'Antologia do Pensamento Geopolítico e Filosófico Russo - Século IX - XXI' é o livro mais recente de José Milhazes, escrito em conjunto com João Domingues. Um trabalho que enquadra-se no objetivo de José Milhazes de levar os leitores portugueses a compreenderem melhor a Rússia e, neste caso concreto, a forma de pensar dos russos.
Nesta conversa com o Notícias ao Minuto, José Milhazes fala sobre o novo livro mas também sobre o panorama político nacional. Afirma que a 'Geringonça' é uma solução temporária. Deixa críticas à insistência do PCP em teses que falharam e fala na necessidade de ideias novas para o partido.
Como surgiu a ideia de escrever este livro?
É uma coisa que demora algum tempo a fazer porque é uma antologia de textos. Tem algum texto nosso para enquadrar os textos e os comentários sobre os autores, sobre as épocas de que falamos porque o livro abrange desde o século IX ao XXI, ou seja em termos temporais é muito cronológico. Deu algum trabalho para fazer esta seleção. Alguns leitores quando pegarem no livro vão dizer 'vocês esqueceram-se daquele e deixaram este', mas é uma seleção complicada.
Ora, a ideia era a seguinte: pela minha experiência que não é muita em Portugal, compreendi que se sabe muito pouco do que os russos escrevem. Normalmente, sabemos o que os russos escrevem através dos anglo-americanos, antes era através dos franceses. Decidimos, e penso que é a primeira vez que isso acontece em língua portuguesa, fazer um trabalho deste tipo. Todos conhecem Dostoievski, Tolstoi como grandes escritores russos. Mas eles também eram grandes pensadores políticos. Tinham posições sobre a política russa e sobre a política mundial. Tentámos juntar neste livro todos estes pensamentos mais importantes destes autores, exatamente para que as pessoas leiam o pensamento russo, e entendam porque é que os russos tomam esta decisão e não aquela, por que razão agem de uma forma e não de outra. Esse foi o nosso grande objetivo e está reunido em quase 500 páginas e é o leitor que vai julgar se o conseguimos atingir ou não.
Estranho um pouco que em Portugal ainda haja pessoas que tentem reabilitar, não só Estaline, Lenine mas também TrotskyTendo em conta o conteúdo, a altura do lançamento está de alguma forma relacionada com o centenário da Revolução de Outubro?
Estaria a fugir à verdade, se dissesse que de algum modo não quis marcar o centenário. Esta foi a nossa maneira de marcar esta data, mas de uma forma original. Tentámos trazer para a discussão a nossa marca portuguesa, para que as pessoas vejam a forma como abordamos este tema.
O livro está dividido por épocas e por escolas de filosofia e geopolítica e cada uma tem um enquadramento nosso e tem, mesmo nos comentários, o objetivo de explicar ao leitor português o que se tem em vista quando se utiliza determinado termo em russo porque às vezes é praticamente impossível traduzir aquela palavra. Foi uma espécie de contributo para esta discussão que está a acontecer sobre a Revolução de Outubro. Eu estranho um pouco que em Portugal ainda haja pessoas que tentem reabilitar não só Estaline ou Lenine, como também Trotsky. Há pouco tempo publiquei uma série de artigos sobre uma questão importante. Segundo alguns pensadores portugueses, nomeadamente se me permite um nome, o Francisco Louçã que diz 'se depois de Lenine fosse o Trotsky as coisas iriam correr de outra maneira'. Ora, isto é uma falsidade histórica que muito rapidamente poderá ser desmascarada.
Trotsky enquanto foi dirigente já tinha demonstrado o monstro que era ao lado de Lenine durante a Revolução, mandando fuzilar milhares de pessoas. Além disso, Trotsky não iria divergir dos princípios fundamentais do Leninismo, que era o centralismo democrático e a não existência de uma oposição. Se Trotsky tivesse ocupado o lugar de Estaline - o 'se' é uma coisa que em história não se deve discutir - Trotsky não seria mais santo que Estaline. Basta ler as obras e ação dele até ao momento em que sai da União Soviética e começa a rever essas posições, mas é como se diz 'tarde piaste cantador'.
E daí a ideia de escrever livros para desmistificar estas ideias que podem estar presentes na sociedade portuguesa e através de alguns pensadores portugueses, como referiu.
Aqui coloca-se sempre uma questão que é a viabilidade daquele sistema em que vivi durante 40 anos. Cheguei lá na altura em que o regime já estava em declínio e acompanhei todo o processo, sabendo que ia falhar. Não foi só lá que falhou. Não há nenhum exemplo de um lugar onde o marxismo-leninismo, o comunismo, tenha vingado. E não vingou efetivamente porque há uma falta de liberdade de expressão, de economia de mercado, que mata toda a concorrência, e a falta de oposição e respeito pelas minorias. Um regime que não respeite estes princípios acaba por fossilizar-se. Isto aconteceu devido ao controlo exagerado de uma elite que depois não soube gerir as questões quando começaram as crises.
Focamo-nos demasiado na nossa terrinha e em temas da nossa terrinha que nem vale a pena citar. No dia em que há futebol não há mais nada No livro 'As Minhas Aventuras no País dos Sovietes' faz um relato das suas memórias. Como foi recebido?
Fiquei surpreendido com a popularidade de 'As Minhas Aventuras no País dos Sovietes'. Julguei que daria uma ou duas edições, mas já está no final da quinta. Afinal as pessoas interessam-se. Essa é outra falácia que vejo nas redes sociais, que as pessoas não se interessam por política internacional. Não é verdade. As pessoas não recebem é material para pensar nisso. Quando nós escrevemos as pessoas lêem-nos. Por vezes a culpa é nossa, dos jornalistas, e também me coloco como um dos culpados, embora seja dos que mais escreve sobre política internacional, porque focamo-nos demasiado na nossa terrinha e em temas da nossa terrinha que nem vale a pena citar. No dia em que há futebol não há mais nada.
Como acompanhou os anos da vida social e política portuguesa desde aquele período de crise, com a troika e agora nesta fase de melhoria económica já com esta solução política da Geringonça?
Ouso comentar algumas coisas nos artigos que escrevo. Sinto grandes preocupações, e este não é só um problema português, que é a questão da qualidade das elites políticas. As elites políticas trabalham só para as próximas eleições e não trabalham a longo prazo e isso é um problema gravíssimo porque há problemas que temos de resolver a longo prazo, e não o estamos a fazer. Está a haver um crescimento económico, Portugal está cheio de turistas e isso é muito bom. Mas estamos com uma dívida pública cada vez maior. Como e quando vamos pagar essa dívida? Vamos estar prontos para a próxima crise? Acho que não. A nossa política não inova.
Esta questão da 'Geringonça' foi uma forma de António Costa ser primeiro-ministro e para isso chegou a acordo com a extrema-esquerda.
António Costa não vai continuar a aturar as chatas das irmãs Mortágua e a Catarina MartinsE poderá continuar depois das próximas eleições?
Se as coisas continuarem a correr como estão e com esta prosperidade aparente, o PS nas próximas eleições pode ganhar com maioria absoluta. E nessa altura acabou-se a Geringonça. António Costa não vai continuar a aturar as chatas das irmãs Mortágua e a Catarina Martins. Elas só são importantes numa situação como esta, em que o PS não tem a maioria e a Direita está a nadar. Em que o PSD está esfrangalhado, o CDS está a entrar na era pós-Portas. Para o Partido Socialista a 'Geringonça' é uma questão temporária.
O problema da política portuguesa é que perdemos uma porrada de tempo com questões pequenas e não com problemas importantes. Por exemplo, estamos em outubro e o país ardeu. Precisamos de uma política preventiva e não reativa. Gosto cada vez mais do meu país. Mas quando chego aqui e percebemos a forma como isto funciona, em que é tudo com esquemas, tudo capelinhas, então como é que é? Fui para a União Soviética e enganei-me e agora chego aqui e engano-me outra vez?!
O PCP assim não vai a lado nenhum porque continua a viver no mundo que idealizou mas que já não é o mundo realTornou-se militante do PCP quando ainda estava no liceu. O que o levou a entrar em rutura e a abandonar o partido em 91? Fartou-se de esperar que o partido mudasse?
Havia mesmo dentro do PCP correntes renovadoras. Quando vinha a Portugal encontrava-me com o ‘grupo dos seis’, com a Zita Seabra, os chamados dissidentes do PCP. Acreditávamos que era possível tentar mudar alguma coisa, de fazer o que até agora ainda não tinha sido possível fazer. Que se reconhecesse que estávamos no caminho errado e que tínhamos de repensar o que estava mal e tentar emendá-lo. E quando se vê que esses grupos de dissidentes são perseguidos e expulsos do partido, compreendi que não estava ali a fazer nada. Estava a bater com a cabeça contra a parede inutilmente e abandonei.
Uma nova liderança com sangue novo pode ajudar a mudar o partido?
Dentro do PCP confundem-se dois termos: coerência e teimosia, ou chamemos-lhe fanatismo. Eles tentam passar a ideia que não saem da linha porque são coerentes mas não é assim. É porque não conseguem mudar e se não conseguem vão acabar por desaparecer. E só não desapareceram porque em Portugal há uma grande franja de subdesenvolvimento. E há outra coisa. Temos uma grande extrema-esquerda em termos de referência eleitoral porque não temos extrema-direita. Se tivéssemos extrema-direita, não sei se uma parte significativa das pessoas que apoiam a extrema-esquerda não estaria lá.
O PCP assim não vai a lado nenhum porque continua a viver no mundo que idealizou mas que já não é o mundo real. Eles ainda vivem na época da Revolução Industrial. E defendem teses que a prática já demonstrou que falharam. Há um tipo de discurso que cansa. São precisas ideias novas.
*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.