decisão que continua a caber no futuro a esta Direção Executiva, que implementou, aliás, o seu funcionamento de forma alternada, também para resolver os problemas das Urgências de Ginecologia e Obstetrícia. Como encara estes encerramentos? [Nota de edição: A questão foi colocada antes de a Direção do SNS ter revelado a decisão para o primeiro trimestre sobre os blocos de parto - saiba mais aqui]
Encaro sempre da mesma forma. Tudo o que seja racionalizar o serviço parece-me positivo, não vejo nenhum problema em abstrato. Que haja racionalidade, racionalização de recursos e, havendo escassez de profissionais de Saúde e de médicos, em concreto, que naturalmente sejam encontradas as sinergias possíveis para o efeito. Agora, sem que isto coloque obviamente em causa o direito constitucional de acesso à Saúde, com equidade territorial. Aquilo que eu não gostaria de ver era um país a duas velocidades, um sistema de Saúde a duas velocidades. E portanto, eu espero para ver. É absolutamente fundamental que não se esqueça que a Saúde é um direito e o Estado tem a obrigação de planear as atividades. E a meu ver, planearia melhor as atividades se de alguma forma houvesse uma articulação mais ampla com todos os operadores do sistema. Mas vamos ver os resultados efetivos em que se traduz esta questão.
Se não se quer ter um sistema de Saúde de excelência, então tem de se assumir isso. Portugal tem todas as condições
Voltando aos médicos. Há também quem defenda que os médicos deviam ser obrigados a ficar no SNS depois da formação. Apoia esta medida?
Com certeza que não. Isso é uma medida típica de um sistema de Saúde verticalizado, que não faz sentido nos século XXI. É preciso ter-se definitivamente a noção que o trabalho médico é um trabalho altamente qualificado, altamente especializado, com elevadíssimos níveis de responsabilidade, quer do ponto de vista ético, quer do ponto de vista civil e criminal. E, portanto, o que há a fazer, o que o mais elementar bom senso determina, é dar as condições para que os médicos queiram estar no SNS, não é obrigá-los a estar no SNS.
Quando alguém é obrigado a fazer alguma coisa corre sempre mal, não tem como correr bem. A relação do médico e doente depende de uma grande proximidade e o médico tem de estar muito motivado, muito estimulado, tem de ser reconhecido. Não é busca de nenhum privilegio, é simplesmente algo que é fundamental para os médicos tratarem bem os doentes. Isto é do interesse dos doentes. Também é obviamente do interesse dos médicos.
O que há a fazer é o óbvio: Aumentar salários, reestruturar as carreiras médicas, dar condições e projetos aos jovens médicos, que é isso que eles não têm. Obrigá-los a ficar vai ser, além do mais, um fiasco total, porque ninguém pode obrigar ninguém a trabalhar contra a sua vontade. O que acontece, provavelmente, é que se os médicos não gostarem desse trabalho, mesmo que sejam obrigados, rescindem o contrato, que é que está a acontecer em todo o país. Por consequência, é uma medida de um sistema de Saúde do século XX, não do século XXI, que está condenada ao insucesso e que pretende não sei exatamente o quê.
Se não se quer ter um sistema de Saúde de excelência, então tem de se assumir isso. Portugal tem todas as condições, tem médicos, tem outros profissionais de saúde, e até tem instalações e equipamentos em muitos casos, na maioria dos casos, para ter um sistema de primeiríssima ordem. É uma questão de filosofia, de sistema organizativo, de planeamento, ou seja, é preciso uma nova visão para um novo sistema de Saúde. Agora, querer com um sistema de Saúde que está esgotado, um modelo que está esgotado, impor à força que os médicos fiquem lá, não faz sentido nenhum.
Há vagas em pontos do país onde não há as condições mínimas para os médicos desenvolverem bem a sua atividade
Tudo isso pode explicar as vagas nos concursos de especialidades médicas que têm ficado por preencher…
A explicação é exatamente a síntese do que eu acabei de dizer. O Estado, neste momento, o Serviço Nacional de Saúde, não está a dar as condições mínimas para que os médicos realizem. Não é só a questão salarial. Por exemplo, eu visitei mais de 120 Hospitais e Centros de Saúde pelo país, por exemplo, na área da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, onde vi vários concursos por preencher e concursos que foram preenchidos e que os médicos vão embora, sobretudo os jovens médicos. Não lhes dão condições de trabalho, o salário não é digno, não conseguem sobreviver, sobretudo os que não são de lá. Vi muitos médicos do Norte do país, da região Centro, que vão para Lisboa e não conseguem viver com o salário que lá têm.
Tem que se fazer o óbvio: Primeiro resolver a questão remuneratória. Segundo, dar aos jovens médicos, sobretudo a estes, ainda que a todos, as condições para que se realizem enquanto médicos, dar-lhe um futuro, dar-lhes uma expetativa, que é isso que tem faltado nos últimos anos. E, por isso, este triste espetáculo que estamos a ver. Ou seja, há vagas em pontos do país onde não há as condições mínimas para os médicos desenvolverem bem a sua atividade.
É absolutamente central reinventar e estabelecer de novo as carreiras médicas
Acabamos por ver muitos médicos deixar o SNS e a sair para o privado ou a emigrar. Dizia-me que é preciso cativar estes profissionais, que é preciso dar futuro, aumentar salários, mas que outras medidas são realmente necessárias para os cativar?
Há três linhas de atuação. Questão remuneratória, para que os médicos, como qualquer outra pessoa, possam fazer face às condições de vida que têm pela frente. Depois, é absolutamente central reinventar e estabelecer de novo as carreiras médicas. As carreiras médicas é o mais potente estímulo à qualificação dos médicos. Porquê? Porque, por um lado, quando se evolui na carreira, há a contrapartida financeira, mas não é só por isso. Há qualificação profissional, há exigência formativa. Portanto, se for eleito bastonário, tenciono propor a reabertura das carreiras médicas e a sua extensão ao setor privado. É absolutamente central que o nosso sistema de Saúde, que tem uma forte componente pública, mas também tem uma forte componente privada e social, dê as mesmas oportunidades aos médicos, em qualquer setor, de progredir na carreira.
E, finalmente, é preciso dar as condições para que os médicos se realizem. Dou-lhe alguns exemplos. Há médicos que gostam de fazer investigação, por isso, os hospitais têm que dar condições e têm que valorizar condições materiais, recursos para investigar, financeiramente para que se desenrole essa atividade. Desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, visitei o Hospital Curry Cabral, tem um excelente centro de cirurgia robótica, mas percebi que a vasta maioria da cirurgia robótica hoje não esta no SNS, está no setor privado, coisa que não acontecia há 20 anos. Se nós queremos reter os jovens no SNS, temos-lhe de lhe dar a capacidade de um desenvolvimento pleno da profissão. Há uma multiplicidade de intervenções que são urgentes, que tardam e que, naturalmente, só com uma mudança profunda da própria Ordem dos Médicos é que é possível esse sonho tornar-se realidade.
Acabar com as PPP apenas por opção ideológica... o resultado está a vista
Falou aqui de algumas condições que são muito diferentes quando comparamos o setor público e o setor privado. Como é que olha para o fim das parcerias público-privadas (PPP) na saúde?
Acho que foi uma opção ideológica. O sistema de Saúde existe para servir os doentes, não é para servir os políticos, nem os ideólogos. Temos que deixar de lado blindagens ideológicas e perceber o que é que serve melhor os doentes. E atenção, não sou, nem deixo de ser defensor das PPP, eu apenas digo que o modelo que melhor servir os doentes pode e deve se implementado.
Se se comprovar que as PPP custam menos dinheiro ao contribuinte, geram os mesmos níveis de qualidade assistencial e de excelência técnica e, obviamente, mantendo a equidade, que é o valor central no acesso à Saúde, não tenho nenhuma oposição a que elas existam. Agora, acabar com as PPP apenas por opção ideológica... o resultado está a vista. Tive oportunidade de visitar alguns hospitais, nomeadamente o hospital de Braga, que reflete isso mesmo.
Devem ser feitos esforços para ir buscar centenas e centenas de médicos de família que saíram por vários motivos do SNS
Há outra questão que me parece também essencial que é a falta de médicos de família. O Governo também anunciou a criação de Unidades de Saúde Familiar modelo C (USF-C) temporárias para dar resposta a esta necessidade. Parece-lhe uma boa medida?
Não tenho, obviamente, pelas mesmas razões das PPP, nenhuma objeção ideológica às USF-C, no fundo, é uma espécie de parceria público-privada a nível dos Cuidados de Saúde privados. E, portanto, dito isto, naturalmente, abrindo e havendo médicos dispostos a isso, ou cooperativas ou associações de médicos, nada tenho a opor. Mas não creio que tenham sido esgotados todos os esforços por parte do Governo para captar médicos de família para as USF-B. Repito, não tendo nenhum problema ideológico ou de outra natureza com o modelo tipo C, e se vier, seguramente será bem-vindo, também entendo que a par e passo devem ser envidados esforços para ter no SNS e nas USF-B os médicos que existem. Alguns saem para o setor privado, outros estão aposentados, mas podem contratualizar, para que o Estado mantenha um pilar central nos Cuidados de Saúde Primários.
Resumindo e concluindo: Não tenho nenhuma oposição às USF-C, mas acho que devem ser feitos esforços para ir buscar centenas e centenas de médicos de família que saíram por vários motivos do SNS de volta. Mas voltamos ao mesmo problema, não se pode obrigar a vir, tem que se dar as condições para que eles queiram vir.
Um dos constrangimentos à evolução do sistema de Saúde foi, por um lado, dizer-se que os Hospitais EPE estão dotados de autonomia, mas, por outro lado, não dar as condições para o exercício dessa autonomia
Já se percebeu que defende uma centralização, que deve ser dada autonomia aos hospitais. O Governo também anunciou a contratação direta de médicos pelos hospitais públicos…
Tudo o que for reforçar autonomia dos Hospitais, nomeadamente, das entidade públicas empresariais, parece-me uma boa medida. Não tenho nenhuma objeção, pelo contrário. Acho que um dos constrangimentos à evolução do sistema de Saúde foi, por um lado, dizer-se que os Hospitais EPE estão dotados de autonomia, mas, por outro lado, não dar as condições para o exercício dessa autonomia. Obviamente que vejo isso com bons olhos, mas era importante uma evolução adicional, num sentido mais estratégico, num planeamento de Saúde em Portugal e de uma reforma de fundo e não de reformas parcelares, ou de medidas parcelares como essa. Mas claro que são todas bem-vindas para tentar pôr um sistema que tem de ser reinventado a funcionar um pouco melhor. Vamos ver o resultado.
Faz todo o sentido que a especialidade de Medicina Paliativa venha a ser criada
Outro tema que está na ordem do dia e muito tem dividido a sociedade e os médicos é a Eutanásia. Sabemos que foi o criador do testamento vital em Portugal e que tem também defendido a importância da especialidade de Medicina Paliativa. Como encara esta discussão e a posição dos médicos relativamente à despenalização da morte medicamente assistida?
Sou um enorme defensor e penso que muito contribuí no plano da formação, sou o diretor do único programa doutoral em Cuidados Paliativos em Portugal. Contribuí muito. Tenho centenas de estudantes de mestrado e doutoramento em Cuidados Paliativos e, portanto, creio que é absolutamente central que Portugal esteja dotado, rapidamente, de uma Rede Nacional de Cuidados Paliativos, para que os doentes terminais encontrem junto do sistema de Saúde entidades e profissionais altamente acreditados e especializados no tratamento e, se não for possível, no acompanhamento da sua doença terminal, com profissionalismo e humanização. Obviamente que, nesta trajetória, faz todo o sentido que a especialidade de Medicina Paliativa venha a ser criada.
Quanto à Eutanásia, para mim a questão do ponto de vista da Ordem dos Médicos é relativamente objetiva. A Ordem dos Médicos não é um órgão legislador, o legislador é a Assembleia da República, podia ter-se auscultado a opinião da população pela via referendária, mas enfim, os poderes públicos entenderam, ao contrário do que aconteceu com a interrupção voluntária da gravidez, que não deviam ouvir a população, não consigo entender porquê, mas enfim, é uma opção que é legítima do ponto de vista formal e do ponto de vista político.
Se a lei vier a ser aprovada, tudo leva a querer, com mais ou menos alterações à proposta que foi recentemente analisada, obviamente que a Ordem dos Médicos, que não é legislador, não se vai pronunciar sobre a lei, mas vai cumprir, até prova em contrário, até que os órgãos próprios da Ordem mudem de opinião, com aquilo que está estatuído nos códigos deontológicos, estatutos e demais obrigações nacionais e internacionais dos médicos.
Ou seja, em primeiro lugar, obviamente, vai respeitar o direito soberano de todos os médicos a fazerem eles próprios as suas escolhas. Isto é, se a sociedade vier a dar a oportunidade aos doentes, aos doentes terminais, aos doentes com doenças irreversíveis, de fazer escolhas nesta matéria, obviamente que os profissionais também deverão ter a mesma possibilidade de fazer essa escolha. Um primado que é absolutamente central na minha perspetiva e que está aliás plasmado no código deontológico é precisamente o respeito pela objeção de consciência dos médicos. E portanto, depois, obviamente, que as decisões serão remetidas para a consciência individual e profissional de cada médico nos termos da lei que venha a ser aprovada.
Não tenho nenhum problema com a abertura de novas escolas médicas, o problema é se elas fazem falta
Muito se tem falado também sobre a aprovação da criação de um curso de Medicina na Universidade Fernando Pessoa, no Porto - tendo já a Ordem pedido a revogação desta aprovação. Olhando para isto, de uma forma mais geral, acha que a qualidade da formação médica é posta em causa com a abertura de cursos de Medicina no privado?
Eu diria o seguinte: Há um problema de raiz em Portugal, muito antigo, e que se prende com o facto de, por um lado, não haver planeamento estratégico, nem matéria de instalações de equipamentos, nem matéria de recursos humanos, e, por outro lado, a falha de implementação de reformas estruturais na Saúde leva a estas tristes condições.
Portugal é o segundo país da OCDE com maior número de médicos por mil habitantes e, ainda assim, a opinião pública tem a percepção de que há falta de médicos em Portugal. E isso gera, naturalmente, um movimento para a criação de novas escolas. Eu não tenho nenhum problema com a abertura de novas escolas, o problema é se elas fazem falta. Ao invés de estarmos a aumentar a formação de médicos, que não vão ter depois posição no mercado de trabalho, como já se viu, devíamos querer reformar o sistema de Saúde, planear estrategicamente a política de recursos humanos para formamos os médicos e as médicas que o sistema realmente necessita.
Ao invés disso, andamos a contaminar o debate social com esta falsa questão da falta de médicos e o resultado vais ser o mesmo. Com certeza não vamos ficar por aqui com a abertura de novas escolas médicas, mas daqui a 10 anos vamos verificar que se nada se fizer, não resolveu absolutamente nada em matéria do Sistema de saúde. Não tendo nada de objeção, em princípio, vejo com muitas reservas a necessidade da sua abertura.
Vi casos de médicos que preferiam ser taxistas – sem nenhum desprimor pela profissão – a exercerem Medicina em Espanha e Itália. O que conta é qualidade, não é a quantidade
Ou seja, não tem propriamente que ver com o ensino privado ou ensino público, mas sim uma questão de necessidade?
Tem a ver com a necessidade intrínseca da sua existência. Portugal forma milhares de médicos, se não se dá lhes dá as condições para eles trabalharem no sistema de Saúde, podem formar mais médicos. Além do mais, é uma sobrecarga muito grande para o sistema e para o contribuinte.
Podemos formar à vontade, o resultado não vai ser diferente. Aliás, isto passou-se há décadas atrás, com países que não tinham numerus clausus na Medicina, como Espanha e Itália. E percebeu-se que entrar qualquer um para Medicina não resolveu absolutamente nada. Porque, no fim de linha, sem condições, vi casos de médicos que preferiam ser taxistas – sem nenhum desprimor pela profissão – a exercerem Medicina em Espanha e Itália. O que conta é qualidade, não é a quantidade.
Nunca, nunca, a Medicina esteve tão mal
Para terminar e numa pergunta muito mais dirigida às eleições, porque é que deve ser eleito bastonário da Ordem dos Médicos?
Por uma razão muito simples, porque a Medicina está a bater no fundo, como todos nós sabemos, basta visitar o país para se perceber que nunca, nunca, a Medicina esteve tão mal. Nunca os médicos estiveram tão desmotivados - os mais velhos a aposentarem-se precocemente, os mais novos que não querem simplesmente entrar no sistema, ou entram e querem sair, salários indignos da profissão médica, condições basicamente inexistentes em muitos casos e, nestas circunstâncias, só uma Ordem dos Médicos renovada, de novo sangue, novos projetos, é que consegue mudar o rumo do acontecimento.
Que ninguém acredite que com mais do mesmo vamos ter resultados diferentes. Com mais do mesmo, daqui a uns anos, vamos estar piores do que estamos hoje. Para conseguirmos inverter esta tendência é preciso um novo ciclo, uma nova equipa uma nova dinâmica, uma equipa rigorosamente livre, que não esteja com amarras nem aos poderes públicos, aos poderes políticos, aos grupos empresariais. Eu creio que a nossa candidatura é a única que, neste momento, dá essa garantia, de independência, de isenção, de verticalidade. Gerir a Ordem para beneficio dos médicos e não para beneficio dos dirigentes.
Sou a alternativa, eu e a minha equipa, a mais do mesmo
Pode-se dizer que é a alternativa a "mais do mesmo"?
Sou a alternativa, eu e a minha equipa, a mais do mesmo. Mais do mesmo vai levar a uma Medicina ainda mais degradada do que aquela que temos hoje.
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