O Chega vai avançar com uma comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas brasileiras que receberam um tratamento milionário em Portugal, avançou o líder do partido, André Ventura, em declarações aos jornalistas desde o Parlamento. Pedido dará entrada na Assembleia da República "no início da próxima semana, antes da discussão do programa do Governo", agendada para os dias 11 e 12 (quinta e sexta-feira).
"É importante que o poder político não fique imune, independentemente das consequências que tal ato possa implicar. Depois de ler este relatório e de muito pensar sobre ele e também das consequências políticas que poderiam vir para o início desta legislatura, tomei a decisão de pedir aos serviços técnicos do partido que avançasse com um pedido de comissão dei inquérito parlamentar ao caso das gémeas", disse Ventura.
O líder do Chega reagia às conclusões da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) sobre o caso. "Não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças à consulta de neuropediatria" no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, esclareceu a IGAS, esta quinta-feira.
Ventura disse ter tomado a decisão por entender que "é importante que haja escrutínio, independentemente dos decisores políticos envolvidos, sejam eles do Chega, do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) ou de outros partidos" e porque "este caso implicou para os contribuintes um custo de vários milhões de euros".
Mais, o líder do Chega, partido que arrecadou 50 lugares no Parlamento após as eleições de 10 de março, 'chutou' ainda a bola para o campo dos seus adversários políticos: "Se tal for possível, gostaria que esta comissão de inquérito nascesse do consenso desta casa e espero que não seja necessário recorrer a uma comissão de inquérito potestativa para avançarmos imediatamente com esta constituição".
O Chega "fará um primeiro esforço" junto do PS e do PSD para poder "chegar a um entendimento e um consenso que o país beneficiaria", porque "esta comissão de inquérito não é contra ninguém, não é contra nenhum dirigente, nenhum titular de órgão de soberania ou contra nenhum partido". É, sim, "para apurar a verdade".
Ventura acrescentou ainda que espera que esta comissão de inquérito "não se circunscreva" ao caso das gémeas.
"Era também igualmente importante perceber se há casos parecidos em Portugal que têm custado milhões aos cofres dos contribuintes. Não é aceitável que num país em que a Saúde falha para quase todos haja alguns a beneficiar de tratamentos de milhões passando por cima das regras e incumprindo os mais básicos dos procedimentos", retorquiu, admitindo que há casos em que o turismo de saúde "é eventualmente justificado".
"Portugal deve ser um país aberto e humanista. Não pode ser um país onde todos se vêm tratar sem pagar um cêntimo ao Sistema Nacional de Saúde", continuou.
Infarmed "mentiu" ao Parlamento e aos portugueses
André Ventura criticou, ainda, que "o Infarmed mentiu a esta casa, pois disse ao Parlamento que todo o procedimento tinha sido o normal e habitual".
"Mais grave que mentir a esta casa, mentiu ao país. Quando o país quis saber se a atribuição do medicamento mais caro do mundo tinha sido feita dentro das regras normais ou se tinham sido cometidas irregularidades", continuou, acrescentando: "O processo de atribuição do medicamento no Infarmed teve irregularidades, não seguiu a via normal, não foi solicitado através do sistema informático normal, mas através de um e-mail, sendo a sua apreciação feita antes sequer da solicitação formal".
"Secretária, por própria iniciativa" marcou consulta? "Risível"
O líder do Chega aproveitou também as declarações para considerar "risível" o argumento de que "uma secretária, sozinha, por sua própria iniciativa ou vontade fosse marcar uma consulta para gémeas que vivem do outro lado do mundo".
O antigo secretário de Estado António Lacerda Sales, um dos intervenientes neste polémico caso, criticou a IGAS por "dar mais credibilidade ao depoimento da secretária pessoal que ao do secretário de Estado da Saúde".
No relatório, a IGAS refere que o ex-secretário de Estado teve conhecimento do caso das duas crianças gémeas após reunião realizada, a 7 de novembro de 2019, com Nuno Rebelo de Sousa (filho do Presidente da República), na qual lhe foi solicitada a colaboração para a obtenção de tratamento com o medicamento Zolgensma.
No documento, a que a Lusa teve acesso, a IGAS escreve que, em data por apurar, "mas situada entre 07 e 20 de novembro de 2019", o ex-secretário de estado solicitou à sua então secretária pessoal que contactasse telefonicamente Nuno Rebelo de Sousa, que pretendia que fosse marcada uma consulta para duas crianças no Hospital de Santa Maria, tendo-lhe fornecido o número telefónico para o efeito, informação que Sales nega.
Na sequência deste contacto - diz a IGAS - a secretária pessoal "obteve informação, que remeteu para o CHULN, E.P.E. de acordo com as orientações do SES [secretário de Estado da Saúde], quanto à identidade das crianças, data de nascimento, diagnóstico e datas em que os pais poderiam estar presentes no referido hospital".
"Apesar de o então SES negar o seu envolvimento na obtenção de informação sobre as gémeas junto do Dr. Nuno Rebelo de Sousa e posterior encaminhamento para o CHULN, E.P.E., para marcação de consulta, não se descortina como a sua secretária pessoal, atento o seu grau de autonomia, poderia ter tido conhecimento do caso das duas crianças gémeas e da sua informação pessoal, e comunicado com o CHULN, E.P.E., que não fosse através do modo e contactos referidos", acrescenta a IGAS.
Sobre este contacto da sua secretária pessoal com o Santa Maria, Sales sublinha o facto de não constar 'em CC' (com conhecimento) no email e questiona: "Porque é que não existe qualquer indicação no mail de que o mesmo foi enviado a pedido do SES? Não seria prudente, considerando que a então secretária estava ali, no exercício das duas funções, há pouco mais de 15 dias?"
Ventura admite pedir esclarecimentos a Presidente da República
Os inquéritos parlamentares podem ser constituídos mediante deliberação do plenário ou a requerimento de um quinto dos deputados (46) em efetividade de funções "até ao limite de um por deputado e por sessão legislativa", prevê o regimento da Assembleia da República.
Ventura considerou que o "poder político não pode ficar imune" às conclusões da IGAS, afirmando que "todos os intervenientes deste processo ou favoreceram ou cometeram irregularidades no acompanhamento e no acesso a tratamento das gémeas" e que o acesso à primeira consulta não cumpriu "as regras habituais do SNS nesta matéria, definidas em portaria e em legislação própria, mas sim através de um pedido da Secretaria de Estado da Saúde, então ocupada por Lacerda Sales".
André Ventura admitiu pedir esclarecimentos também ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
O caso das duas gémeas residentes no Brasil que adquiriram nacionalidade portuguesa e receberam em Portugal, em 2020, o medicamento Zolgensma, com um custo total de quatro milhões de euros, foi divulgado pela TVI, em novembro, e está ainda a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
[Notícia atualizada às 18h24]
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