"A mulher negra nunca representou o ideal de beleza em Portugal"
Andreia Correia, a primeira mulher negra eleita Miss Portugal, é a convidada do Vozes ao Minuto desta sexta-feira.
© Instagram - Andreia Correia / Miss Portugal / Miss Portugal Universo
Fama Andreia Correia
Andreia Rodrigues Correia nasceu em Sintra, em 1998. Filha de pais emigrantes cabo-verdianos, desde muito jovem que mostrou ter uma grande paixão pelo mundo da moda e da beleza.
Com um espírito resiliente e uma determinação inabalável, Andreia decidiu emigrar para Londres, em 2018, para estudar.
Na Universidade de Greenwich, iniciou o curso de Comunicação e Marketing Digital. Mas logo depois os planos mudaram, uma vez que surgiram várias oportunidades para participar em concursos de moda. Em 2019, iniciou a sua jornada enquanto modelo, tendo depois ganhado vários títulos.
Em junho deste ano, Andreia foi eleita Miss Portugal e Miss Portugal Universo na Gala Final Miss & Mrs Portugal, realizada no Cineteatro Avenida, em Castelo Branco. Agora, vai representar o nosso país no concurso Miss Universo, que acontece este mês, em El Salvador, no México.
Mas não é só por isso que a modelo se destaca. Andreia Correia é a primeira mulher negra a ser eleita Miss Portugal e a representar o país no maior concurso de moda do mundo. Tal como descreve, para si, "é uma honra".
A minha mãe diz que quando eu era pequena pegava nos saltos dela e andava pela casa, fazia poses. Podia ser uma criança teimosa, mas era feliz
Como era a Andreia Correia durante a sua infância?
Desde pequena que gosto de moda. A minha irmã mais velha era modelo e sempre trabalhou com fotografia, então isso despertou a minha curiosidade. Mas eu era uma criança bem teimosa, reguila, chorava por tudo e por nada… era uma ‘pestinha’, basicamente [risos]. Também sempre tive um gosto especial pela fotografia. A minha mãe diz que quando eu era pequena pegava nos saltos dela e andava pela casa, fazia poses. Podia ser uma criança teimosa, mas era feliz.
Somos cinco irmãos - dois só da parte do meu pai e três [fruto] da relação da minha mãe com ele. Eu nasci cá, em Sintra, mas os meus irmãos nasceram todos em Cabo Verde. Os meus pais emigraram para Portugal há 32 anos à procura de uma vida melhor. Mas de um modo geral, foi uma infância muito tranquila. Somos uma família muito unida e apoiamo-nos muito uns aos outros. Sou uma sortuda.
O que espoletou a paixão pelo mundo da moda?
Em 2018, emigrei para Inglaterra para estudar Comunicação e Marketing Digital. Entretanto, surgiu a oportunidade de participar num concurso, o Miss Portugal UK [evento que seleciona a representante da comunidade portuguesa do Reino Unido para a final nacional do Miss Queen Portugal] e ganhei. Foi completamente ao acaso, porque eu tinha visto o anúncio do concurso no Instagram e decidido participar, mas nunca pensei que fosse ganhar.
Depois desse concurso, participei no Miss Queen Portugal 2019 e saí com um título de Miss Intercontinental 2021. A minha irmã também me incentivou imenso e sugeriu que eu procurasse uma agência em Inglaterra. Foi a partir de 2019 que comecei a fazer trabalhos mais profissionais.
Mas antes de emigrares também fizeste alguns trabalhos enquanto modelo?
Sim, mas eram trabalhos pequenos. Participei em algumas novelas da TVI, enquanto figurante, mas era algo super pequeno. Digo mais que eram hobbies, até porque estudava, então era difícil conciliar tudo. Mas quando surgiu a oportunidade de poder trabalhar e estudar ao mesmo tempo, em Inglaterra, procurei trabalhar profissionalmente na área da moda.
E a Comunicação e o Marketing Digital? Desapareceram por completo dos teus planos?
Não, não. Na verdade, uma coisa teve que ver com a outra [a moda e a comunicação]. Quando terminei o nono ano, não sabia bem o que queria fazer. Depois de fazer alguns testes psicotécnicos, percebi que a área da comunicação seria a ideal. Sempre gostei muito de falar, de aparecer, de dar a voz. Também tive uma professora que me incentivou bastante e disse que eu me enquadraria bem em comunicação, relações públicas, publicidade… Eu gosto de novos desafios, não gosto de estar parada e acho que a área da comunicação te dá essa oportunidade de viajar, de criar conteúdos. Foi mais por aí. O desejo de ser modelo só surgiu depois de começar o curso em Inglaterra. Mas acho que, de certa forma, está tudo relacionado.
Em julho, terminei a faculdade, mas agora estou mesmo focada na moda. Trabalhar em Comunicação e Marketing passou para plano B.
Dizes que uma das tuas principais inspirações é a tua irmã Miriam. De que forma é que ela te tem ajudado a percorrer este caminho?
Primeiro do que tudo, dá-me força. Ela diz: ‘Andreia, vai, não penses duas vezes’. Foi graças a ela que eu concorri ao Miss Portugal, porque eu estava com algum receio de participar. Ela é o tipo de pessoa que também não pensa duas vezes. Tudo o que eu precisar, sei que ela está lá. Além disso, é fotógrafa, por isso consegue dar a sua opinião sobre todo o tipo de fotografia. Ajuda-me a gerir a minha própria carreira.
As pessoas em Inglaterra são mais frias, mais fechadas. Senti falta daquele calor de Portugal
Foste para Inglaterra, porque ela morava em Londres, certo?
Exato. A minha irmã já morava em Inglaterra há mais de 10 anos e foi ela que me incentivou a ir.
E quais foram os principais obstáculos com que te deparaste ao longo desse processo?
A língua foi o meu primeiro obstáculo. Eu não falava nem entendia nada em inglês. Depois foi a cultura. As pessoas em Inglaterra são mais frias, mais fechadas. Senti falta daquele calor de Portugal. Aqui tenho a minha família, os meus amigos. Senti falta desse calor humano, sem dúvida. E a qualidade da comida… A comida portuguesa foi o que senti mais falta [risos].
Mas já moras em Londres há seis anos.
Seis anos… é muito tempo. Agora já posso dizer estou ‘pro’ em inglês [risos]. Acho que foi das melhores decisões que tomei. Sair de Portugal, viajar para um novo país, porque abriu a minha mente e deu-me a oportunidade de ver o mundo com outros olhos. Mudou a minha forma de pensar.
A minha mãe reagiu super bem, ela é a minha fã número um e está na fila da frente se for preciso
Quando disseste à tua família que querias seguir pelo mundo da moda, como é que eles reagiram?
A minha mãe reagiu super bem, ela é a minha fã número um e está na fila da frente se for preciso. As minhas irmãs também e ajudam-me no que for necessário. O meu pai… ao início ficou mais receoso. Ele sempre deu muito valor aos estudos e disse-me para eu terminar a escola e só depois ingressar no mundo da moda. Contudo, como eu consegui conciliar tudo, ele percebeu que estava a ir bem. A partir daí, deixou-me mais à vontade para ver no que é que ia dar. Mas sim, ao início ficou muito reticente, porque ele achava que a moda não me iria dar um bom futuro. O facto de ter emigrado também o ajudou a ver as coisas por outra perspectiva, porque viu que eu tinha essa responsabilidade.
E a nível profissional há alguém que te inspire?
A Naomi Campbell e a Taís Araújo. Sigo muito o seu trabalho, são duas fontes de inspiração que eu adoro.
Mas a minha irmã também é uma inspiração a nível profissional, porque ela participou no Miss Cabo-Verde, em 2016, e foi a partir daí que eu comecei a ouvir falar em concursos de beleza. Ela classificou-se como Primeira-Dama Miss Cabo Verde.
E a nível nacional, há alguma figura que esteja relacionada com a área da moda e que seja um exemplo para ti?
Sinceramente… não.
Achas que isso tem que ver com a falta de representatividade de mulheres negras nesta área?
Sem dúvida. É por isso que eu considero o facto de ter sido eleita Miss Portugal e Miss Portugal Universo mesmo importante. As outras mulheres podem agora sentir-se representadas.
Como referiste há pouco, o teu primeiro título foi o de Miss Intercontinental. Qual o significado dessa tua primeira vitória?
Foi incrível. Eu não tinha experiência nenhuma no mundo das ‘misses’, não sabia o que esperar, não estava preparada. Ganhar esse título deu-me a oportunidade de poder viajar, de conhecer outras culturas - porque nestes concursos conheces imensas pessoas, de vários países - e permitiu-me ver outras realidades. Eu sabia que ia representar Portugal, mas só quando lá cheguei é que percebi o quão sério era.
O que se seguiu a essa conquista?
Depois de representar Portugal no Concurso Miss Intercontinental, recebi o convite para participar no Miss Aura Internacional 2020, na Turquia. Estive lá durante 15 dias e saí vencedora desse concurso.
No ano passado, também tive o prazer de representar Portugal no Miss Charm, que se realizou no Vietname, mas não fui classificada. Ainda assim, foi uma experiência ótima, porque nunca tinha estado na Ásia e era um concurso enorme! Assim do género Miss Universo, mas um pouco mais pequeno. Foi incrível. Acho que foi uma das melhores experiências da minha vida.
Dou sempre o meu melhor e mesmo que não ganhe, sei que fiz o meu trabalho e que não foi em vão. É uma responsabilidade muito grande
O que retiras desses momentos?
Que valeu a pena o esforço. Sais de lá com uma aprendizagem… Não estás só a representar-te a ti, mas a representar um país. Dou sempre o meu melhor e mesmo que não ganhe, sei que fiz o meu trabalho e que não foi em vão. É uma responsabilidade muito grande. Posso dizer que aprendo sempre algo novo, seja sobre a cultura, sobre o país ou até mesmo sobre os concursos de beleza. Tudo o que eu aprendi nos concursos anteriores, levei para o Miss Portugal.
E o convívio com as outras concorrentes? Existe muita competitividade?
Sempre, sempre. A partir do dia que tu és selecionada, já estás a competir. Claro que sais de lá com algumas amizades, mas a competição está sempre presente. E nunca te podes esquecer disso.
É uma honra. É uma missão precisamente por ser a primeira mulher negra. A representatividade é muito importante. Já a tínhamos visto noutros concursos, mas nunca em nenhum dessa dimensão
És a primeira mulher negra a ser eleita Miss Universo Portugal. O que significa para ti esta nomeação?
É uma honra. É uma missão precisamente por ser a primeira mulher negra. A representatividade é muito importante. Já a tínhamos visto noutros concursos, mas nunca em nenhum dessa dimensão. Agora, recebo imensas mensagens de várias mulheres que se veem representadas e que ganharam coragem para tentar participar. Não sei explicar. É saber que fiz o meu papel e que estou a receber carinho por isso.
Eu compreendo a visão de cada uma e compreendo que não se vejam representadas, porque eu não tenho o biotipo de uma mulher portuguesa
Por outro lado, há quem considere que não representas o nosso país em termos culturais. Como reages a essas críticas?
Comentários positivos e negativos vão sempre haver. Nem todas as pessoas vão concordar com a tua opinião. Eu compreendo a visão de cada uma e compreendo que não se vejam representadas, porque eu não tenho o biotipo de uma mulher portuguesa. Claro, eu nasci aqui, mas os meus pais são de Cabo-Verde. Mas, a partir do momento em que nasces em Portugal, falas a língua, vives a cultura portuguesa, por que não? O mundo está a mudar e temos de ter esse 'mindset'. Claro que quando vejo certos comentários fico triste, mas o melhor é seguir em frente e fazer o meu trabalho.
O que sentes que falta, tanto no mundo da moda como na própria sociedade, para que deixe de haver esses preconceitos e esses estereótipos?
Oportunidade e visibilidade. Quando nós, negros, nos conseguirmos impor na comunidade e nos começarmos a opor a determinados assuntos, acho que o preconceito irá acabar. Também precisamos de ajuda do outro lado, mas, acima de tudo, temos de nos saber impor. Temos de estabelecer os nossos limites.
Também tem que ver com o racismo que está intrínseco na sociedade. Se o Governo implementasse sanções para combater o racismo, seria tudo mais fácil. Acho que as pessoas não têm noção do quanto esses comportamentos nos podem prejudicar psicológica e fisicamente.
Quando eu era criança, tinha muitos complexos com o meu cabelo ou com os meus lábios por serem maiores. Gozavam comigo e diziam que os meus lábios pareciam um chouriço
Viste-te perante comportamentos racistas ao longo da tua vida?
Sim, muitos. E afetou-me bastante, principalmente a nível psicológico. Afetou a minha autoestima e a minha confiança. Quando eu era criança, tinha muitos complexos com o meu cabelo ou com os meus lábios por serem maiores. Gozavam comigo e diziam que os meus lábios pareciam um chouriço. Quando és pequena e vês que tens o cabelo diferente do dos teus colegas, não entendes. Aliás, na minha escola, éramos poucos negros. Com o tempo, aprendi a gostar de mim e comecei a ignorar esses comentários. Hoje em dia, adoro o meu cabelo. As minhas irmãs também me apoiaram imenso e ajudaram-me nesse processo de aceitação.
Quando tentei arranjar uma agência aqui em Portugal, foi complicado. Aqui sim, eu sinto que ainda não existe essa abertura para aceitar pessoas negras no mundo da moda. Eu percebi que não iria ter tantas oportunidades como lá fora
No mundo da moda esse preconceito é mais evidente?
Como eu comecei a trabalhar profissionalmente na moda em Inglaterra, não senti tanto esse racismo. Inglaterra tem uma mistura de culturas enorme. Mas, por exemplo, quando tentei arranjar uma agência aqui em Portugal, foi complicado. Aqui sim, eu sinto que ainda não existe essa abertura para aceitar pessoas negras no mundo da moda. Eu percebi que não iria ter tantas oportunidades como lá fora. Dava para perceber quando as minhas colegas conseguiam trabalho e eu não. Se eu conseguisse, era para trabalhos muito específicos. Sentia-me muito frustrada.
Depois de ter ido para Inglaterra, senti uma mudança brutal. Tenho trabalho todas as semanas, ou seja, o desequilíbrio é bastante evidente entre um país e o outro.
E quando não conseguias um determinado trabalho aqui em Portugal, associavas logo ao racismo?
Sim. A mulher negra nunca representou o ideal de beleza. Tinha de ser uma mulher loira de olhos azuis. Esse é que era o simbolismo de uma mulher bonita. Mas isso tem mudado ao longo dos anos.
Recordando toda a polémica e preconceito que houve em torno da Marina Manchete [primeira Miss Universo Portugal transgénero], tens medo que algo semelhante possa vir a acontecer contigo caso ganhes o concurso?
Foi realmente polémico uma mulher transgénero ter passado a coroa a uma mulher negra. Li muitos comentários de pessoas a perguntar se em Portugal não havia mulheres brancas para representar o país. Mas, acho que não irei passar por aquilo que a Marina passou, porque o Miss Universo é um concurso que vai muito além da inclusividade. Para os portugueses, sim, talvez seja difícil de aceitar.
Tens de ter uma voz e lutar por uma causa. Tens de ser uma mulher empoderada e mostrar isso às pessoas que te seguem. Esse é um dos pontos mais importantes para se ser uma Miss
O que é, para ti, necessário para se ser uma Miss Universo?
Primeiro, tens de ter uma voz e lutar por uma causa. Tens de ser uma mulher empoderada e mostrar isso às pessoas que te seguem. Esse é um dos pontos mais importantes para se ser uma Miss. Além disso, tens de saber transmitir os teus ideais. Não é só beleza. A luta pelas causas sociais também é muito importante. As pessoas pensam que ser Miss é apenas sinónimo de ser bonita e saber desfilar. Mas não, vai muito além disso. Por exemplo, há dois meses que sou voluntária na Associação NOVAMENTE, que apoia pessoas com doenças e lesões cerebrais. É essa a causa que vou levar para o Miss Universo.
No que diz respeito aos ideais de beleza, o que sentes que ainda falta desmistificar?
Ainda existe aquele preconceito fútil de que as mulheres que participam em concursos de beleza não são inteligentes, por exemplo. E a verdade é que, para participares num concurso desses, tens de ser inteligente. Tens de te saber expressar, tens de saber impor.
Em termos corporais, já acho que houve um grande avanço. O Miss Universo já inclui mulheres de todo o tipo: casadas, divorciadas, com filhos, sem filhos. E isso é bonito de ser ver. A beleza da mulher não está no corpo, mas sim naquilo que ela é.
Que mensagem pretendes passar às mulheres, e sobretudo às mulheres negras, que querem enveredar pelo mundo da moda?
Que persigam os seus sonhos. Eu consegui chegar onde sempre quis e é essa a mensagem que eu quero transmitir: sigam sempre os vossos sonhos, por mais que o caminho pareça difícil.
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