É manhã de quinta-feira quando a Lusa visita o bairro, situado na freguesia de Carnide, que vai acolher, no domingo, a iniciativa organizada pelo movimento Vida Justa.
O silêncio é apenas interrompido pelo recreio das várias escolas, já que, à semelhança de muitos outras comunidades, também a do Padre Cruz sai para trabalhar logo de manhã e volta ao final do dia.
O parque infantil, a praça comunitária, os bancos de jardim esperam o regresso dos mais de seis mil habitantes do bairro, conhecido pelos grandes murais que dão cor a perto de mil edifícios municipais.
"É um bairro que foi construído no fim dos anos 50 no século passado e, de facto, quase que funciona como uma aldeia", descreve Elisete Andrade, da associação de moradores do bairro Padre Cruz.
Acontece que esta "aldeia" é, na verdade, o maior bairro municipal da Península Ibérica, que, ainda assim, se torna "pequeno, porque as pessoas conhecem-se umas às outras", interagem, o que é "uma riqueza", destaca a professora, que para ali foi morar aos 15 anos, portanto há mais de seis décadas.
"É um bairro como qualquer outro na cidade de Lisboa", resume Rui Pinho, da Associação Nacional de Futebol de Rua, situada no Padre Cruz.
O técnico, que ali trabalha há onze anos, assume a dificuldade de "ver um lado negativo" no bairro, destacando "a união das pessoas e uma tentativa de resolução dos problemas que vão surgindo".
No bairro, "há pessoas com extremo valor [...] e com capacidade para fazer coisas incríveis", que apenas precisam "de um empurrão para lhes dar voz", sublinha.
"Claro que há problemas", reconhece, lembrando que estão identificados em diagnósticos que se fazem todos os anos.
Mas, Rui Pinho aterrou num bairro de habitação social com perto de 1.500 casas vindo de "uma rua" na Covilhã onde "os problemas eram exatamente os mesmos".
Isto porque problemas "há em todo o lado", o importante é "trabalhar sobre isso" e "apoiar as populações", frisa.
No Padre Cruz, diz Elisete Andrade, sentem-se "alguns" dos problemas que o movimento Vida Justa identificou como comuns a todos os bairros da periferia de Lisboa, no périplo de preparação da assembleia que efetuou nas últimas semanas.
O principal é, para Elisete Andrade, a falta de comércio.
"É um bairro que, sendo tão grande, não tem um talho, não tem uma peixaria", elenca, acrescentando que também não há "um minimercado, uma pequena superfície que pudesse servir" a população, "muito envelhecida", que não tem como ir às grandes superfícies situadas não muito longe dali.
Por outro lado, "o problema dos transportes já foi muito grave", mas "hoje está um pouco melhor", havendo "mais" e "carreiras diferenciadas", reconhece a presidente da associação de moradores.
Sobre os tumultos que se registaram em vários bairros da periferia de Lisboa -- na sequência da morte de Odair Moniz por um agente policial, em outubro --, a professora realça que as populações destas comunidades "acabam por estar mais desprotegidas" e sujeitas a um maior "escrutínio popular".
"Os problemas existem noutros sítios também, pode não ser em bairros sociais, mas existem, de facto. O que acontece é que às vezes não se vê logo tudo, enquanto que aqui vê-se", compara.
A Assembleia Popular dos Bairros é uma iniciativa "muito positiva", desde logo para as pessoas "perceberem que há outros bairros que pensam da mesma maneira e que sentem as mesmas necessidades e haver aqui uma partilha, o dar voz e depois a partir daí poderem começar a construir algo, em conjunto", assinala Rui Pinho.
Apelando à participação, o técnico destaca o "desinvestimento" nas políticas públicas para estes territórios.
"O que temos verificado nos últimos anos é que existe um desinvestimento e, se não há investimento para trabalharmos determinadas questões no território, as coisas começam a agonizar, os problemas começam a surgir com mais evidência", nota.
A Associação Nacional de Futebol de Rua, à semelhança de muitas outras associações, carece de apoio.
"Passámos de ser projetos de intervenção nestas comunidades a necessidades efetivas e, se passamos a ser uma necessidade, não temos que andar [...] a pedinchar algo para podermos continuar a fazer o nosso trabalho e que tem resultados que são reconhecidos", defende.
O que não pode continuar a acontecer é que as pessoas continuem a ser alvo de estigma.
"A pessoa que vive num bairro municipal, num bairro social, ainda não é tratada da mesma forma que uma pessoa que vive fora deste contexto", lamenta, realçando a importância de trabalhar "as questões da cidadania".
Rui Pinho traça uma analogia com o futebol, a ferramenta a que a associação recorre para trabalhar na comunidade: "O campo de futebol acaba por ser o campo da vida, vamos entrar e jogar e aprender tudo o que nos é possível, para podermos sair daqui cidadãos mais consistentes e com uma voz ativa."
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