"Caos nas urgências continuará. Plano de contingência não serve de nada"

As eleições na Ordem dos Médicos realizaram-se esta quinta-feira, tendo Miguel Guimarães sido eleito bastonário com 70% dos votos. No início da semana, quando conversou connosco, manifestava-se confiante no seu percurso para conquistar o cargo e dizia-se diferente dos outros candidatos, Álvaro Beleza, Jorge Torgal e João França Gouveia, pela sua “experiência associativa e por ter "total independência dos partidos".

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© Miguel Guimarães

Inês Esparteiro Araújo
20/01/2017 08:55 ‧ 20/01/2017 por Inês Esparteiro Araújo

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Miguel Guimarães

A “relação médico-doente”, o “problema dos internamentos” e a “falta de médicos” são para si questões cruciais. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Miguel Guimarães diz ser “urgente o investimento na saúde” e não esquece os jovens médicos, aos quais garante ser necessário dar “dignidade e respeito”.

No dia em que se soube que foi eleito bastonário da Ordem dos Médicos com 70% dos votos, recuperamos a conversa que tivemos com o clínico no início da semana.

O que é que o motivou a candidatar-se a este cargo?

O que motivou a minha candidatura é o facto de estar em condições de poder ajudar não só a população portuguesa, mas também e sobretudo os médicos a defender aquilo que é a qualidade da medicina, que é o principal objetivo da minha candidatura e que neste momento é absolutamente fundamental porque está a ter algumas ameaças. Nomeadamente naquilo que é a relação médico-doente.

Explique um pouco mais esta relação médico-doente em que quer apostar.

O que está a ser ameaçado é a falta de tempo que atualmente existe para os médicos e os doentes poderem comunicar. De uma forma prática e geral, há cada vez menos tempo para um médico conversar com o doente. A consulta. Pelo que temos mais fatores externos que acabam por interferir com esta relação, como é o caso da informática, com dezenas de aplicações, de procedimentos que se têm de fazer e que ocupam praticamente o tempo todo. Um dos principais motes da minha candidatura e que irei implementar é que haja mais tempo para esta relação, porque quem define este tempo não é o Estado, nem o Governo, nem o Tribunal de Contas. Quem define isso é a Ordem dos Médicos.

Quais as principais características que o diferem dos restantes candidatos?

O que me diferencia dos restantes é em primeiro lugar a experiência associativa. Sou presidente do Conselho Regional do Norte, trabalhei diretamente com o atual bastonário, ajudei-o em muitas matérias complexas e aprendi muito com isto. Os outros candidatos não têm isto. É preciso ter capacidade de liderança e já demonstrada publicamente. O meu passado fala por mim. Além disso, sou médico de corpo inteiro. Sou médico que faz consultas externas, serviços de urgência, que dá formação aos internos, que faz investigação… Nenhum dos outros candidatos neste momento faz nada disto. Por último, tenho total independência do poder político e com isto consigo transmitir mais garantias aos próprios médicos de que a Ordem não se vai deixar segregar por qualquer tipo de Governo.

Já antecipei isso há um mês quando me interrogaram se eu achava que este ano iria haver outra vez caos [nas Urgências], ao que eu respondi: é claro que vai

Considera urgente uma reforma na saúde?

A saúde precisa de uma reforma muito urgente. Foquemos-nos no setor público: o SNS neste momento está naquilo a que chamo de rampa inclinada. Isto é: o grande desinvestimento que foi feito sobretudo nos últimos anos e que se iniciou com o ministro Paulo Macedo e que o atual ministro está a continuar está a colocar o SNS em sério de risco de não continuar a proporcionar aos doentes os cuidados de saúde que proporcionou num passado mais recente e porquê? Porque o desinvestimento não permite contratar, por um lado, o capital humano de que nós necessitamos. Depois este desinvestimento leva a que a estrutura física de muitas unidades de saúde esteja em situações que não oferecem nenhuma garantia de qualidade ao trabalho que é feito pelos médicos. Além disso, a falta de investimento significa que nós temos uma quantidade enorme de equipamentos (como os de TAC’S) completamente ultrapassados. E, finalmente, e associado aos equipamentos dos dispositivos médicos, estamos a falar da introdução das novas terapêuticas inovadoras. Há várias reformas urgentes necessárias e uma delas é a reforma do serviço de urgência. Não podemos continuar a ter os serviços de urgência a funcionar da forma que estão a funcionar. 

É da opinião que existe realmente caos nas urgências?

Já antecipei isso há um mês quando me interrogaram se eu achava que este ano iria haver outra vez caos, ao que eu respondi: é claro que vai. E vai porque o plano de contingência que o Ministério da Saúde prepara não serve de nada. É preciso informar as pessoas sobre comportamentos e hábitos. Mas esta educação não se faz numa semana ou duas. As urgências acabam por receber demasiados doentes, depois os cuidados continuados que foram amplamente criticados por nós na altura do ministro Paulo Macedo… É importante o reforço forte dos cuidados continuados e que também não foi feito. Os hospitais começam a entupir, depois há doentes ‘meios internados meios nos corredores’ porque não existe a capacidade para passarem aqueles doentes que não precisavam de estar lá para outro local.

Ou seja, nada será possível se não houver uma mudança nos centros de saúde.

Claro que sim. A reforma dos serviços de urgência passa pelos cuidados de saúde primários. Reforçá-los, ter centros de saúde abertos mais horas e mais tarde, ter acesso a exames mais simples e a literacia é fundamental. Passamos a vida a falar nisto mas ninguém liga puto a isto. É preciso pensar na estrutura dos próprios hospitais e com isto estou a pensar nos cuidados continuados que têm de ser de facto reforçados porque os doentes que ficam nos hospitais também são fonte de infeção.

Doentes que tenham de facto urgências mais complexas, habitualmente são reenviados para os hospitais públicosEntão relativamente à questão dos internamentos, pode-me dizer uma medida concreta a ser aplicada para resolver este problema?

Aumentar o número de camas de cuidados continuados e ter obviamente neste serviço médicos e enfermeiros que vejam estes doentes. Apostar nos cuidados a sério significa aumentar o número de camas. Nós somos dos países da Europa que menos temos camas tem e isso significa também apostar no capital humano.

Concorda com as opiniões que apontam os hospitais privados como os que oferecem melhores soluções?

Os hospitais privados não têm melhores soluções do que os públicos. Estamos a falar agora de contexto de serviço de urgência. A maior parte dos hospitais privados nem sequer tem este serviço. Os privados acabam por ter é consultas ou têm um atendimento permanente que permite resolver pequenos problemas. Mas doentes que tenham de facto urgências mais complexas, habitualmente são reenviados para os hospitais públicos. O problema é que a medicina privada tem de ser paga e aqui há um problema: as pessoas que não têm capacidade económica, porque a crise afeta praticamente toda a gente, obviamente que recorrem ao SNS. E como este é um bom SNS e constitucionalmente é equitativo no acesso para todos os portugueses e é universal na sua amplitude, nós temos de conseguir dar uma resposta e temos de saber reorganizar – ainda em termos de urgências – com algumas das medidas que disse há pouco.

O que este Ministério está a fazer não está a ser muito diferente do que o anterior fezE no seu global? Funcionam melhor?

Os hospitais privados têm de facto crescido muito nos últimos anos. Há alguns grandes hospitais com boas condições físicas, bem equipados e com bons materiais que conseguem dar uma resposta muito boa em muitas das situações que existem, nomeadamente em termos cirúrgicos. Agora a medicina privada tem de sair do bolso dos portugueses.

E relativamente ao trabalho do atual do ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes tem feito um bom trabalho?

O atual ministro tem uma coisa muito positiva relativamente ao anterior, que é a forma como publicamente trata a saúde e como trata as pessoas que trabalham neste serviço. Coloca sempre no seu discurso os profissionais da saúde em primeiro lugar. Coloca os doentes também claro, mas dentro do SNS foca-se nos enfermeiros, etc. É um discurso que nos transmite alguma inspiração, que já tem mais de um ano. O problema que eu acho que este ministro tem, e que foi criado pelo Ministério anterior, é o que o Orçamento do Estado para a saúde é demasiado baixo. É cerca de 6% do PIB. O que significa que na pática, os grandes problemas que afetam o SNS não conseguem ser resolvidos com este Orçamento tão curto. E, por isso, o que este Ministério está a fazer não está a ser muito diferente do que o anterior fez.

Uma vez o ministro afirmou que "o que falta ao Serviço Nacional de Saúde é sobretudo organização".

O que falta ao SNS são vários aspetos. Primeiro a falta de médicos. Neste momento no Serviço Nacional de Saúde existem 26 mil médicos e destes 26 mil quase mais 9 mil são médicos em formações específicas. O que significa na pratica que nós temos no SNS cerca de 18 mil especialistas. 18 mil especialistas segundo as contas da OCDE são 1,8 médicos por habitantes. Ou seja, temos de facto muitos médicos em Portugal, estamos a formar médicos em excesso, mas eles não estão no SNS. Esta falta de capital tem duas implicações: a primeira desde logo no acesso aos cuidados de saúde. Há vários sítios em que os tempos de espera são muitos elevados. E depois, esta falta de médicos e enfermeiros, tem outra consequência que é o acesso à formação médica que fica limitado.

Para se fixar os jovens é preciso tratá-los com respeito e valorizá-los. Se o fizermos, damos o primeiro passo para eles começarem a ficar cáMas então o principal problema é a falta de médicos?

Não, o principal problema é a falta de investimento, porque se houvesse investimento havia médicos. Imagine que disseram os atuais bastonários das ordens profissionais da saúde que era necessário investir mais de mil e não sei quantos milhões de euros no Orçamento global do Estado. Se esse dinheiro entrasse, o Estado já teria possibilidade de contratar os médicos que os hospitais necessitam, teria possibilidade de melhorar as condições de trabalho das pessoas e com isso atrair mais pessoas para o SNS, porque é este que compete com a medicina privada e com o estrangeiro (há muitos médicos a emigrarem) e, por outro lado, podia renovar alguns dos equipamentos.

Tocou num ponto interessante, o dos médicos emigrarem. Como é que pretende combater a saída de jovens médicos que não encontram em Portugal as melhores opções de emprego?

Oferecer-lhes melhores condições de trabalho de uma forma geral. Para se fixar os jovens é preciso tratá-los com respeito e valorizá-los. Se o fizermos, damos o primeiro passo para eles começarem a ficar cá. Segundo, tem de se lhes dar mais-valias em termos daquilo que é o acesso à formação médica, o acesso à nova tecnologia para eles poderem tratar os doentes de acordo com as boas práticas e também melhorar as condições de trabalho. E isto pode incluir obviamente melhorar também as remunerações. Estes médicos que estão a emigrar não estão a ser devidamente acarinhados por um lado, e as condições de trabalho que lhe estão a ser dadas não têm força para competir com países como a França ou a Inglaterra, por outro. Há países que dão benefícios fiscais para fixar pessoas nas áreas mais periféricas, por exemplo.

Nós temos de dar mais tempo aos médicos e aos doentes para estarem um com o outroAcha que o primeiro-ministro conseguirá cumprir a sua palavra de reduzir de 1,2 milhões para cerca de 500 mil o número de portugueses sem médico de família?

Isso é extraordinariamente fácil desde que o Estado tenha o investimento em vista. Todos os anos se estão a formar centenas de médicos de família, nós temos muitos médicos em medicina geral e familiar em formação e temos muitos médicos que têm pedido a reforma antecipada que, se forem melhor tratados e mais acarinhados, se calhar não pedem a reforma antecipada. Basta que os governos não andem sempre a mexer nas questões da reformas. Só isso já daria para todos os portugueses terem médico de família.

Caso seja eleito bastonário, qual será a sua primeira medida concreta?

A primeira medida concreta é atuar sobre a relação médico-doente, no sentido de dar mais tempo aos médicos e aos seus doentes para comunicarem. Isto é a essência da medicina e é por aqui que a medicina começa, é na consulta, no primeiro ato médico que depois resulta tudo o resto. Neste momento, a forma como esta relação está a ser feita em muitos hospitais, por pressão obviamente das administrações hospitalares, não é a mais correta e nós temos de dar mais tempo aos médicos e aos doentes para estarem um com o outro.

[Entrevista originalmente publicada na segunda-feira, dia 16 de janeiro de 2017]

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