Covid-19? "Praticamente não temos anticorpos a circular e vírus evoluiu"

O epidemiologista Manuel Carmo Gomes é o convidado desta terça-feira do Vozes ao Minuto.

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Daniela Filipe
09/07/2024 08:39 ‧ 09/07/2024 por Daniela Filipe

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Covid-19

Quando, em maio do ano passado, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, anunciou "o fim da Covid-19 enquanto emergência de saúde global", ressalvou que o vírus estava "aqui para ficar". De facto, a transmissão da infeção tem vindo a apresentar "uma tendência crescente" a nível global, e Portugal não é exceção. 

Dados da Direção-Geral da Saúde (DGS) indicam que Portugal tem registado uma média diária de 12 óbitos e perto de 400 novos casos de Covid-19. Contudo, na ótica do epidemiologista Manuel Carmo Gomes, o valor real aproxima-se dos quatro mil contágios diários. É que, volvidos cerca de oito meses desde a última campanha de vacinação, os portugueses têm "uma concentração de anticorpos no sangue muito, muito, muito baixinha".

Como se não bastasse, as novas variantes têm "uma grande capacidade de fugir aos poucos anticorpos que ainda temos", o que explica, em parte, a onda de infeções que se tem feito sentir. Ainda assim, o professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa apontou, em conversa com o Notícias ao Minuto, que "não estamos numa situação que se compare minimamente à que já vivemos", ainda que tenha alertado que "há motivo para alarme apenas para um grupo restrito de pessoas".

Muitas pessoas foram vacinadas há sete, oito meses, e isso quer dizer todos nós temos uma concentração de anticorpos no sangue muito, muito, muito baixinha. Ainda por cima, estas variantes que estão a causar esta situação evadem os nossos anticorpos, fogem aos anticorpos

Tendo em conta a tendência crescente de casos de Covid-19 em Portugal, há motivo para alarme?

Acho que há motivo para alarme apenas para um grupo restrito de pessoas, que são as pessoas de alto risco para a doença Covid-19: pessoas imunocomprometidas, imunosuprimidas, idosos que têm comorbilidades e doenças crónicas de vários tipos e que, se forem infetados, podem descompensar. Devem resguardar-se, evitar aglomerados de pessoas, nomeadamente em espaços mal arejados, porque já sabemos como é que o vírus se transmite; é essencialmente por inalação no ar e, se o espaço não estiver bem arejado, temos alta probabilidade de o inalar e somos infetados.

Acontece que fomos todos vacinados há muito tempo, há mais de seis meses. Muitas pessoas foram vacinadas há sete, oito meses, e isso quer dizer todos nós temos uma concentração de anticorpos no sangue muito, muito, muito baixinha. Ainda por cima, estas variantes que estão a causar esta situação evadem os nossos anticorpos, fogem aos anticorpos. Têm pequenas mutações em certos sítios críticos do genoma que lhes conferem capacidade de escapar aos nossos anticorpos.

Portanto, quando combinamos uma situação em que temos variantes destas e, por outro lado, temos uma população em que praticamente já não há proteção, aquilo a que chamamos de imunidade humoral, que é a quantidade de anticorpos que temos no sangue, é evidente que somos infetados com facilidade.

É muito difícil prever as consequências de uma infeção, mesmo numa pessoa saudável, porque isso depende de várias coisas: depende do estado nutricional da pessoa, do estado imunitário e da dose de vírus que foi inalada. Uma coisa é inalar uma dose pequena num sistema imunitário que consegue responder, outra coisa é inalar uma grande dose

Agora, as pessoas que estão de boa saúde, que não têm razões para estar muito preocupadas com uma infeção respiratória, em geral podem passar um mau bocado mas recuperam e, na grande maioria dos casos, ultrapassam isto sem problemas. As pessoas mais frágeis acho que se devem resguardar, porque estamos numa altura de onda destas variantes novas e é de evitar serem infetadas.

Tem havido pessoas que reportam sintomas relativamente leves, rinorreias e dor de cabeça, e há outras que dizem que têm tido um cansaço como nunca tiveram. Pessoas que já foram infetadas antes dizem que, desta vez, foi pior. É muito difícil prever as consequências de uma infeção, mesmo numa pessoa saudável, porque isso depende de várias coisas: depende do estado nutricional da pessoa, do estado imunitário e da dose de vírus que foi inalada. Uma coisa é inalar uma dose pequena num sistema imunitário que consegue responder, outra coisa é inalar uma grande dose. Para as pessoas de maior risco, é mais perigoso.

Temos duas linhas de proteção imunitária: por um lado, os anticorpos, que nesta altura estão muito, muito baixos, e uma segunda linha de defesa, a que chamamos de células de memória ou imunidade celular, que leva, em média, entre quatro a seis dias a responder. Portanto, somos infetados, esta segunda linha de defesa é ativada, mas não responde logo. É por isso que somos infetados e adquirimos sintomas.

O período de incubação do vírus, que é o momento entre ele nos infetar e causar sintomas, é muito rápido; é coisa para três dias. Começamos logo a ficar com sintomas mas, se estivermos em bom estado imunitário, a segunda linha de defesa vem para a frente e evita a doença grave. Quem tem problemas de saúde pode não responder nem com a segunda linha de defesa imunitária.

Uma vez que já não é necessário reportar casos de infeção, antecipa que o número seja superior ao divulgado? 

Muito superior. Neste momento, segundo os dados da Direção-Geral da Saúde (DGS), estamos com uma média de 400 casos por dia. Acho que podemos, à vontadinha, multiplicar isto por 10 – no mínimo – para estarmos mais próximos da realidade.

A partir do dia 1 de outubro de 2022, deixou de se comunicar os casos, praticamente, porque os testes passaram a ser pagos, as pessoas começaram a fazer testes em casa e não comunicavam. Nos meses seguintes, tentámos estimar qual era o nível de subestimação, isto é, qual é o fator pelo qual temos de multiplicar os casos para saber qual é a realidade. Nessa altura, por volta de finais de 2022 e os primeiros meses de 2023, o valor variava entre 10, 11 e 12. Fizemos isso com base nos óbitos, porque não estão subnotificados. Acho que as coisas não mudaram muito. Portanto, estamos a ter quatro mil casos por dia, pelo menos.

Praticamente não temos anticorpos a circular, o vírus evoluiu e tem uma grande capacidade de fugir aos poucos anticorpos que ainda temos. Se entrarmos em contacto com ele, ficamos infetados; é muito difícil fugir a esta realidade

Como é que se controla uma doença que, neste momento, não está a ser monitorizada?

É uma infeção que está entre nós, tem períodos em que a circulação do vírus se intensifica mais, e o que acontece depende da combinação de dois fatores: por um lado, a capacidade de o vírus fugir ao nosso sistema imunitário e, por outro lado, há quanto tempo é que tomámos a última vacina.

Nesta altura, houve uma confluência de coisas: o surgimento destas novas variantes, que em Portugal, na América do Norte e em muitos países europeus a dominante é a KP.3, e o facto de já estarmos vacinados há mais de sete meses. Praticamente não temos anticorpos a circular, o vírus evoluiu e tem uma grande capacidade de fugir aos poucos anticorpos que ainda temos. Se entrarmos em contacto com ele, ficamos infetados; é muito difícil fugir a esta realidade.

Entretanto, o vírus continua a evoluir. Tem sido espantoso do ponto de vista biológico, porque tem uma taxa de evolução mais rápida do que a gripe e não para de evoluir; está constantemente a surgir com novas mutações, que têm sempre capacidade de fugir aos anticorpos que tinham sido gerados pelas variantes e vacina anteriores.

Neste momento, estamos em pleno verão com uma onda, mas no ano passado aconteceu a mesma coisa, e em 2022 também. Pelo menos até agora não conseguimos prever quando é que vão ser as ondas em função das estações do ano

As vacinas têm de ser atualizadas; a partir de setembro, vai ser feita a nova campanha de vacinação, e já vai ser com uma nova variante mais próxima destas que estão a circular. Durante quanto tempo é que vai ser assim? Não sei. Outra coisa a notar é que este vírus não tem sazonalidade; não é como a gripe e aqueles vírus respiratórios que estamos habituados a que surjam no outono e inverno e desaparecem na primavera e no verão.

Desde que se conjuguem aqueles dois fatores que lhe disse, que é surgirem variantes que fogem aos nossos anticorpos e já termos a vacina tomada há muito tempo, causa um onda. Neste momento, estamos em pleno verão com uma onda, mas no ano passado aconteceu a mesma coisa, e em 2022 também. Pelo menos até agora não conseguimos prever quando é que vão ser as ondas em função das estações do ano.

Claro, e os festivais de verão, por exemplo, também podem contribuir para esse pico.

É evidente que sim. Mas, pelo menos, a generalidade dos festivais passa-se ao ar livre. Se não houvesse a conjugação daqueles dois fatores, provavelmente, mesmo com os festivais, éramos capazes de não ter um surto como o que estamos a ter.

Caso o panorama se venha a agravar, poderá tomar contornos semelhantes aos de há quatro anos, ou já estamos suficientemente preparados para lidar com o vírus?

Em termos de Serviço Nacional de Saúde (SNS), neste momento não existe um impacto preocupante e não há perspetiva de que venha a existir. Não estamos numa situação que se compare minimamente à que já vivemos. Neste momento, estamos com cerca de 130 pessoas nos hospitais do SNS com um teste positivo e, quando a Ómicron esteve a circular, no princípio de 2022, chegámos a ter duas mil. O ano passado, por esta altura, estávamos com cerca de 250 a 300 pessoas internadas com teste positivo.

Mas o vírus não deixa de ser preocupante para um grupo de pessoas que são muito vulneráveis a isto e que podem ter doença muito grave e até morrer. Repare que os óbitos quadruplicaram em um mês; estamos com uma média de 12 óbitos por dia e, há um mês, tínhamos três por dia. Há dois meses, tínhamos um óbito dia sim, dia não. Estas pessoas são, muito provavelmente, muito idosas, com comorbilidades.

A gripe tem uma transmissão mais por gotículas, que fazem uma trajetória pelo ar em semicírculo e, se uma pessoa estiver próxima, inala e é infetada. Este vírus não é bem assim; são partículas muito mais pequeninas que dissecam no ar e ficam em suspensão, como o sarampo. Por isso é que o sarampo também é tão contagioso

Poderá esta evolução crescente ser explicada também pelo abandono das medidas de contenção recomendadas durante o pico da pandemia? Ou, no geral, considera que os hábitos de higiene dos portugueses mudaram desde então?

Tenho ideia de que ficou alguma coisa. Mas, nos anos 2020 e 2021, ainda não se percebia bem o que é que determinava principalmente a transmissão do vírus. Nessa altura, recordo-me que recomendou-se muito a lavagem das mãos, que é sempre bom recomendar, mas as pessoas recebiam encomendas pelo correio e deixavam-nas ao sol durante horas. Esse tipo de coisas não se justifica. Agora sabemos como o vírus se transmite e é principalmente por aerossol; não é bem como a gripe.

A gripe tem uma transmissão mais por gotículas, que fazem uma trajetória pelo ar em semicírculo e, se uma pessoa estiver próxima, inala e é infetada. Este vírus não é bem assim; são partículas muito mais pequeninas que dissecam no ar e ficam em suspensão, como o sarampo. Por isso é que o sarampo também é tão contagioso.

Portanto, é importante continuar a ter a higiene básica da lavagem das mãos e que quem tem sintomas tenha etiqueta respiratória. Tenho esperança de que tenha ficado muito dos nossos anos de pandemia, para proteção dos outros.

Nessa linha, fará, eventualmente, sentido reconsiderar as recomendações e os mecanismos de vigilância e de monitorização em vigor?

Acho que não se justifica. Neste momento, o que se justifica é uma forte recomendação em relação àquele grupo de pessoas que mencionei. Essas pessoas devem ter cuidado, porque a sua vida está em risco. Agora, para a maioria da população, acho que não. A grande maioria tem a tal segunda linha de proteção imunitária conferida pelas células de memória, que evitam que a pessoa tenha doença muito grave. Mas temos de acompanhar a situação.

Se por azar nosso surge uma destas variantes que, além de fugirem dos nossos anticorpos, têm maior virulência, aí o caso muda de figura. Não há indicação disso, mas também não há evidência de que estas novas variantes do vírus sejam menos patogénicas

Qual é o panorama lá fora? Existe também uma tendência crescente de infeção?

Absolutamente. Quando as pessoas estão infetadas, o RNA do vírus nas fezes e na urina vai para os esgotos. Neste momento, a maioria dos países da Europa e da América do Norte está a monitorizar as águas residuais para ver as tendências na quantidade de RNA, que tem estado a aumentar. Nos Estados Unidos, há um aumento muito claro nos estados do Oeste, na zona da Califórnia. Na Austrália e na Espanha também tem havido um aumento. É que já ninguém confia nas notificações; em Portugal também estão muito abaixo da realidade, como lhe disse.

Na maioria dos países da Europa e nos Estados Unidos, é a variante KP.3 que está a circular. O mundo esteve dominado pela variante JM.1 entre aproximadamente novembro de 2023 e abril de 2024. As variantes KP são descendentes da JM.1, que está a desaparecer e a ser substituída. Eventualmente, estas KP também darão origem a outras estirpes.

Foi há sensivelmente um ano que a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou o fim da pandemia, introduzindo um "nível mais baixo de alarme". Poderá haver um recuo?

Não, acho que só haverá um recuo se surgir uma subvariante do vírus que seja claramente mais patogénica. Para já, não existe evidência de que estas KP sejam mais patogénicas do que as variantes anteriores; tanto que a maioria de nós é infetado, mas não tem doença grave. Agora, se por azar nosso surge uma destas variantes que, além de fugirem dos nossos anticorpos, têm maior virulência, aí o caso muda de figura. Não há indicação disso, mas também não há evidência de que estas novas variantes do vírus sejam menos patogénicas.

Neste momento é muito difícil fazer comparações entre a patogenicidade das variantes, porque todos nós já fomos infetados ou vacinados. No entanto, há comunidades na China que não foram infetadas e não se vacinaram por várias razões. Um estudo feito há uns meses acerca da patogenicidade da Ómicron nessas populações chegou à conclusão que a Ómicron não era menos patogénica do que a Delta, a Alpha e a primeira variante do ano que esteve a circular.

A Ómicron não é pior, mas também não é melhor. O que acontece é que todos já fomos infetados e vacinados e temos um grau de proteção elevado quanto à doença grave que não tínhamos em 2020, 2021 e 2022.

Leia Também: DGS recomenda reforço de medidas perante aumento de casos da Covid-19

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