"Cinema de terror era pouco ou nada exibido em Portugal até 25 de Abril"
Os entrevistados desta quinta-feira do Vozes ao Minuto são os diretores artísticos e programadores do MOTELX, Pedro Souto e João Monteiro.
© CTLX/MOTELX
Cultura MOTELX
O MOTELX chega este ano à sua 18.ª edição, entre o dia 10 e 16 de setembro, no cinema São Jorge, em Lisboa.
Este ano, o festival não só vai exibir um conjunto de novas produções de terror, como traz uma mão cheia de surpresas, entre as quais um filme criado com Inteligência Artificial (IA) e uma viagem ao período pré-revolução, com a exibição de vários filmes de terror proibidos pela ditadura.
Mas as novidades não ficam por aqui. O Notícias ao Minuto esteve à conversa os diretores artísticos e programadores do MOTELX, Pedro Souto e João Monteiro, para saber o que podem esperar os espectadores do MOTELX deste ano, assim como do futuro do festival português, que já faz parte do circuito dos festivais internacionais de cinema.
Ainda não há ficção de terror totalmente adaptada à realidade histórica, social e política portuguesa, e isso prende-se com a falta de bons guiões
Este ano o MOTELX conta com um elevado número de filmes nacionais nas competições de curtas-metragens (Melhor Curta de Terror Portuguesa e Melhor Curta Europeia). A que se deve esta adesão?
Pedro Souto: O Prémio MOTELX - Melhor Curta de Terror Portuguesa, o maior prémio monetário para curtas em Portugal (5.000 euros), tem sido, de facto, uma das grandes apostas do festival. Não temos a certeza da razão em particular para o elevado número de filmes portugueses este ano, mas sabemos que, ao longo das últimas edições, a produção nacional nunca diminuiu e a qualidade tem vindo sempre a aumentar. Durante o ano, com o MOTELX on Tour e com as Sessões Especiais MOTELX Estudantes, tentamos mostrar o melhor do cinema de terror português um pouco por todo o país. Nestes encontros, sente-se sempre que há uma grande vontade da parte de futuros jovens cineastas em experimentar fazer cinema de terror. No que respeita ao MOTELX e à promoção do festival como uma plataforma preferencial de exibição de cinema de terror nacional, tem ajudado também o facto de não nos concentrarmos apenas num tipo de terror. A quantidade de diferentes subgéneros existentes é tão grande, que facilmente cada um encontra o seu, aquele que mais tem a ver com o seu desejo de fazer cinema. O que foi completamente inesperado este ano foi o elevado número de curtas com durações maiores, 30, 40 ou até 50 minutos, portanto médias-metragens.
Também na programação deste ano regressa o Prémio MOTELX GUIÕES. Em que consiste este prémio?
João Monteiro: Trata-se de um prémio que visa promover uma evolução na escrita de terror. O MOTELX propôs-se desde a sua génese a estimular a produção de filmes de terror, seja em que formato for, mas há outras áreas muito importantes que também precisam de atenção. O argumento é uma delas porque ainda não há ficção de terror totalmente adaptada à realidade histórica, social e política portuguesa, e isso prende-se com a falta de bons guiões. Este prémio pretende distinguir bons argumentistas, pô-los no mapa e através da colaboração com o GUIÕES, que há dez anos trabalha o guião em língua portuguesa, permitir um contacto com produtores, tanto de Portugal como do Brasil.
Uma das longas mais aguardadas é 'Cartas Telepáticas', criada com IA. O que os espectadores podem esperar deste filme de Edgar Pêra sobre Pessoa e Lovecraft?
João Monteiro: É um filme que surpreende a toda a ordem: desde a utilização pioneira desta ferramenta no cinema português, e quem mais senão o Edgar Pêra, permitindo ao espectador perceber que possibilidades oferece e que limites possui; mas também pela colagem dos universos destes dois monstros da escrita, contemporâneos um do outro, mas que nunca se corresponderam e que possuem muitas afinidades. No ano passado já demos uma pista com a exibição do videoclipe do Legendary Tigerman já realizado pelo Edgar, mas desta vez é mesmo uma longa-metragem que seguramente irá surpreender.
Também vamos ter um momento de regresso ao passado, com exibição da primeira obra cinematográfica do maestro António Victorino D'Almeida. Para quem não conhece, que tipo de obra é esta?
João Monteiro: O Maestro Victorino D’Almeida não se ficou pela música para cinema, realizou um filme cuja recepção na altura tê-lo-á feito desistir de prosseguir, o que é pena, porque 'A Culpa' é um filme sem igual no cinema português. Sinde Filipe é um soldado que regressa da guerra colonial na Guiné e encontra um país que lhe aponta o dedo e o torna culpado de tudo o que de mal vai na sociedade portuguesa, tornando-o num pária social e literalmente num lobisomem. Sátira acutilante à sociedade portuguesa num híbrido de géneros, entre os quais o surreal, o fantástico e o terror. Esta sessão será complementada com uma curta maravilhosa, realizada em 1977 na Festa do Avante e intitulada 'As Desventuras de Drácula Von Barreto nas Terras da Reforma Agrária'.
As razões da censura prendiam-se geralmente com atentados à igreja e à fé católica (principalmente na província) ou com o carácter erótico de alguns destes filmes
No ano em que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, vão também exibir vários filmes de terror proibidos pela ditadura. Estamos a falar de que tipos de filmes e de que proibições? Quais as razões que levaram à sua proibição?
João Monteiro: A construção deste programa permitiu uma descoberta de uma realidade que desconhecemos: o cinema de terror era pouco ou nada exibido em Portugal. Em 30 anos, foram submetidos ao SNI [Secretariado Nacional de Informação] 23 filmes de terror, dos quais só estrearam sete e com cortes. Destes 23 filmes, não há terror norte-americano, apenas europeu, principalmente Itália e Reino Unido, como os filmes de Mario Bava ou da lendária produtora Hammer Films. E isto deve-se ao facto das distribuidoras saberem qual seria o veredicto do SNI e, por isso, não importam filmes de género porque cada chumbo significava prejuízo. As razões da censura prendiam-se geralmente com atentados à igreja e à fé católica (principalmente na província) ou com o carácter erótico de alguns destes filmes (principalmente os italianos). Iremos exibir cinco destes filmes e os trailers dos outros nestas sessões.
Que outras novidades destacam no festival deste ano?
Pedro Souto: Uma das grandes novidades deste ano é o MOTELX AV Lab – 6 e 7 de Setembro no Beato Innovation District (antigo Hub Criativo do Beato) – com dois dias de workshops DIY dedicados ao som e música para filmes de terror através da construção de sintetizadores. Com a música electrónica em pano de fundo, este laboratório audiovisual, com curadoria do projecto disruptivo Liquid Sky Artistcollective, sediado em Santana da Serra (Ourique), promete surpreender e abrir portas para a criação sem limites.
Já no período do Festival propriamente dito, vamos ter uma novidade no que respeita a secções, a nova secção 'Sala de Culto', um espaço de reverência às obras inclassificáveis do cinema de terror, este ano com dois filmes portugueses: 'Experiência em Terror' (1987), uma aventura conjugal de Dick Haskins e 'O Velho e a Espada' (2024), um delírio demoníaco de Fábio Powers.
No campo dos filmes mais bombásticos e mais aguardados do ano, destacamos: 'MaXXXine' de Ti West, sangue e pornografia em Hollywood com Mia Goth; 'The Substance' de Coralie Fargeat, um body horror inter-geracional com Demi Moore num dos grandes papéis da sua carreira; pancadaria de meia-noite num comboio na Índia, em 'Kill', o filme mais sangrento da história do cinema indiano; os perigos do turismo em 'Speak No Evil' (filme de abertura), com James McAvoy; e 'The Surfer', com Nicolas Cage à beira da loucura com uma crise da meia-idade, a encerrar o Festival.
O MOTELX já faz parte do circuito dos festivais internacionais de cinema. Como vêem esta conquista?
Pedro Souto: Com grande satisfação e muito cientes da responsabilidade. O reconhecimento internacional é uma oportunidade para termos acesso a mais filmes, aumentando assim as hipóteses de os poder exibir no festival. Fazer parte desse circuito facilita também a vinda de convidados, embora a popularidade turística que Portugal alcançou também ajuda bastante.
Que balanço fazem de quase duas décadas de existência?
Pedro Souto: Tem sido incrível! Vários objetivos foram alcançados com a ajuda de muitas dezenas de parceiros e um sem-número de pessoas de várias áreas que se têm juntado à equipa a cada edição. Desde 2007, a primeira edição, o festival cresceu bastante em número de espectadores, dias, sessões, filmes, secções, convidados e prémios. A ideia de ser uma experiência intensa, de descoberta e partilha, mantém-se. A aposta no cinema português mostrou-se frutífera, quer no novo quer no antigo.
Ao longo destes anos o MOTELX recebeu mais de 1.000 filmes nacionais (inscrições) de um género que supostamente não existia em Portugal. Mais recentemente, editámos o livro 'O Quarto Perdido do MOTELX - Os Filmes de Terror Português (1911-2006)' colocando em diálogo com o presente cerca de 25 filmes, desde os tempos do mudo até ao início do século XXI. O festival passou também a viajar para fora de Lisboa e de Portugal, através do MOTELX on Tour com sessões especiais a acontecerem ao longo de todo o ano, incluindo programação infantil com a secção Lobo Mau, que tem vindo a crescer também.
E o que podemos esperar do futuro?
Pedro Souto: No futuro pretendemos continuar a aumentar o ramo formativo e laboratorial, como temos vindo a fazer, por exemplo, ao recebermos o GUIÕES - Festival do Roteiro de Língua Portuguesa e este ano com o MOTELX AV Lab no Beato Innovation District. Portanto, sentimos que as bases para o futuro estão cada vez mais sólidas, mas ainda temos muito trabalho pela frente e muitas ideias por concretizar!
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