Mais de sete meses após o 'estalar' da polémica, Fernando Frutuoso de Melo, chefe da Casa Civil do Presidente da República, foi ouvido, esta terça-feira, em Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o seu envolvimento no alegado favorecimento no caso das gémeas luso-brasileiras tratadas com um medicamento milionário no Hospital Santa Maria, em Lisboa.
Perante os deputados, o responsável garantiu que não fez qualquer pedido de consulta para as crianças e explicou que decidiu "deliberadamente omitir" que a solicitação à Casa Civil havia sido feita pelo filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, para evitar "pressão".
"Para evitar a habitual interpretação errónea, em particular qualquer tratamento diferenciado dado o parentesco do peticionário com o Presidente da República, decidi deliberadamente omitir a identificação de quem tinha feito chegar tal solicitação por e-mail à Presidência da República", começou por explicar Frutuoso de Melo.
"Não dei conhecimento ao Governo, nem ao chefe de gabinete do primeiro-ministro, nem a nenhuma outra entidade, de quem tinha transmitido tal solicitação à Presidência da República, de modo a evitar que tal pudesse ser considerado, por algum interlocutor, como qualquer forma indireta de pressão ou tratamento de favor", acrescentou.
O responsável garantiu ainda "não houve nenhum contacto entre o Presidente da República e o Santa Maria" e que "não houve qualquer tratamento de favor da parte da Presidência da República".
Durante a audição, Fernando Frutuoso de Melo traçou uma linha dos acontecimentos e lembrou que o filho do Presidente da República enviou um e-mail a Marcelo Rebelo de Sousa em 21 de outubro de 2019 "sobre a situação das crianças" e perguntava como era possível ajudar para que as gémeas "pudessem ter acesso ao medicamento [Zolgensma] em Portugal".
Este e-mail foi depois encaminhado pelo chefe de Estado para a Casa Civil, questionando se a assessora Maria João Ruela poder "perceber do que se trata". A mensagem seguiu depois para a consultora, que pediu "mais detalhes a Nuno Rebelo de Sousa", nomeadamente "se as crianças estavam em Portugal".
O chefe da Casa Civil descreveu depois a troca de correspondência dos dias seguintes e indicou que, no dia 31 de outubro de 2019, o assunto foi remetido ao chefe de gabinete do então primeiro-ministro "de acordo com o procedimento acordado entre a Presidência da República e o Governo para a transmissão centralizada de correspondência", garantindo tratar-se do "procedimento padrão".
Nuno Rebelo de Sousa e os pais das meninas foram então informados do encaminhamento do caso e de que "a decisão sobre o tratamento era exclusivamente médica, que cabia ao hospital dar resposta quando achasse adequado e que o assunto tinha sido transmitido ao Governo". "Assim terminou a intervenção da Casa Civil", garantiu.
Envolvimento de Marta Temido? "Nunca falei com a ministra da Saúde"
O chefe da Casa Civil do Presidente da República, Fernando Frutuoso de Melo, afirmou ainda que nunca falou com a ex-ministra da Saúde Marta Temido sobre o caso das gémeas luso-brasileiras, dizendo que não havia lista de espera.
"Nunca falei com a ministra da Saúde [Marta Temido] sobre o caso. O caso foi tratado como qualquer outro caso. A questão da lista de espera foi um erro de perceção da minha parte e tratámos o caso como muitos outros", referiu Frutuoso de Melo, em resposta ao líder do Chega.
Questionado por André Ventura sobre a indicação, num e-mail, de haver possibilidade de haver lista de espera no atendimento das crianças em Portugal, o chefe da Casa Civil do Presidente da República disse que se enganou. "Enganei-me. Não havia lista de espera. Deduzi", salientou.
Frutuoso de Melo garantiu que "todos os documentos disponíveis" foram enviados ao Parlamento
Sobre a documentação e comunicações do caso que o Parlamento pediu, o chefe da Casa Civil reiterou que "não há na Presidência da República quaisquer outros registos de mensagens para além dos transmitidos".
Na sua intervenção inicial, Frutuoso de Melo disse que a 7 de junho recebeu um ofício da comissão de inquérito solicitando todas as comunicações, incluindo cartas, mensagens, e-mails ou registo de telefonemas, sobre o caso das gémeas e que dias depois foram enviados ao Parlamento "todos os documentos disponíveis e que já tinham sido enviados à Procuradoria-Geral da República em dezembro".
Explicou ainda que não enviou a documentação solicitada pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) porque já sido remetida ao Ministério Público e o processo estava em segredo de justiça.
O que está em causa?
Na base da polémica está o tratamento, em 2020, de duas gémeas residentes no Brasil, que adquiriram nacionalidade portuguesa, com o medicamento Zolgensma. Com um custo total de quatro milhões de euros (dois milhões de euros por pessoa), este fármaco tem como objetivo controlar a propagação da atrofia muscular espinal, uma doença neurodegenerativa.
O caso foi divulgado pela TVI em novembro passado e está ainda a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), tendo a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) já concluído que o acesso à consulta de neuropediatria destas crianças foi ilegal.
Também uma auditoria interna do Hospital Santa Maria concluiu que a marcação de uma primeira consulta hospitalar pela Secretaria de Estado da Saúde foi a única exceção ao cumprimento das regras neste caso.
A 4 de dezembro do ano passado, na sequência de reportagens da TVI sobre este caso, o Presidente da República confirmou que o seu filho, Nuno Rebelo de Sousa, o contactou por e-mail em 2019 sobre a situação das duas gémeas.
Nessa ocasião, Marcelo Rebelo de Sousa deu conta de correspondência trocada na Presidência da República em resposta ao seu filho, enviada à Procuradoria-Geral da República, e defendeu que deu a esse caso "o despacho mais neutral", igual a tantos outros, encaminhando esse dossiê para o Governo.
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