A socialista Ana Gomes considerou, no domingo, que "a Justiça tem medo ou é cúmplice do Chega", tendo em conta a inação face às declarações dos seus dirigentes ao longos dos anos, que culminaram, na semana passada, à abertura de um inquérito pelo Ministério Público e a uma petição pela apresentação de uma queixa-crime pelo "incitamento à desobediência coletiva", na sequência da morte de Odair Moniz, baleado pela polícia na Amadora, na madrugada de segunda-feira.
"A petição é significativa. Ontem à noite [sábado] tinha reunido mais de 100 mil subscritores [hoje mais de 121 mil]. Sou também uma das subscritoras da queixa-crime que foi em boa hora iniciada. Não podemos tolerar o que é crime, que é o discurso de ódio, que visa semear a divisão entre os portugueses e incitar à violência, incluindo incitar à desobediência por parte dos polícias, porque há regras para os polícias utilizarem, por exemplo, [no uso] das armas de fogo", começou por salientar a antiga eurodeputada, no seu espaço de opinião na SIC Notícias.
A comentadora, que é uma das subscritoras da petição que, até ao momento, conta com o apoio de 121.076 pessoas, sublinhou ainda que "tudo aquilo que foi dito por responsáveis do Chega não é propriamente novidade para quem sabe o que é que essa gente representa, mas é de uma chocante crueza para o conjunto dos cidadãos".
"Devo dizer que sim, que espero que a Justiça atue. Estou farta. A Justiça tem medo ou é cúmplice do Chega. Neste caso, a Justiça tem de fazer alguma coisa e só me posso congratular por o novo PGR ter já tomado a iniciativa de agir, mesmo independentemente de uma queixa, porque alguns dos crimes que são imputáveis a alguns dirigentes do Chega são crimes públicos", complementou.
Ana Gomes argumentou ainda não ter sido "por acaso" que a contramanifestação "provocatória" à anteriormente anunciada pelo movimento Vida Justa "visava que se confrontassem", uma vez que "é essa a estratégia [do Chega]: confrontação".
"Não percebo como é que as autoridades e a Câmara Municipal de Lisboa não trataram imediatamente de impedir essa confrontação. […] Felizmente que os organizadores da manifestação Vida Justa tiveram o bom senso de mudar o percurso para que não houvesse essa confrontação direta, porque era isso, provocatoriamente, o que o Chega queria", disse.
Saliente-se que a queixa-crime promovida por um grupo de cidadãos contra André Ventura, Pedro Pinto e Ricardo Reis, por declarações na sequência da morte de Odair Moniz, deverá entregue no início desta semana, segundo adiantou um dos promotores à Lusa.
É que, recorde-se, o deputado Pedro Pinto afirmou que se as forças de segurança "disparassem mais a matar, o país estava mais na ordem", enquanto o presidente do Chega disse que "devíamos agradecer a este polícia o trabalho que fez" ao atingir fatalmente Odair Moniz.
"Devíamos condecorá-lo e não constitui-lo arguido, ameaçar com processos ou ameaçar prendê-lo", atirou.
Já Ricardo Reis, um assessor parlamentar do partido, disse na rede social X que "a única palavra é esta: obrigado ao agente que deixou as ruas mais seguras!", ao mesmo tempo que considerou haver "menos um criminoso... menos um eleito do Bloco [de Esquerda]".
Odair Moniz, cidadão cabo-verdiano de 43 anos e morador no Bairro do Zambujal, na Amadora, foi baleado por um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) na madrugada de segunda-feira, no Bairro da Cova da Moura, no mesmo concelho, e morreu pouco depois, no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.
Segundo a PSP, o homem pôs-se "em fuga" de carro depois de ver uma viatura policial e "entrou em despiste" na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, "terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca".
A associação SOS Racismo e o movimento Vida Justa contestaram a versão policial e exigiram uma investigação "séria e isenta" para apurar "todas as responsabilidades", considerando que está em causa "uma cultura de impunidade" nas polícias.
A Inspeção-Geral da Administração Interna e a PSP abriram inquéritos e o agente que baleou o homem foi constituído arguido.
Desde a noite de segunda-feira registaram-se desacatos no Zambujal e, desde terça-feira, noutros bairros da Área Metropolitana de Lisboa, onde foram queimados autocarros, automóveis e caixotes do lixo. Mais de uma dezena de pessoas foram detidas, o motorista de um autocarro sofreu queimaduras graves e dois polícias receberam tratamento hospitalar, havendo ainda alguns cidadãos feridos sem gravidade.
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