"Crianças vítimas de maus-tratos prolongados têm alterações" neurológicas
A violência doméstica tem consequências na saúde das crianças, obrigando-as a estar permanentemente em estado de alerta e de sofrimento, o que provoca alterações neurológicas, psicológicas e emocionais, alertaram hoje especialistas.
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Segundo a psicóloga Maria Louro, docente e representante de Portugal na Associação Iberoamericana de Psicologia Jurídica, em média, aos três anos as crianças já têm capacidade para memorizar o que se passa à sua volta e diferenciar entre realidade e fantasia.
"Muitas vezes os pais acham que não ter discussões diretas à frente das crianças não tem impacto porque elas não se apercebem, mas sabemos que isso não corresponde à verdade, até porque, muitas vezes, os pais vivem numa espécie de 'guerra fria', não conversam, estão infelizes e isso marca a criança", disse, perante uma plateia de algumas dezenas de pessoas, no âmbito de uma conferência organizada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Oeiras.
O tema era "Reflexão sobre o impacto da violência doméstica no desenvolvimento das crianças e jovens" e a especialista apontou que quando se fala de violência doméstica, fala-se de violência intrafamiliar, "que deixa sequelas muito mais profundas", uma vez que a família deveria ser um espaço seguro.
Maria Louro apontou que se trata de uma violência repentina e imprevisível, em que a criança está permanentemente à espera que qualquer coisa possa desencadear um episódio de violência, como se estivesse sempre em 'suspense'.
Segundo a psicóloga, é como se a criança estivesse em modo de sobrevivência, que provoca alterações biológicas, mas também psicológicas e emocionais.
"Os estudos demonstram que crianças vítimas de maus-tratos prolongados têm de facto alterações do ponto de vista neuroanatómico e neurológico exatamente pela manutenção da vigilância constante, que a mantém em sobressalto", explicou, acrescentando que nessas situações o organismo produz mais adrenalina, semelhante ao que acontece quando alguém tem de defender-se ou "vive num clima de tensão e de terror".
Maria Louro defendeu uma maior atenção aos comportamentos das crianças, alertando que perante uma incapacidade de denúncia da criança, são muitas vezes as mudanças "abruptas" de comportamento que podem ajudar a identificar que algum problema existe.
Deu como exemplo alguns casos de perturbação de hiperatividade/défice de atenção, que "surgem exatamente de um comportamento completamente desajustado, de grande impulsividade", fruto do "contexto violento em casa".
De acordo com a profissional, o impacto da violência doméstica pode também causar, a curto prazo, pesadelos, raiva, culpa, vergonha, isolamento social, quadros depressivos, agressões a outras crianças ou queixas psicossomáticas.
A pediatra e representante do Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco do Centro Hospitalar Lisboa Oriental (Hospital São Francisco Xavier), Ana Caldeira, chamou a atenção para o conceito de stresse tóxico, "uma resposta biológica a adversidades graves e prolongadas, sobretudo quando não há pelo menos uma relação estável e afetiva", que pode provocar "alterações da arquitetura cerebral".
Ana Caldeira frisou que este stresse tóxico "afeta negativamente o desenvolvimento" das crianças e jovens, sublinhando que "uma grande parte da arquitetura cerebral é estabelecida durante os primeiros três anos de vida".
Apontou que os dados estatísticos mostram que cerca de um terço das ocorrências de violência doméstica reportadas foram presenciadas por crianças, o que traz o risco de exposição a eventos traumáticos ou risco de negligência.
De acordo com a médica pediatra, os impactos são diferentes consoante a idade da criança e até aos três anos podem provocar atrasos no desenvolvimento ou problemas na vinculação, por exemplo, enquanto em idades entre os três e os cinco anos pode haver stresse pós-traumático, ansiedade, comportamentos regressivos ou baixa autoestima.
Entre os seis e os 10 anos há casos de traumatismos por agressões, 'bullying', dificuldades na aprendizagem ou dificuldade em relacionar-se com os pares, enquanto nos adolescentes pode levar a comportamentos sexuais de risco, agressividade, abuso de substâncias ou violência no namoro.
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