O homem que matou o pai e a irmã grávida durante um surto psicótico em Santa Cruz, no concelho de Torres Vedras, viu o seu pedido de acesso à herança do progenitor ser-lhe negado, por decisão dos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa. Ainda assim, o veredito não foi consensual, pelo que poderá vir a ser analisado novamente.
O caso remonta à noite do dia 13 de novembro de 2020, quando o agressor se deparou com o pai na cozinha a cortar alimentos, ao chegar a casa. O crime terá ocorrido entre as 23h00 e as 00h00, na sequência de uma troca de palavras, tendo o homem disferido vários golpes de faca contra o progenitor. Este, com cerca de 60 anos, conseguiu fugir para o seu quarto, onde fechou a porta e se dirigiu para a varanda. Foi aí que acabou por morrer e veio a ser encontrado pelas autoridades, no dia seguinte.
Ao aperceber-se do sucedido, a irmã do homicida, que estava grávida de três meses, tentou socorrer o pai, mas acabou por ser, também, esfaqueada. A mulher de 37 anos morreu na cozinha da residência.
As vítimas foram encontradas já sem vida pelos bombeiros e pela Guarda Nacional Republicana (GNR), que arrombaram a porta da residência. As autoridades tinham sido alertadas por clientes da peixaria do pai, que estranharam o estabelecimento estar encerrado e ninguém responder na habitação.
Depois dos assassinatos, motivados pela crença de que "o pai seria o diabo e a irmã uma cavaleira das trevas que incorporava a guerra, e que ambos estariam do lado do mal, enquanto o arguido estaria do lado do bem", o homem, que sofre esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides, abandonou a residência e fugiu no veículo do progenitor para o Bairro da Cova da Moura, em Lisboa, onde foi detido por agentes da Polícia Segurança Pública (PSP), no dia 16 daquele mês.
O homicida, que já tinha ameaçado os familiares noutras ocasiões, foi considerado inimputável devido à doença mental de que padece, razão pela qual foi condenado, em 2022, a internamento hospitalar por um período mínimo de três anos e máximo de 25, bem como ao pagamento de 50 mil euros aos tios, irmãos do pai.
Foram estes que contestaram o pedido do homem de acesso à herança, cuja decisão foi divulgada no passado dia 5 de dezembro, em acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Acontece que, como não foi condenado no sentido legal, o agressor não preenche os requisitos para ser considerado indigno de herdar os bens do progenitor. O órgão jurídico recorreu ao chamado abuso do direito, que proíbe o uso da lei para violar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, mas o veredito dividiu os juízes.
Se dois dos três magistrados reconheceram que, no momento dos assassinatos, "o arguido laborava numa realidade paralela [...], encontrando-se a sua doença em estado agudo […] por falta de medicação", os responsáveis argumentaram que "o direito a suceder do seu pai, por si brutalmente assassinado - objetivamente - corresponde a uma conduta clamorosamente ofensiva da Justiça, ou mesmo a uma afronta ao sentimento jurídico dominante".
"Chocaria qualquer um/a, chocaria o/a cidadão/ã comum, chocaria a já referida 'pessoa de bem', chocaria os bons costumes [...], e chocaria mesmo com o fim social do direito. Assim, o exercício do direito do réu a suceder no património de seu pai é ilegítimo e tem de ficar paralisado, uma vez que corresponderia ao exercício abusivo de um direito", complementaram, tendo apontando que "a doença em causa se se não o pode prejudicar, também o não pode beneficiar".
Justificaram, além disso, que o homem, "ao aceitar a herança de seu pai (e fá-lo, sem lugar a dúvida razoável, desde logo pela contestação que deduz à presente ação e pelo recurso que interpôs da Sentença proferida na 1.ª Instância) está - inequivocamente e sem qualquer rebuço - a aproveitar-se de um ato seu, ilícito, doloso e chocante, que foi precisamente o homicídio violento daquele".
"Ou seja, o réu pretende beneficiar do ato ilícito e doloso que praticou. E ser o seu único beneficiário. […] Esta consequência é, por si só, inadmissível, dir-se-á mesmo chocante, para a consciência jurídica e ética de qualquer um/a", reiteraram.
"O doente mental e a sua doença não estão do mesmo lado"
Por seu turno, o juiz Paulo Ramos de Faria apresentou uma declaração de voto vencido, uma vez que, na sua ótica, o veredito reforça o estigma associado a doenças mentais graves, como é o caso da esquizofrenia.
"Tendo o doente mental, durante um surto psicótico, praticado factos tipificados como crime contra pessoas da sua família nuclear – no caso, contra o pai e contra a irmã –, não podemos deixar de considerar que, também ele, é vítima desta atuação. Na verdade, o doente mental grave é várias vezes 'castigado'", indicou, tendo enumerado que o arguido "é 'castigado' com a doença mental que destrói a sua vida; é 'castigado' com a medida de segurança aplicada (o internamento); é 'castigado' com a perda dos entes queridos; é 'castigado', nos momentos de lucidez, com a consciência de que tirou a vida àqueles que mais estimava e que mais o estimavam", sendo ainda 'castigado' pelo estigma associado à sua condição.
E continuou: "Fazendo vencimento a posição sufragada na sentença impugnada, será, ainda, 'castigado' com a segura indigência em que cairá. Tudo isto, apenas e só, porque teve o infortúnio de padecer de uma doença mental grave e crónica."
O magistrado apelou, por isso, a que se evitem "soluções que tendam a refletir preconceitos em torno da condição do doente mental". A título de exemplo, equacionou que, caso o homem tivesse matado o pai na sequência de "um ataque epilético ou um estado cegueira momentânea, a solução dada ao caso pelo tribunal a quo seria diferente, por a morte não decorrer da sua vontade (lúcida)".
"Aliás, ainda que o réu tivesse pleno controlo da sua vontade e das suas ações, não lhe seria aplicada esta pena civil, se a sua conduta apenas revelasse culpa grave (negligência grosseira), e não dolo. Responsabilizar o doente mental pela sua doença, sem nenhuma base factual que revele que esta foi provocada pelo próprio, representa um desrespeito pela sua dignidade humana, cunhando-o com características de personalidade altamente censuráveis num indivíduo com capacidade de autodeterminação", justificou ainda.
O juiz foi mais longe, tendo apontado que "o doente mental e a sua doença não estão do mesmo lado", já que "a doença ataca e está contra o doente". "Respeitar a 'loucura', imputando as suas manifestações à vontade do doente mental, é desrespeitar a pessoa vítima da doença", disse.
A decisão poderá, assim, vir a ser reapreciada, desta vez pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Leia Também: Condenado a internamento por homicídio do pai e da irmã em Torres Vedras