"A nossa intenção era boa, mas a alteração do Programa, no próprio dia 25 (de abril de 1974) na Pontinha (Posto de Comando do MFA), donde se retirou a referência ao direito dos povos à autodeterminação e independência, por ação do Spínola, complicou tudo", explica o coronel Vasco Lourenço numa longa entrevista à historiadora Maria Manuela Cruzeiro, do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, e publicada em livro em 2009, "Vasco Lourenço - do interior da Revolução".
Em plena Guerra Fria, as declarações de independência dos antigos territórios coloniais portugueses em África, enquadradas no processo de descolonização, provocam o "retorno" de mais de meio milhão de pessoas a Portugal e a eclosão de violentas e prolongadas guerras civis em Angola e Moçambique entre os vários partidos armados - com a morte de milhares de civis.
Numa primeira fase, verificou-se a supremacia da influência do bloco soviético e a imediata reação armada por parte do regime do 'apartheid' sul-africano e da Rodésia.
Em Timor-Leste, a FRETILIN declarou a independência unilateral em novembro de 1975, durante a guerra civil, tendo as forças militares portuguesas retirado do território.
O complexo caso timorense fica marcado pela invasão da ex-colónia por parte da Indonésia. A ocupação prolongou-se de 1975 até 1999, tendo a independência sido oficialmente "restaurada" em 2002 - ao som do hino anticolonial e na presença de um presidente português, Jorge Sampaio. Mas isso só aconteceu após uma consulta popular que deu a vitória à independência em 1999 e a um período de administração liderado pelas Nações Unidas.
O caso particular de Macau, território chinês sob administração portuguesa até ao dia 20 de dezembro de 1999, conheceu um longo processo de transição, que decorreu quase em paralelo com o processo de transição da ex-colónia britânica de Hong Kong que terminou em 1997.
Resta resolver a esquecida questão de Cabinda que, do ponto de vista dos independentistas do enclave, está longe de estar solucionado e que acusam Angola de invasão e anexação em 1975 com apoio de forças cubanas e Portugal pelo alheamento em relação aos tratados firmados no século XIX no sentido da autodeterminação e independência.
Em Portugal, do ponto de vista social, em virtude do processo de descolonização, o regresso de milhares de portugueses apontados como "retornados" - em plena crise económica mundial - é ainda hoje motivo de divisões políticas e debates ideológicos.
E perduram no tempo os grupos de portugueses "espoliados" que reclamam direitos perdidos em 1975, mas cujo regresso de forma abrupta acabou por marcar a sociedade.
De acordo com a investigadora Maria Inácia Rezola, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, a questão colonial foi desde o início um motivo de fricção entre os militares do MFA e o general António de Spínola, que se opunha "frontalmente" à proposta de "imediata" concessão da independência às colónias.
"Há muito que Spínola manifestara ser o portador de um projeto -- assente nas teses que defendera em "Portugal e o Futuro" -- que contrariava os desígnios do MFA nesta matéria. Na proclamação que, como presidente da Junta de Salvação Nacional, dirigira ao país, na madrugada de 26 de Abril (1974), afirmara a sua vontade de garantir a 'sobrevivência da Nação soberana no seu todo pluricontinental'", escreve Maria Inácia Rezola, no livro "25 de Abril -- Mitos de uma Revolução" publicado em 2007.
Spínola, antigo governador da Guiné e primeiro Presidente da República, não eleito, após o golpe militar do 25 de Abril, faz mais tarde várias menções à possibilidade de realização de consultas populares nas colónias. Foi o que fez no encontro que manteve com o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, no dia 19 de junho de 1974, nos Açores.
Apesar das divergências, em julho, o novo primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, revela, na tomada de posse, que o Conselho de Estado tinha aprovado uma lei constitucional que reconhecia o direito dos povos à autodeterminação "com todas as consequências, incluindo o direito à independência".
A lei, publicada no Diário do Governo do dia 19 de julho de 1974 como Lei 6/74, refere a aceitação "da independência dos territórios ultramarinos".
A pressão internacional é constante, as negociações com a FRELIMO sobre Moçambique já estão em curso e os próprios militares portugueses no terreno exigem o cessar-fogo.
Spínola, a 27 de julho, num discurso transmitido pela televisão dirigido ao povo português de "aquém e além-mar", refere-se pela primeira vez à descolonização como um processo que conduz à independência dos povos.
Vasco Lourenço que o "problema" da descolonização foi "ultra complicado" porque os militares do MFA (Movimento das Forças Armadas) tinham boas intenções em termos de princípios, mas que acabaram por ser ultrapassados pelos acontecimentos e pelos protagonistas político-militares.
"Estávamos convencidos de que seria viável fazer as coisas com calma, mas o que é facto é que havia o outro lado. A guerra tem dois lados. E se do lado do colonizador se fala em descolonização, do lado do descolonizado fala-se em independência. O facto é que nenhum colonizador deu independência ao colonizado, sem ter havido, da parte deste, luta pela mesma. Isto é, a independência não se dá nem se recebe. Conquista-se! Na maior parte das vezes através da luta armada, como era o nosso caso em Angola, Guiné e Moçambique", disse.
Vasco Lourenço sublinha também que foi o tempo da palavra de ordem "nem mais um soldado para as colónias" e que já "ninguém queria dar tiros" numa guerra já reconhecida como "ilegitima", apesar de se verificarem situações de extrema tensão no terreno.
"Havia que tentar manter a força, para melhor negociar. É sempre assim, e os Movimentos de Libertação também o sabiam. Por isso, a sua intensificação no esforço da guerra, E posso garantir: se houve alguém que se esforçou para manter as nossas forças organizadas e operacionais foi precisamente o MFA. Agora, mais uma vez afirmo, só estando lá, só vivendo as situações se pode falar, quem nunca pecou que atire a primeira pedra!", concluiu Vasco Lourenço.
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