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Assédio? "Academia é um sítio propício porque há relações de poder"

Ana Costa Freitas, presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas, é a entrevistada desta segunda-feira do Vozes ao Minuto.

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© Miguel Figueiredo Lopes/ Presidência da República

Teresa Banha
23/12/2024 09:19 ‧ há 5 horas por Teresa Banha

País

Ana Costa Freitas

Em abril de 2022, Ana Costa Freitas foi eleita presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas (AMONET), um cargo no qual esperava dar o seu contributo para o "reconhecimento do valor da mulher na ciência, que é cada vez maior e cada vez mais desafiante".

 

No ano seguinte, Ana Costa Freitas, que recebeu do Presidente da República a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a também antiga Reitora da Universidade de Évora falou do papel das mulheres na ciência, da possibilidade de as quotas serem algo a pensar ou mesmo de temas como o assédio na Academia, como é o caso de Boaventura de Sousa Santos, que chegou a tribunal.

52% dos cientistas em Portugal são mulheres, há mais mulheres no Ensino Superior, há mais mulheres com doutoramento - mas depois há muito menos mulheres no topo de carreira

Duas décadas após a criação da Associação Portuguesa das Mulheres Cientistas, como classifica o impacto da associação em Portugal?

Gostaria de dizer que tinha imenso impacto. Confesso que não acho que tenha o impacto que deveria.

Porquê?

Para já, porque há imensas associações. Depois, de uma forma geral, os cientistas - homens e mulheres -, têm tanta coisa [em mãos] que acaba por não se ter muito tempo para este tipo de iniciativas. No entanto, ajuda um pouco à forma de contactar com as pessoas. Antes eram encontros e pouco mais. O que nós fizemos [mais recentemente] foram mais 'webinars' sobre vários temas - e as pessoas aderiram bem.

Também fizemos iniciativas com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Em janeiro, vamos também ter um 'podcast' com seis episódios que se vai chamar 'A Ciência Inspira-me'. Temos seis cientistas - quatro mulheres e dois homens. De uma forma geral, temos a preocupação de que a ciência não tem propriamente género. 

Há um problema nas mulheres da ciência e temos preocupação com isso. Principalmente, porque 52% dos cientistas em Portugal são mulheres, há mais mulheres no Ensino Superior, há mais mulheres com doutoramento - mas depois há muito menos mulheres no topo de carreira.

Na pandemia, por exemplo, a produção científica de 'papers' com uma mulher como primeira autora diminuiu drasticamente. Ao ficarmos todos em casa, quem tinha o peso da casa eram as mulheres e não os homens

O anterior governo, por exemplo, escolheu Elvira Fortunato para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Esta ausência de mulheres em cargos de topo acontece em cargos ministeriais, em cargos de gestão de empresas e também na área da ciência, como apontou.

Há muitas mais mulheres a trabalhar na ciência do que homens, mas há muito poucas no topo da hierarquia. Segundo os dados, a paridade de género a esse nível pode demorar uma geração. Seis em cada dez licenciados são mulheres. Agora, são metade do pessoal académico, mas são apenas um terço da categoria do topo da carreira académica.

E por que razão é que isto acontece?

Acho que isto tem tendência a mudar. Se a tendência se mantiver, há-de mudar, mas apenas 13% das mulheres são reitoras, por exemplo. Agora, já há muito mais reitoras do que quando eu fui [entre 2014 e 2022]. Há no ISCTE, nas universidades de Évora e dos Açores e também nos politécnico de Beja, de Leiria e de Setúbal.

Acho que há uma tendência para mudar, mas a questão é que o equilíbrio é imensamente frágil.

Como assim?

Na pandemia, por exemplo, a produção científica de 'papers' com uma mulher como primeira autora diminuiu drasticamente. Ao ficarmos todos em casa, quem tinha o peso da casa eram as mulheres e não os homens. Ou seja, isto poderá andar para trás de repente se acharmos que está resolvido. E por isso acho que é preciso haver muitos alertas acerca do assunto. Acho que é um problema que este assunto pareça que está resolvido - porque não está. E é frágil.

Vemos a preocupação dos sucessivos governos com o emprego e habitação da juventude ou com o problema da perda de talento - porque as pessoas migram -, mas ninguém se lembra da perca de talento porque as mulheres têm dificuldades em aceder aos cargos de chefia.

Acha que estas questões - na área da ciência e não só - seriam melhor resolvidos, ou pelo menos, melhor pensados, se houvesse um ministério só dedicado à igualdade de género? Isto porque a igualdade de género deve ser tida em conta em várias pastas.

Existe a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

Mas, não tendo o poder a nível executivo de um ministério, a existência de um seria um caso a pensar?

Provavelmente, seria interessante. Não tenho a certeza! Tenho muita dificuldade em como se trata assuntos que têm duas tutelas. Havia uma altura que havia o Ministério da Educação, que tinha o Ensino Superior, e o Ministério da Ciência, que tinha a ciência.

Tal como aconteceu agora quando o Partido Socialista 'partiu' o Ministério das Infraestruturas e da Habitação em dois.

Exatamente! Acho que é difícil depois ter políticas coordenadas. Exige ao nível dos ministros uma grande cooperação [...]. A ciência em Portugal só é financiada através de financiamento competitivo, ou seja, temos sempre de nos candidatar a projetos de investigação. Os [projetos] nacionais não são quantias elevadas, [na medida em que] há cada vez mais investigadores. Muitas vezes é preciso concorrer a projetos europeus.

Portugal é um caso de sucesso na Europa. Há muito mais mulheres a entrar no Ensino Superior, há muito mais mulheres a acabar o Ensino Superior, há muito mais mulheres a acabar o doutoramento

Os projetos nacionais não são bem financiados?

Quando se diz que 'concorreram mil e foram financiados só 300', só foram financiados 300 não porque os outros não têm qualidade, mas sim porque não há mais dinheiro. Já um projeto europeu pode ter milhões [de euros]. Para os projetos europeus que é preciso, desde 2022, um plano de igualdade de género aprovado.

Mas [no decorrer dos anos] não é necessário ver como é que aquele plano é efetivo. São coisas que são difíceis. Tentam-se mudar as mentalidades, mas não tenho a certeza de que elas totalmente mudam.

Ou seja, o plano pode ficar apenas no papel?

Exatamente. O plano pode ficar apenas no papel ou "fazer outro que este não serviu".

Faz falta então existir uma monitorização?

Não há essa monitorização - por isso é que andamos sempre em altos e baixos. E Portugal é um caso de sucesso na Europa.

Porquê?

Há muito mais mulheres a entrar no Ensino Superior, há muito mais mulheres a acabar o Ensino Superior, há muito mais mulheres a acabar o doutoramento. Acho que é uma questão de curiosidade. Voltar, mestrado e fazer o doutoramento. É evidente que há uma fuga de talento - o que me preocupa. Preocupa-me a falta de reconhecimento das mulheres como talentos. Mas a verdade é que  em Portugal [...] não temos empregos qualificados para tanta gente que acaba os cursos. Nas mulheres, também os salários são mais baixos. Sinceramente, não tinha essa noção porque no Estado é tabelado, mas [no resto] são substancialmente mais baixos.

Estamos a falar de uma diferença de quanto?

De 13%. Penso que foram os últimos dados que saíram. E isto não tem qualquer justificação. Depois, há o alargamento da licença de maternidade, que faz todo o sentido, mas tem de ser partilhada. Não é partilhada. E há vários estudos feitos que dizem que quando os homens vão para casa para estar de licença, depois voltam [ao trabalho e] têm novas 'skills', digamos. Conseguem ter um pensamento mais multidisciplinar.

Aqui, acho que há diferenças entre homens e mulheres. Uma pessoa que está a trabalhar, a responder a um filho, a fazer o jantar... Isto dá uma capacidade de 'multitasking' muito grande.

Já fui completamente contra quotas de género e agora não sou. Provavelmente tem de se começar por aí, mas não manter-se

A igualdade de género não é só uma questão de igualdade, mas também de desenvolvimento?

Não é só isso. Numa empresa, o modelo de abordagem dos problemas é mais idêntico se forem só homens ou só mulheres. Se houver uma mistura, a abordagem aos problemas são necessariamente diferentes. Isto tem valor na progressão das empresas, na progressão da investigação. A maneira como se abordam os problemas - porque temos vivências diferentes - é diferente. Há uma perca significativa de rendimento [em haver só homens ou só mulheres, nomeadamente, em lugares de topo de carreira].

E como se ultrapassam essas barreiras? Com quotas de género?

Já fui completamente contra quotas e agora já não sou. Provavelmente, tem de começar por aí, mas não tenho a certeza. [Tem de começar por aí] Mas não manter-se. Torna-se mais fácil. É mais fácil conseguir lá chegar se formos por esse caminho.

Enquanto cientista temos sempre a ideia de que as pessoas ocupam ou devem ocupar os cargos exclusivamente por mérito. É um facto. Mas dizer que não se chegou lá por falta de mérito é impossível. Porque há muita gente. Não é possível que com tanta gente não houvesse mulheres com mérito suficiente.

E quando chegam é-lhes reconhecido o mérito. Provavelmente, é preciso haver quotas, apesar de não podermos deixar de avaliar pelo mérito. Porque é que isto na ciência não se nota tanto? A perceção da ciência pela sociedade é 'mixed feelings'. Durante a pandemia, a sociedade, estava fascinada com a ciência médica, principalmente por causa da vacina, e depois isso veio outra vez esbater - essa ideia do impacto da ciência na sociedade.

[Como cientistas] temos impacto em coisas que as pessoas nem faziam ideia.

Talvez o que movesse o interesse das pessoas fosse o medo, mas quando está tudo bem as pessoas nem sabem por que razão está tudo bem - nem o impacto.

Na pandemia foi mais estranho. A ciência não dá uma resposta. A ciência baseia os seus resultados em evidência científica, analisada por pessoas. Portanto, pode não haver uma só resposta. Não pode ser o cientista que dá a decisão política. Só estão a analisar dados e resultados científicos. A decisão é política. Houve muita entusiasmo com a ciência, mas, ao mesmo tempo, um desconhecimento enorme sobre o que é que era a ciência.

E isso reflete-se, por exemplo, nas campanhas de antivacinação. Nos Estados Unidos, também na Europa. Esta, se calhar, é a influência que a ciência tem?

O problema é que as políticas públicas são avaliadas de quatro em quatro anos. As políticas públicas deviam ser avaliadas num maior período. Temos de ter conhecimento de dados, temos de poder analisar dados, temos de poder basear as nossas decisões na análise de dados que é feita. 

Isso tem vindo a acontecer com os decisores políticos? Ou seja, não falo especialmente neste governo.

Não temos tido nenhuma estabilidade nas políticas públicas. Se os governos de António Costa duraram oito anos e mesmo assim nos dois últimos já houve alteração de políticas... Agora, quando muda o partido, ainda é pior. Acho que nunca houve estabilidade de políticas públicas. Agora, não há dúvida de que numa coisa tem havido: há muitas mais pessoas a entrar no Ensino Superior, e há mais investigação científica em Portugal. E isso é muito importante.

Em que medida?

Não é importante por aquilo que se descobre eventualmente, mas sim pela mentalidade das pessoas. Quando uma pessoa faz o seu doutoramento aprende a realizar análise estatística, a ponderar, a comentar, a reconhecer erros, a trabalhar em grupo, a falar com outras pessoas. Em termos de cidadãos, os cidadãos são mais bem formados só pelo facto de terem o Ensino Superior. Isso é importante para a posteridade. Essa diferença tem sido enorme. Praticamente não tínhamos ciência e agora competimos com muitos países na Europa, por exemplo no Programa Horizonte. Já atingimos o 'breakeven'.

E que projetos destacaria?

Há muitos projetos. Alguns na área energias renováveis, que foi muitíssimo desenvolvida. As tecnologias de informação e computação. O estudo do mar e do seu fundo. Abrimos também uma área no Espaço. A mudança da mentalidade dos agricultores portugueses deveu-se muito à sua maior educação. Agora não vimos pessoas que estão a fazer como os pais fizeram. Foram investigar e estão a fazer com fundamento.

Tem de se falar sobre o assédio nas instituições. Não é demonizar; é falar abertamente

Porque falamos das questões de igualdade de género,e como anterior reitora, um tema muito importante no Ensino Superior é o do assédio. Temos o caso de Boaventura de Sousa Santos. As instituições de Ensino Superior estão preparadas para detetar e combater casos deste género?

Não estão preparadas, estão a preparar-se! Há uma série de coisas que antes eram aceites e hoje já não. Temos de respeitar o lado das mulheres, que não aceitam, e, por outro lado, os homens também não o podem fazer. Isto é a base do problema. O problema é muito mais complexo do que isto. E há muita dificuldade em perceber qual é que é o limite. Ou seja, até que ponto é que nós ofendemos as pessoas? Nunca se pode dizer qualquer coisa que a pessoa sinta como uma agressão.

Da parte das mulheres, se se sentia, achava-se que era natural e agora não é natural - e com todo o respeito. Acho muito bem que não seja. As instituições não estavam preparadas, as mulheres não estavam preparadas. Ou os homens, porque também há o contrário. Na AMONET tivemos um 'webinar' chamava 'Assédio na Academia - O elefante na sala'. E foi importante por causa disso. É realmente o elefante na sala. Ninguém quer falar disto.

Pode-se dizer "a mim não me afetou", mas existe. E existe a todos os níveis. Existe entre funcionários, existe entre docentes, existe entre docentes e entre alunos, existe entre alunos, existe entre funcionários e alunos, existe ao nível da investigação. Existe! Tem de se falar muito sobre isto - e abertamente. Não é demonizar. É falar abertamente. Depois há casos extremos. Esses não têm desculpa.

Como neste caso?

Exato.

O caso de Boventura de Sousa Santos, pode ser 'a prova' de como as instituições não estão preparadas.

Esse caso, em termos de reparação das instituições, também teve o seu quê de, digamos, vantajoso - para as instituições se aperceberam de que é preciso estar alerta para estes casos. Nós não podemos ser confrontados com estas coisas e achar que não acontece nada. É muito difícil, quer seja com um homem ou uma mulher, quando confrontamos as pessoas e eles dizem "ah, mas ele/a estava só a brincar". Não interessa. As pessoas têm sensibilidades diferentes e, portanto, têm de se respeitar.

A Academia é um sítio propício, porque há relações de poder

E depois há a questão da reprodução de comportamentos: se se vê algo a acontecer, os comportamentos repetem-se.

E também é difícil porque, mesmo quando se chega a tribunal, há casos em que mesmo uma juíza acha que o problema é da rapariga porque "teve comportamentos que fizeram com que". E isso torna muito difícil a queixa - as pessoas têm medo de ser humilhadas.

A Academia é um sítio propício, porque há relações de poder. Há alguém que manda, que decide a vida de outro. Fazem-se exames, avaliam-se pessoas. Agora, está mais alerta para estas situações. Tem vários canais de denúncia, anónimos.

Há também o outro caso mais recente, que foi alvo de queixas de assédio verbal. O professor César Cardoso, docente convidado em Évora, e que de facto a Universidade de Évora acabou por manter.

Não conheço bem o caso, mas aí está: a Universidade de Évora fez inquéritos aos alunos e nenhum se queixou. [...]. Podem ser realidades diferentes, podem ter sido situações diferentes, e nenhum aluno se queixou [...]. A universidade não tinha na realidade nenhum motivo para suspender um professor, se nenhum dos alunos dele se queixou.

Leia Também: Maria Teresa Horta na lista da BBC das 100 mulheres mais influentes

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