JMJ? "Falta de organização e excesso de otimismo" preocupam

A suspensão da greve durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), as dificuldades existentes no SNS (Serviço Nacional de Saúde) e as negociações dos sindicatos com o Governo foram o mote desta entrevista a Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), ao Notícias ao Minuto.

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José Miguel Pires e Ema Gil Pires
24/07/2023 09:43 ‧ 24/07/2023 por José Miguel Pires e Ema Gil Pires

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Jorge Roque da Cunha

Aproxima-se a passos largos o início da JMJ (Jornada Mundial da Juventude), que tem suscitado preocupações acerca de uma eventual sobrecarga de muitos serviços, nomeadamente os de Saúde. É esta, também, uma questão para Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), que, em entrevista ao Notícias ao Minuto, critica a "falta de organização e o excesso de optimismo" que considera ter existido na preparação do evento.

Na ótica do representante, em "termos de serviços de saúde, num evento que sabíamos há muito tempo que teria lugar, podíamos ter feito melhor em termos de planeamento".

Porém, há muitos outros temas que preocupam Jorge Roque da Cunha (bem como a classe dos médicos no seu todo). Acusa, assim, o ministro responsável pela pasta, Manuel Pizzaro, de "muita retórica e propaganda, a par de uma clara incapacidade de convencer o primeiro-ministro e o ministro das Finanças em investir no SNS (Serviço Nacional de Saúde) para nele manter os médicos especialistas e contratar os que são necessários" - falando, neste caso em particular, do campo da saúde materno-infantil.

Essa mesma "falta de investimento crónico e persistente" que diz ser tranversal ao SNS leva o secretário-geral do SIM a procurar, junto do Governo "um acordo global que permitisse existirem médicos – e outros profissionais, aliás – que garantissem o acesso dos portugueses à saúde".

JMJ? Houve pouca informação disponibilizada aos médicos sobre a resposta, e as especificidades de um evento desta magnitude não se compadecem com amadorismo ou improviso

Relativamente à JMJ, o que é que mais o preocupa nessa semana no que toca ao serviço de Saúde no país e, principalmente, em Lisboa?

A falta de organização e o excesso de optimismo. Houve pouca informação disponibilizada aos médicos sobre a resposta, e as especificidades de um evento desta magnitude não se compadecem com amadorismo ou improviso. Os médicos darão seguramente a resposta necessária, apesar da insatisfação patente e da dificuldade da tutela em encontrar as soluções para um SNS ao serviço da população, seja a residente, seja aquela que nos visita.

A preparação para essa afluência tem sido a ideal? O que é que poderia ter sido mais bem feito?

Em termos de serviços de saúde, num evento que sabíamos há muito tempo que teria lugar, podíamos ter feito melhor em termos de planeamento. A JMJ acabou até por ser adiada um ano, mas esse período extra não foi aproveitado. Desde logo era fundamental uma divisão clara das responsabilidades de quem ficava responsável pela prestação de cuidados e uma clarificação acerca do modo como as diversas entidades se deviam articular. E acaba por ser uma oportunidade desperdiçada. Tal como no caso do palco, que é expectável que venha a ser utilizado no futuro, também na área da saúde se podia ter aproveitado para melhorar a resposta pré-hospitalar e de cuidados de saúde, além dos sistemas de informação. Eram fatores importantes para a gestão dos serviços durante o evento, mas que, em sendo bem definidos e provados, teriam um impacto positivo no futuro, bem para lá da Jornada.

O SIM saúda a vinda do Papa e entende que seria mau diminuir o já muito difícil acesso aos cuidados de saúde numa semana em que centenas de milhares de pessoas nos visitam

Quais as razões pelas quais o SIM decidiu suspender a greve às horas extra em Lisboa durante a JMJ? Houve oposição interna?

O SIM saúda a vinda do Papa e entende que seria mau diminuir o já muito difícil acesso aos cuidados de saúde numa semana em que centenas de milhares de pessoas nos visitam e não faria sentido dar um sinal que pudesse ser considerado com de animosidade, interna ou para o exterior em relação a este importantíssimo acontecimento. 

Por outro lado, o Sindicato sempre foi contra aproveitar eventos, quaisquer que sejam, para manifestar o seu descontentamento. Temos o ano todo para o fazer caso o Governo persista em não demonstrar com decisões concretas o amor que proclama pelo SNS. Essa decisão mereceu a concordância generalizada dos nossos associados.

Desde logo, não tendo uma médica interna autonomia para dar altas, coloca-se em questão a forma como se tomam decisões sem tutela

Relativamente ao caso da médica interna que denunciou casos de más práticas no Hospital de Faro, e que diz ter sofrido represálias, que comentário faz?

Desde logo que se deveria evitar comentar precipitadamente este tipo de situações na esfera mediática. Dever-se-ia aguardar que essas acusações de represálias se averiguassem, bem como as gravíssimas acusações de homicídio feitas a cirurgiões. Deve haver prudência em fazer juízos precipitados e a situação deve ser investigada, nomeadamente sendo dado espaço para que os tribunais e a Ordem dos Médicos façam o seu trabalho sem pressões da opinião pública, garantindo-se que os acusados, tal como a acusadora, tenham os mesmos direitos. Chegados a esse momento, expressarei uma opinião séria, porque informada. Julgamentos na praça pública são sempre maus.

Recentemente, foi acusada de ter dado alta a uma jovem esfaqueada no pescoço, que acabou por morrer depois na sequência de uma septicemia. Já desmentiu a situação. Qual é a sua opinião sobre este caso? O que é que está aqui em causa?

Tal como a acusação que fez aos cirurgiões, deve ser investigada e avaliada esta acusação da qual foi alvo. Desde logo, não tendo uma médica interna autonomia para dar altas, coloca-se em questão a forma como se tomam decisões sem tutela. Repito, julgamentos na praça pública são sempre maus, é necessário aguardar a devida investigação.

Podem estes casos gerar receio noutros médicos de denunciar as más práticas nos seus respetivos locais de trabalho?

As denúncias fundamentadas são um dever ético e deontológico, tal como o é o cuidado a ter para evitar denúncias infundadas. As práticas mais ou menos abusivas, as pressões para isto e aquilo existem não só na Saúde como noutras áreas da administração pública. Ao longo dos anos vão sempre surgindo histórias de denúncias com e sem fundamento, com e sem efeitos sancionatórios práticos (e com ou sem represálias para os seus autores). A pergunta que coloca importa não apenas a este e a outros casos, mas em muita medida à existência ou não de mecanismos (e sua verdadeira eficácia) para que seja possível aos profissionais a denúncia de casos dignos de tal sem receio de represálias, bem como a certeza de verem garantida a sua capacidade de defesa (até da credibilidade e da imagem) quando são alvo de denúncias infundadas.

No limite, posso dizer que entre não existir solução para o nascimento de uma criança e esta nascer numa instituição privada, a segunda hipótese é obviamente a preferível. No entanto, a solução é investir no SNS

Relativamente à transferência de grávidas do Santa Maria para hospitais privados, acha que esta é uma boa solução para a eventual incapacidade do hospital de responder à afluência de grávidas?

A falta de investimento no SNS resultou na incapacidade de uma resposta adequada e o programa 'Nascer Seguro' é uma falácia. Assistimos ao encerramento de maternidades sem reforço daquelas que já tinham dificuldades em responder às grávidas da sua área de residência. No limite, posso dizer que entre não existir solução para o nascimento de uma criança e esta nascer numa instituição privada, a segunda hipótese é obviamente a preferível. No entanto, a solução é investir no SNS.

Não temos preconceitos ideológicos quando está em causa a saúde dos portugueses. Isto não significa que admitamos como plausível o contínuo desinvestimento no SNS, que cada vez mais definha, sendo desviados utentes para o sector privado quando já não é possível disfarçar o estado a que se vai levando o sector público. Coisa diferente é falarmos, por exemplo, em soluções programadas de fundo (e não meros 'tapa-buracos'), como o foram diversas PPP que, de acordo com relatórios do Tribunal de Contas, apresentavam melhor satisfação de profissionais e utentes, com menor dispêndio de dinheiro público.

Não esqueçamos, ainda, que todos os anos o Estado paga centenas de milhões de euros em prestações de serviços a médicos que trabalham nos próprios hospitais públicos, sobretudo nos serviços de urgência, o que é igualmente pagar ao sector privado (até porque muitas vezes existem empresas intermediárias que são quem recebe grande parte desse dinheiro). Esses milhões, em sendo investidos no SNS, ajudariam a melhorar as condições no geral e a permitir ter médicos suficientes no próprio SNS para dispensar esse desvio de fundos.

Como avalia o tratamento destes casos por parte do ministro da Saúde?

Muita retórica e propaganda a par de uma clara incapacidade de convencer o primeiro-ministro e o ministro das Finanças em investir no SNS para nele manter os médicos especialistas e contratar os que são necessários. A prestação de bons cuidados, a manutenção da formação de novos profissionais, o acesso a determinado tipo de tratamentos para certas doenças (que, não dando lucro, não interessam ao sector privado), são exemplos do que o SNS poderia e deveria permitir. Sem médicos especialistas e uma carreira médica digna, não é possível formar novos médicos especialistas e, mesmo os que se vão formando, vão cada vez mais saindo do SNS, quebrando um ciclo de renovação que tem permitido os seus bons resultados, reconhecidos internacionalmente ao longo de décadas. 

O caso da saúde materno-infantil é um desses exemplos de bons resultados. Tal como as restantes áreas, é afetada por esta perpetuação de desinvestimento que o senhor ministro parece não conseguir convencer os seus colegas de Governo a quebrar. Se eu tenho um serviço de Ginecologia-Obstetrícia com necessidade de quinze médicos, no qual estão apenas dez, e todos têm mais de 60 anos porque não há capacidade de captar novos especialistas, não é difícil de perceber o que vai acontecer a curto prazo.

Pensa que o país está a criar condições para assegurar segurança às grávidas, numa altura em que se bate contra uma crise demográfica?

A evidência mostra que não. Quando a propaganda se confronta com a realidade, a realidade ganha sempre. Há muitos de milhares de grávidas sem médico de família que não têm a sua gravidez devidamente acompanhada.

Lá está, não me chocaria que durante um determinado período, até existirem os recursos necessários, fossem chamados os privados para complementarem esta vigilância. No entanto, se não são tomadas as devidas medidas em paralelo, esse período não vai ser finito, e nunca vamos resolver o problema.

Não temos preconceitos ideológicos quando está em causa a saúde dos portugueses

Neste momento, no que toca às condições de trabalho dos médicos, que novos acordos quer atingir com a tutela?

Queríamos um acordo global que permitisse existirem médicos – e outros profissionais, aliás – que garantissem o acesso dos portugueses à saúde. Existem várias hipóteses de organização do Serviço (ou o Sistema) Nacional de Saúde. Como referi, não temos preconceitos ideológicos quando está em causa a saúde dos portugueses. Ainda assim, é claro que, independentemente do modo de organização, não existe um Serviço ou Sistema de Saúde sem médicos, e concretamente sem médicos especialistas, que se possam ir renovando. É esta a importância de captar especialistas e de manter a capacidade formativa de novos médicos internos (futuros especialistas), que sejam por sua vez também captados.

Qual é o assunto mais alarmante para os médicos, neste momento, no que toca às condições de trabalho? E como é que se pode resolver?

A falta de investimento crónico e persistente que faz com que, quer em termos de recursos humanos, quer em termos de equipamentos (os privados estão muito mais avançados, quando a realidade era a contrária há uns anos), quer em termos de condições de trabalho, a situação que se vive seja extremamente grave.

Resolve-se quando o amor proclamado por um Governo no poder há sete anos, agora com maioria absoluta, deixar de ser platónico e se materializar num investimento sério, aplicando uma parte da colossal carga de impostos no SNS (em 2022 foram cobrados mais cerca de 11 mil milhões de euros do que em 2021). Isto, além de outros excedentes que já referi, como os pagamentos de prestações de serviços, ou até de exames complementares de diagnóstico que são realizados no sector privado por falta de resposta no SNS. Um dos evidentes investimentos terá de ser nos salários dos médicos. 

Não esqueçamos que os médicos como um todo não só não aumentaram o seu ganho médio mensal ao longo dos últimos dez anos, como são dos escassos funcionários públicos que o diminuíram, tendo perdido quase 20% do seu poder de compra. 

A sangria de médicos do SNS à qual assistimos, com as consequências noticiadas quase diariamente, não poderá ser travada sem tal investimento (acompanhado da resolução de outros problemas, como os que referi). Recordo que existem em Portugal mais médicos especialistas de Medicina Geral e Familiar do que os que seriam necessários para cobrir o mais de milhão e seiscentos mil de portugueses sem médico de família; boa parte deles não trabalha no SNS porque o SNS não é capaz de os captar e manter.

Leia Também: Médicos de família e farmacêuticos voltam esta segunda-feira à greve

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