Há três anos, o mundo acordava com o regresso da guerra à Europa. Aquilo que parecia irreal e longínquo, é hoje o dia a dia de um país devastado. A Ucrânia, que há anos luta pela sua independência e sonha com a integração na União Europeia, vive dias incertos - tal qual como quando as tropas russas invadiram o território ucraniano a 24 de fevereiro de 2022.
Por forma a entender em que 'ponto' está este conflito, o Notícias ao Minuto falou com Diana Soller, especialista em Relações Internacionais e Ciência Política.
Com a mudança "repentina" e constante do mundo, os cenários são imprevisíveis, mas há coisas que se podem dar por certas, como a Europa ter sido excluída da 'mesa dos crescidos', nomeadamente, na última reunião entre delegações dos Estados Unidos e Rússia. Mas porquê? E o que significa esta exclusão no futuro?
O que os Estados Unidos estão a tentar fazer é um apaziguamento da Rússia, que é uma figura que acontece muito nos momentos de transição de poder, em que a potência de 'status quo' tenta trazer para o seu lado as potências revisionistas, neste caso a Rússia
A Rússia e os Estados Unidos sentaram-se à mesa para discutir a paz no Leste europeu, sem representantes ucranianos ou da União Europeia (UE). Este encontro enfraquece o bloco europeu?
Profundamente! Acho que não há dúvidas nenhumas disso. Enfraqueceram profundamente o bloco europeu não por terem havido as próprias conversações - não me parece dramático que a Rússia tenha sido a primeira a falar com a equipa norte-americana nesta nova tentativa de impor a paz da parte de Donald Trump -, mas sim pelos resultados dessa conversa. Os resultados, juntamente com a forma como os oficiais americanos se dirigiram à Europa - quer Pete Hegseth na NATO, quer JD Vance na Conferência de Munique, e depois até Keith Kellogg dizendo que a Europa não fará parte das conversações.
Isso tudo no seu conjunto, sim, enfraqueceu a UE de uma forma muito profunda. Até a forma como os presidentes americano e ucraniano têm interagido enfraqueceu profundamente a posição europeia - quer no que diz respeito à questão da Ucrânia, quer no que diz respeito à própria ordem internacional. Porque há um reconhecimento implícito da parte de Donald Trump de que a Rússia é uma grande potência. Implícito e explícito, porque ele escreveu na [rede social] Truth Social. Ao mesmo tempo, há também um reconhecimento implícito de que a Europa está numa enorme fragilidade e que não faz parte daquilo que os Estados Unidos consideram as grandes potências internacionais que são, aparentemente, a partir de agora, os grandes interlocutores do sistema internacional em vez dos aliados tradicionais.
É resultado dos EUA e Moscovo ou também por falta de alguma tomada de posição nestes três anos? O que lhe pergunto é se a UE deveria ter sido mais forte, ter-se feito mais presente nos últimos três anos, ou se este sair - ou nem se sentar - na mesa das negociações é mais um resultado de Trump e Putin?
Acho que nem uma, nem outra. Acho que o que verdadeiramente torna a Europa insignificante e pouco importante aos olhos dos Estados Unidos é a ausência de poder da Europa e a dependência estrondosa que a Europa tem dos EUA no que se refere à sua segurança. Acho que essa é a verdadeira razão. Donald Trump não é um liberal - não é sequer um conservador liberal como é a tradição norte-americana - e a sua visão do mundo, aparentemente, é uma visão que relaciona a política internacional e a ordem internacional com as relações entre as grandes potências. O que não quer dizer que os Estados Unidos não estejam a cometer um erro estratégico enorme. Mas, a responsabilidade, primeira e última, do meu ponto de vista, é da Europa e do facto de se ter desarmado. E do facto de, apesar de ter tido muitos avisos na História recente - quer da Rússia, quer dos Estados Unidos - que este estado de coisas não se poderia manter, pouco fez para alterar a situação. E, portanto, tornou-se num ator internacional que não tem significado político.
E por que razão é que diz que é um erro estratégico por parte dos Estados Unidos?
Porque o que os Estados Unidos estão a tentar fazer, acima de tudo, neste momento, é um apaziguamento da Rússia, que é uma figura que acontece muito nos momentos de transição de poder, em que a potência de 'status quo', que são os Estados Unidos, tenta trazer para o seu lado as potências revisionistas, neste caso a Rússia. E a História antiga, a História dos últimos 200 anos da Europa, diz-nos que o apaziguamento - que é o que chama esta figura - não resulta. Muito pelo contrário, dá espaço às potências revisionistas para se organizarem e para derrotarem a potência de 'status quo'. Ou seja, do ponto de vista teórico ou histórico, aquilo que os Estados Unidos estão a fazer, quase sempre que foi tentado, redundou no enfraquecimento da potência do 'status quo'. A história recente da Rússia e dos Estados Unidos também mostra que o objetivo final da Rússia será sempre transformar os Estados Unidos numa potência menor, transformar os Estados Unidos Unidos num Estado que não faça sombra à Rússia no sistema internacional. E isso não é possível. Do ponto de vista do equilíbrio de poderes entre os Estados Unidos e a Rússia, os Estados Unidos continuam a ter muito mais poder que a Rússia, que só é verdadeiramente uma potência da perspectiva nuclear. E isso já não é verdade de uma Rússia aliada a uma China.
Todos os presidentes dos Estados Unidos, desde que Putin foi eleito, tentaram uma reaproximação da Rússia, em tempos muito menos conturbados e todos falharam. E todos tiveram no seu mandato, exceto Trump, uma guerra na Europa levada a cabo pela Rússia. Portanto, parece-me que, quer do ponto de vista da História antiga, quer do ponto de vista da História recente, os Estados Unidos estão a cometer um erro profundo, que lhes vai sair muito caro. A nós, provavelmente, ainda nos vai sair mais caro, mas eles também. Obviamente, estamos apenas no primeiro mês de mandato de Donald Trump, as coisas podem ainda alterar-se, mas a tendência é essa.
Quando fala de sair mais caro à Europa, trata-se do alargamento da guerra a outros países? Como é que nós, Europa, vamos pagar isso mais caro?
Há diversas possibilidades, entre elas o facto de a Europa não ser uma grande potência e estar entalada, digamos assim, entre a Rússia e os Estados Unidos - pode fazer da Europa uma zona de influência apetecível para qualquer um dos Estados.
Por enquanto, a China vai ficar a observar o que está a acontecer
Falando de outra das grandes potências mundiais. Passados três anos, onde está a China? Com uma aparente maior intervenção pública nesta guerra, agora, podemos esperar algumas movimentações por parte da China?
Acho que a China neste momento não tem de fazer nada. À China basta-lhe ficar à espera que os Estados Unidos entreguem os pontos à Rússia para ter uma vitória política. Acho que, por enquanto, a China vai ficar a observar o que está a acontecer - sabendo, porém, que o que está a acontecer no mundo é muito favorável à China.
A acomodação da Rússia não é igual à acomodação da China. Não estou certa de que os Estados Unidos queiram acomodar a China, embora desconfie que essa é uma possibilidade. Do ponto de vista comercial, os Estados Unidos olham ainda para a China como um grande competidor - e mesmo do ponto de vista da segurança. Agora, muitas vezes os competidores, em vez de competirem ativamente para não perderem ou para ganharem um determinado lugar no sistema internacional, podem recorrer à acomodação - portanto, dividindo os espólios do mundo, digamos assim, para tentar evitar a guerra entre as grandes potências. Ainda não há sinais disso!
A mim parece-me que a grande vontade que os Estados Unidos têm é fazer a mesma política que o Nixon fez em 1972, que é a política de détente [relaxamento], que no fundo foi separar a China comunista da União Soviética e tentar ter relações cordiais com a União Soviética sem nunca deixar de lado a competição própria da Guerra Fria - mas de uma forma mais leve e mais cordial. Agora, há diferenças.
Quais?
É que a Rússia de Putin não é a China de Mao. E há outra diferença fundamental, ainda mais importante - nós não estamos num sistema internacional relativamente estável, como era o sistema internacional da Guerra Fria. Estamos num sistema internacional de transição de poder que, por definição, é profundamente instável. E quando se está a trabalhar sobre um sistema internacional profundamente instável, qualquer passo em falso pode criar problemas profundos e irreversíveis, que é o que eu penso que pode acontecer com os Estados Unidos.
Os desafios de Charles Michel e os de António Costa são diferentes. Os de António Costa são mais exigentes
Ainda quanto à União Europeia: que diferenças vê entre Charles Michel e António Costa na presidência do Conselho Europeu? Isto tendo em conta que, depois das acusações de Trump a Zelensky que colocaram em causa a legitimidade da sua presidência, Costa anunciou a sua visita a Kyiv para ver o "presidente democraticamente eleito".
Acho que não é comparável! O mundo tem mudado tão rapidamente que acho que os desafios de Charles Michel são diferentes dos desafios de António Costa. É muito recente e também não vi António Costa até hoje tomar uma posição que o distinguisse verdadeiramente do seu antecessor. Mas também o cargo é muito ingrato - não dá propriamente para estar a tomar grandes posições políticas. Porque a verdadeira função do presidente do Conselho Europeu é congregar as vontades dos 27.
E, neste momento, a congregação da vontade dos 27 é muito mais complicada. Primeiro, porque nos últimos anos, já durante a guerra, houve bastantes desvios - é muito mais difícil congregar vontades e democracias até pro-russas e outras não, e de democracias liberais pro-ucranianas, digamos assim.
E em segundo lugar, o fator desestabilizador introduzido por Donald Trump. É que no fundo pôs a nu a posição da Europa, mas à qual retirou a legitimidade que tinha através da sua aliança com os Estados Unidos e a proteção que tinha através da sua aliança com os Estados Unidos, torna tudo muito mais complicado. Os desafios de Costa e os desafios de Costa e Charles Michel são desafios completamente diferentes. Há uma evolução, digamos assim. Os de Costa são mais exigentes.
Com um mês de presidência, acha que Trump vai ter a capacidade de enfraquecer Zelensky como líder da Ucrânia? Com as acusações de não ter sido democraticamente eleito?
O que me parece que Donald Trump está a tentar fazer - e quando se fala de Trump tem de se falar com muitas reticências -, juntando essa ideia com todas as suas outras declarações, parece-me que Trump está a insistir em que haja eleições na Ucrânia na tentativa de que haja um interlocutor mais propenso a acatar as vontades da Rússia. Acho que é esse o objetivo político.
É evidente que o nível de aprovação de Zelensky não está nos 4%, está nos 57%. Há sondagens que dizem que, por exemplo, Zaluzhnyi concorresse com Zelensky, haveria uma possibilidade de ele ganhar. Mas também nem sequer há certeza absoluta - longe disso - que se Zelensky fosse a eleições, perdesse.
Qual é o grande risco? É que apesar de tudo, a Rússia ainda tem grandes ligações na Ucrânia. Sabemos que a Rússia, nomeadamente, através de Viktor Medvedchuk, um dos prisioneiros entregues à Rússia numa das primeiras trocas, e oligarca ucraniano com ligações ao Kremlin, foi instrumental para que se elegessem líderes pró-Moscovo desde que a Ucrânia se tornou independente. E nada nos garante que não haja outros Medvedchuk na Ucrânia. Muito pelo contrário - ficaria admirada se não houvesse.
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