Joacine Katar Moreira foi a primeira deputada eleita pelo Livre no Parlamento, desfiliando-se do partido meses depois - e passando o resto da legislatura como deputada não inscrita.
Foi a primeira voz a levar à Assembleia da República a discussão sobre uma eventual restituição às ex-colónias, tendo, na altura, sido criticada. Uma das vozes que lhe apontou o dedo foi o líder do Chega, André Ventura, que na sequência da proposta apresentada sugeriu que a deputada fosse "devolvida ao seu país de origem", a Guiné-Bissau.
Quatro anos volvidos, o assunto da reparação às ex-colónias volta agora a estar em cima da mesa depois de o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ter falado nos "bens saqueados" na era colonial, indicando que se "iria ver" como se poderia "reparar a situação". O caso já obrigou o Governo a posicionar-se, e mesmo Marcelo já voltou pronunciar-se, dizendo que a "reparação" já dura há 50 anos.
As declarações do Presidente são insuficientes - porque não podem ser desacompanhadas de um projeto nacional
O que mudou para que, quatro anos depois, este tema volte à liça pela voz do Presidente da República?
A discussão da descolonização/ reparação/ restituição é inevitável. Ela vem à tona, origina uma grande reação, depois acalma-se e depois vem novamente à tona – originando uma nova reação. Vamos andar assim sucessivamente. Esta é a forma portuguesa de reagir às alterações significativas. Também antes do 25 de Abril houve tentativas insurrecionistas de derrube do antigo regime, que não deram resultado e depois foi necessário insistir. Para as mulheres hoje em dia terem mais espaço e igualdade andámos sucessivamente em mini aberturas da discussão, de aumentos, da capacidade eleitoral e depois da igualdade, da lei da paridade, por exemplo. Não temos este hábito de efetuar mudanças únicas, significativas, eficazes e eficientes de forma imediata. E esta é uma discussão que vai ter de existir necessariamente porque Portugal foi pioneiro no tráfico de indivíduos escravizados. Pioneiro. Todos os impérios têm como origem a conquista territorial, a subjugação de outros povos e culturas. Aceito até o argumento de que a escravatura faz parte da História da Humanidade, mas então vamos olhá-la por uma outra ótica, que é a ótica do tráfico internacional de pessoas escravizadas. Isto é único, algo específico da colonização - iniciada pelos portugueses e que significou o desenraizamento de milhões de indivíduos de África, afastados da sua terra natal, afastados das suas famílias, tratados, mais do que como objetos, como animais. Objetificados, amarrados, metidos em navios, em porões e enviados para as Américas e também para a Europa.
Olhemos especificamente para isso. Isso não é História da Humanidade, isto é a história de potências ocidentais que tinham um projeto colonial. O colonialismo não foi uma iniciativa única, nem foi igualmente um projeto único. Estamos a falar de uma época histórica que se iniciou em 1415 com a invasão de Ceuta e que acabou em 1974. Obviamente, não houve ali um único projeto colonial. Houve vários projetos coloniais. Mas ele não se iniciou pelos motivos que normalmente nos ensinam, que é que nós vamos evangelizar outros povos, levar-lhes algo.
Como assim?
A ideia não era levar algo – a ideia era retirar algo. A colonização inicia-se com o que nós hoje daríamos o nome de capitalismo. Mas nessa altura não era ainda isso. Nós fomos atrás de recursos – do ouro, das especiarias –, com o objetivo de encher os cofres reais que protegessem Portugal territorialmente da invasão de outros países. Mas igualmente que desse a hipótese de efetuar os casamentos reais com boas negociações, que mantivessem a Coroa intacta e que contribuíssem para o aumento da influência internacional. A ideia aqui não era a evangelização. A ideia era obter os recursos financeiros e comerciais necessários para o enriquecimento internacional.
Sentiu-se de alguma forma injustiçada por na altura a sua iniciativa não ter sido bem recebida e as reações à sugestão do Presidente da República não terem sido tão efusivas?
Acho que na época era algo de que as pessoas não estavam à espera. Quero pensar que toda aquela reação absolutamente visceral tenha sido oriunda de uma falta de preparação e de um não saber lidar com a temática. Mas também com a ajuda dos meios de comunicação e do alarmismo porque começaram a dar a ideia de que o meu objetivo era esvaziar museus nacionais.
Naturalmente, causou uma indignação generalizada. Mas eu não estava à espera do isolamento que as iniciativas iriam ter. Mas, pelos vistos, não foram propostas em vão.
Começou por falar numa espécie de ciclo. Acha que as declarações do Presidente da República podem quebrar este ciclo, por forma a haver um avanço neste tema?
Na minha ótica não há inícios ideais. Eu dei início a isto antes do Presidente da República. Na época, deram-me a ideia de que ainda não era hora, de que não era daquela maneira, de que não era o momento. Mesmo os indivíduos que apoiam a reparação. Houve vários artigos nos média, houve discussão, mas eu nunca sou convidada a comentar as minhas iniciativas e as discussões às quais dou início. Mas - a bem ou a mal - dá-se início a uma discussão nacional sobre restituição. Só que as [minhas] iniciativas não eram especificamente sobre restituição. Eram sobre descolonização. Há aí uma confusão enorme. Algo é reparação, algo é restituição – e a restituição é uma das formas de reparação. Há outras.
Há quatro anos demos início a uma discussão nacional sobre restituição e sobre a ideia do que é efetivamente património nacional. Eu posso alegar que obras oriundas de Angola ou da Guiné, de etnias específicas de lá, são património nacional? Se há quatro anos as minhas iniciativas foram rejeitadas por um Parlamento maioritariamente à Esquerda, agora com as declarações do Presidente toda a gente também acha que não é hora ideal – novamente não é hora ideal porque temos no Parlamento 50 deputados da extrema-direita, temos um Parlamento de Direita, um Governo de Direita. Mas eu acho que não há épocas ideias. Embora ache também que as declarações do Presidente são insuficientes, porque elas não podem ser desacompanhadas de um projeto nacional.
Deveriam ter sido mais vincadas?
Não se podem descontextualizar as ideias e as reivindicações de reparação pelo colonialismo – por tudo aquilo que o colonialismo implicou na época, mas também em relação aos impactos nos dias de hoje. São insuficientes porque elas não vêm acompanhadas de um projeto político, de um projeto ideológico, de nenhuma iniciativa nacional e institucional. São apenas palavras. Mas são palavras de reconhecimento da violência da história colonial e são palavras que incitam à ação.
Neste momento, acho úteis as palavras do Presidente, mas elas têm de ser enquadradas numa lógica ampla de descolonização do imaginário nacional, descolonização da cultura, do conhecimento. E ali entram a história da reparação colonial, entre elas a restituição e a indemnização. Não é com euros que nós iremos avançar em termos de civilização.
Como poderá ser?
Necessitamos de nos reeducar, de termos iniciativas nacionais, independentemente da relação diplomática e institucional com as antigas colónias. As antigas colónias podem decidir usar esta tal indemnização para encetar iniciativas locais, de reparação. A indemnização é uma das maneiras de reparação, mas não é a única e é uma maneira insuficiente. É necessário igualmente termos outras iniciativas, nomeadamente, alterar os manuais escolares, a instituição de quotas racionais – que é algo de que toda a gente tem medo –, que têm como objetivo acelerar a igualdade.
Continuamos numa epopeia colonial da heroicização da história colonial, de que somos um povo heroico. “Heróis do mar, nobre povo / Nação valente, imortal / Levantai hoje de novo/ O esplendor de Portugal!”. E o esplendor de Portugal não é nada mais, nada menos, do que a época colonial. Insistimos em omitir e relativizar todas as suas violências e desumanização.
Cada vez que se fala de eventual reparação e de eventual restituição, as pessoas acham e encaram isto como um ataque à portugalidade. Agarram-se à epopeia colonial como argumento
A forma como a História de Portugal é contada pode ser então um caminho nesta reparação?
Não há nada mais fácil do que se alterar o vocabulário dos manuais. É inaceitável que nós hoje continuemos a olhar para a História, para os africanos, para os colonizados, usando os argumentos e conceitos do século XV. Abrimos as obras de História e está lá escarrapachado: "Portugal comercializava produtos de enorme valor: ouro, especiarias e escravos". Produtos. Isto é a ótica do séc. XV. Isto significa algo: que a ideologia colonial, o projeto colonial, não foi desmantelado. Houve a queda do fascismo, mas mantemos uma ótica colonial. Porque é aquela história em que ninguém quer meter a mão porque ela está relacionada com as ideias da identidade nacional.
De cada vez que alguém fala noutro lado da história colonial fala da escravatura, do trabalho forçado, fala das violações, de extrativismo, do ecocídio, do epistemicídio. Todos esses ‘ismos’ são varridos para debaixo do tapete em nome de uma identidade nacional, que está relacionada com a heroicidade da história colonial, com a energia que nos foi oxigenada de que apesar de sermos um povo pequenino nós nos agigantámos nos atlânticos e nos índicos. Cada vez que se fala de descolonização, de eventual reparação e de eventual restituição, as pessoas acham e encaram isto como um ataque à portugalidade. Agarram-se à epopeia colonial como argumento. É necessário ensinar e transmitir a História para que ela não se volte a repetir.
Falou do hino nacional. Seria uma boa ideia repensá-lo?
Mais urgente do que alterar o hino é alterar a legislação. É dar acesso à nacionalidade a quem nasce em Portugal. É não dificultar a existência dos imigrantes em Portugal. É facilitar a justiça social ou a existência de quotas raciais para acesso à universidade ou a alguns cargos públicos. É reparar com legislação e políticas de combate efetivo ao racismo e discurso de ódio enquanto reminiscências do projeto colonial.
O hino pode-se alterar ou não. Eu sou pela contextualização. Temos nas paredes do Salão Nobre [do Parlamento] pinturas que quis imenso contextualizar. A iniciativa era essa. São obras que romantizam a época colonial. São obras que foram encomendadas pelo regime fascista e que estão hoje em dia onde nós recebemos indivíduos, figuras e instituições de importância institucional. E isto são elementos, mas não são elementos muito complicados. Não é muito complicado alterar a maneira como os manuais escolares caracterizam os negros, africanos, o colonialismo. Não é muito complicado contextualizar os painéis do Salão Nobre. Não é muito complicado desracializar a legislação.
Portugal não tem opção de não refletir. Vai ter mesmo de refletir e a hora é esta
O Governo já disse que "não esteve e não está em causa nenhum processo" no âmbito das reparações, mas a atual ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, fez declarações que podem colidir com esta ideia. Em novembro passado, quando era diretora da Torre de Belém e do Mosteiro dos Jerónimos disse ao Observador que devolveria obras de arte a ex-colónias por questões de reposição histórica, se necessário. Pode significar alguma abertura?
A abertura é inevitável porque isto não é uma discussão apenas nacional. Isto é uma discussão internacional. É uma discussão europeia que já se iniciou e que já houve objetos e peças de arte que foram restituídos. Portugal deve acompanhar e estar à altura da sua época. E a altura da sua época é acompanhar a discussão e as ações que estão a ser desenvolvidas no plano internacional. Houve uma abertura, mas vai ter de continuar a haver uma abertura, porque não somos uma ilha. E além de não sermos uma ilha, fomos pioneiros em certos aspetos fundamentais do projeto colonial. Portugal não tem opção de não refletir. Vai ter mesmo de refletir e a hora é esta.
Mas, obviamente, não é uma conversa que não origine algumas ansiedades e desconfortos. Não é uma conversa agradável porque se trata de crimes contra a Humanidade. Não estou à espera de que esta seja uma conversação tranquila. Nem estou à espera de que ela seja unicamente realizada com base em indemnizações.
Também acho que esta não pode ser uma discussão de gabinetes. Tem de ser uma discussão alargada à sociedade. Tem de haver uma campanha nacional, de norte a sul do país, com ações de informação, sensibilização, com idas às aulas, às escolas, com empenho das autarquias, universidades, instituições museológicas, dos artistas e intelectuais.
Não me ausentei do espaço mediático. Eu sou excluída do espaço mediático (...) Mas eu também necessitava de uma época de paragem. Agora, estou com energia e é hora de voltar
Depois de um mandato atribulado, que terminou em cisão com o partido que a elegeu, a Joacine ausentou-se do espaço mediático. Houve tempo para reparação pessoal?
Não me ausentei do espaço mediático. Eu sou excluída do espaço mediático. Até sobre temáticas às quais dei início. Hoje não sou convidada para falar sobre reparação, não sou convidada para falar sobre restituição. Acho que não se pode falar destes aspetos sem se referir duas propostas apresentadas no Parlamento por uma deputado há quatro anos.
Acho que dei o meu contributo. Acho que fiz um importante trabalho parlamentar, tive importantes vitórias legislativas enquanto deputada única, sem um partido, sem orçamento, e debaixo de imensos bombardeamentos mediáticos.
Se hoje temos um Ministério da Cultura a efetuar inventariação das obras oriundas das ex-colónias e se temos o Ministério da Cultura a constituir uma equipa multidisciplinar e por aí fora, isto são elementos da minha iniciativa legislativa. Na altura foram rejeitados e estão a ser implementadas há um ano.
Algumas das minhas iniciativas foram aprovadas, outras rejeitadas. Mas até aquelas que foram rejeitadas na época acabaram por ser retomadas por entidades, ministérios ou indivíduos – com outro vocabulário. E as coisas têm um início, mas têm um início sem o reconhecimento do meu contributo. Mas eu também necessitava de uma época de paragem. Agora, estou com energia e é hora de voltar.
Hoje em dia faz falta no Parlamento alguém como eu
É, portanto, do seu interesse um retorno à vida política? Em que termos?
Não afasto um regresso à vida política. Acho que é verdadeiramente importante que haja uma participação política cada vez maior, nomeadamente, de mulheres de Esquerda, feministas, ambientalistas e antirracistas. Hoje em dia faz falta no Parlamento alguém como eu. Mas, de momento, não são esses os meus objetivos. No imediato, não tenho nenhum objetivo de regressar à política partidária.
Talvez daqui a quatro anos (numas novas eleições legislativas)?
Talvez.
Identifica-se com algum dos partidos com assento parlamentar?
Identifico-me, como uma mulher de Esquerda, com alguns partidos à Esquerda, mas não me identifico completamente porque todos os partidos à Esquerda retiraram as suas representantes racializadas. Este não é o momento de se retirar a diversidade no Parlamento à Esquerda.
Que leitura faz das legislativas, nomeadamente, do crescimento do Chega?
O crescimento do Chega deve-se exatamente a um ambiente nacional, mediático, que valoriza estas vozes dissonantes, mas ao mesmo tempo absolutamente irresponsáveis. A maior parte dos eleitores não conhece o programa do partido Chega. Não sabe quais é que são as suas propostas para a educação, saúde, economia ou outras áreas. Não imaginam que é um partido que não é só antidemocrático, é igualmente um partido irresponsável. Porque ora vota contra o aumento do salário mínimo nacional, ora vota favoravelmente, ora mete uma iniciativa para o aumento do salário mínimo nacional. Tem militantes com óticas absolutamente misóginas, ultraconservadoras, que querem regredir a todo o nível. É um partido que não tem coerência, mas que usa o descontentamento das pessoas para levá-las a achar que eles são os representantes do povo português, enquanto só defendem as elites e o capital.
Foi o descontentamento do povo que fez com que 50 deputados fossem eleitos?
Acho que foi o descontentamento, os salários baixos, as dificuldades de acesso à habitação, foi o desinvestimento do SNS, mas também o facto de Portugal manter esta sua estrutura colonial – em que é mais fácil responsabilizar-se a comunidade cigana, que não são 1% da população, por causa do Rendimento Social de Inserção. Ganha-se aqui uma resistência alta a uma minoria étnica com dificuldades de sobrevivência, habitação, em vez de se olhar para uma minoria endinheirada, elitista, capitalista, que insiste em não aumentar os ordenados. É este ambiente que continua a ser absolutamente elitista e que andamos num racismo institucional que não é desmantelado. É uma autoestrada que se abre às ideias populistas.
E quanto ao Livre, que também cresceu nas últimas eleições?
Todos nós reconhecemos que é um partido que tem um porta-voz que é eloquente, mas eu coloco-o na mesma autoestrada que também é uma autoestrada que ninguém escrutina politicamente e parlamentarmente. Não se sabe quais foram as conquistas legislativas do partido Livre, o trabalho parlamentar. A maior parte dos líderes à Esquerda nestas últimas eleições foram altamente escrutinados. O único que se manteve incólume foi o do Livre.
Acha que este Governo vai durar a legislatura completa?
Tenho algumas inquietações com estas instabilidades políticas e parlamentares. Se cai o Governo de Luís Montenegro daqui a meses ou a um ano, não estou muito certa de que o próximo não será pior ainda. Se não tivessem chumbado o Orçamento do Estado em 2021, em outubro do ano passado o partido Chega ainda teria um deputado. E talvez um deputado único estivesse suficientemente cansado, esgotado, e o partido mostrado a sua verdadeira face. Mas houve a queda de um Orçamento de Esquerda - que queiramos ou não era um Orçamento do Partido Socialista que poderia ser melhorado com propostas. A Esquerda radicalizou-se e deu origem a novas eleições – a Esquerda e o Presidente porque haveria hipótese de não haver novas eleições se o Presidente da República aceitasse o novo Orçamento. Houve uma nova eleição e, de repente, não temos um, mas 12 deputados de extrema-direita. Embora houvesse uma maioria absoluta novamente à Esquerda, dá-se um golpe institucional e há de novo eleições. De repente passamos para 50 deputados [do Chega].
Mas, mesmo não querendo eleições antes do tempo, acha que o Governo vai durar os quatro anos?
Acho que este Executivo não tem condições para quatro anos e isto inicia-se imediatamente no próprio Partido Social Democrata. Pelo que me tenho apercebido, Montenegro não é necessariamente consensual. E, além de não ser consensual, ganhou as eleições com uma maioria baixinha. Também não teve aquele apoio popular e dos eleitores que lhe dessem uma estabilidade. Desde a sua eleição tem mostrado alguma dificuldade e não sei se com este elenco governamental e todas estas questões relacionadas com o Orçamento, défice e por aí fora, se ele se aguenta os quatro anos.
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