"Os políticos são todos iguais" é, provavelmente, uma das frases mais proferidas no que à política diz respeito, quer no café, quer no conforto do lar. Pela mão do jornalista e diretor-adjunto do Polígrafo, Gustavo Sampaio, esta declaração encabeça, agora, um livro, que atua como "um diagnóstico do que está a acontecer" no panorama português, que foi 'infetado' pelo "vírus do populismo", com a entrada do Chega na Assembleia da República, em 2019.
Além de ter feito proveito da "estratégia política" da extrema-direita tradicional, o Chega foi bem sucedido na "infiltração de ideias tradicionalmente de extrema-direita e das margens do sistema para o centro do sistema", o que se tornou evidente com a extrapolação da segurança e da criminalidade enquanto temas de "grande urgência na sociedade portuguesa".
Olhando para o cenário internacional, é possível prever que o líder do Chega, André Ventura, é portador de "uma semente de dirigente ou líder autoritário", o que, conforme explicou Gustavo Sampaio ao Notícias ao Minuto, "é um risco enorme para a resistência das instituições e do sistema democrático", caso alcance o poder.
Por enquanto, contudo, o Chega encontra-se "numa fase de sedução do eleitorado e de crescimento eleitoral", pelo que "não assume, esconde ou dilui" os elementos da extrema-direita tradicional, por forma a "obter resultados eleitorais muito mais expressivos e disputar, realmente, o poder".
Durante meses, nas campanhas e nos programas políticos, andámos a colocar o problema da segurança e da criminalidade como se fosse de grande urgência e central na sociedade portuguesa, algo que não me lembro de alguma vez ter existido na cena política portuguesa, e mais grave, a fazer uma correlação muito intensa entre esse problema e a imigração, que também não há dados que justifiquem, de todo, o que joga com o discurso xenófobo, racista e anti-imigração do Chega
Há, atualmente, sinais do "vírus" do populismo um pouco por todos os partidos, ainda que seja mais evidente nuns do que noutros. Foi a normalização do Chega no espaço político que ‘rompeu’ com a ‘quarentena’, digamos assim?
Sim, acho que o Chega é o projeto mais consistente [nesse âmbito], até porque replica estratégias de outros partidos populistas noutros países, que tiveram sucesso eleitoral. E é, sem dúvida, o projeto que vai mais longe nesse tipo de estratégia política. Também é o que, por isso mesmo, coloca maiores riscos ao sistema democrático português.
Tendo em conta o que aconteceu noutros países, e está a acontecer, tendo em conta que replica as mesmas estratégias, isso leva a recear que também o faça no exercício do poder e que tenha ações que coloquem em causa as instituições, a separação de poderes, a independência dos tribunais, e até a legitimidade do processo eleitoral quando os resultados não são favoráveis a esse partido.
Portanto, neste momento, podemos considerar que o Chega é abertamente um partido de extrema-direita, ainda que não de forma tradicional?
Se é uma pergunta de sim ou não, a resposta é sim. Mas não é isso que é o mais relevante. A extrema-direita sempre existiu, a questão é que os partidos de extrema-direita não tinham expressão eleitoral, não iam além de 1%. O que vimos, por exemplo, em França, quando Marine Le Pen sucedeu ao pai, Jean-Marie Le Pen, foi uma transformação do projeto político da Frente Nacional, de uma extrema-direita tradicional que assustava o eleitorado com mensagens antissemitas, revisionistas da Segunda Guerra Mundial, quase neonazis, abertamente racistas e xenófobas, para a construção de uma embalagem em que isso continua a lá estar, mas de forma diluída e, muitas vezes, através de metáforas ou de linguagem purificada. Dessa forma, manteve essa base de apoio desse tipo de eleitorado e desse tipo de ideologia, mas conseguiu ir buscar mais eleitorado à Direita, e até ao centro, na medida em que deixou de dizer certas coisas mais radicais e extremistas. Conseguiu, digamos, aumentar em muito a capacidade daquele projeto de obter resultados eleitorais muito mais expressivos e disputar, realmente, o poder.
Aqui, é mais ou menos o que aconteceu. No início do Chega, a extrema-direita tradicional, que na altura era o PNR, o atual Ergue-te, também protestou, no sentido em que o Chega estava a roubar-lhe o programa. O próprio líder disse isso na altura, entre outras declarações, sobre André Ventura. Em parte era verdade, e continua a ser verdade. Mas o mais relevante é que não só tem essa componente no programa e na estratégia política, mas não é isso que faz parte da embalagem política daquele projeto e que está à mostra das pessoas; por isso é que consegue chegar a muito mais eleitorado que, provavelmente, nunca votaria na extrema-direita tradicional.
Há outra vertente do problema, que não é tanto este tipo de partidos chegarem ao poder. Na maior parte dos casos não chegam ou, quando assumem o poder, ficam lá pouco tempo. Outra transformação que existiu muito rapidamente, tal como foi muito rápida a ascensão do Chega, foi a infiltração de ideias tradicionalmente de extrema-direita e das margens do sistema para o centro do sistema, chegando a incorporar programas, discursos e ações políticas de partidos do centro do sistema político português.
Vimos isso muito recentemente e de uma forma muito evidente nas questões ligadas à imigração e à segurança e criminalidade. Não negando que possa existir uma parte desses fenómenos que possa ser entendida como um problema, houve claramente uma extrapolação, a criação de uma ideia falsa, como vimos com os dados do (Relatório Anual de Segurança Interna) RASI, de que havia uma vaga imensa de crime. Em muitas vertentes, diminuiu. No geral, continua abaixo do nível pré-pandemia, de 2019. Se andarmos uma década para trás, os números eram muito piores, mesmo ao nível da criminalidade violenta, homicídios, etc.
Durante meses, nas campanhas e nos programas políticos, andámos a colocar o problema da segurança e da criminalidade como se fosse de grande urgência e central na sociedade portuguesa, algo que não me lembro de alguma vez ter existido na cena política portuguesa, e mais grave, a fazer uma correlação muito intensa entre esse problema e a imigração, que também não há dados que justifiquem, de todo, o que joga com o discurso xenófobo, racista e anti-imigração do Chega. Isso é uma coisa que já aconteceu, a infiltração de ideias e do programa do Chega em partidos de centro-direita e de centro-esquerda.
Há muitos exemplos e critérios que levam a fazer uma previsão de que há ali uma semente de dirigente ou líder autoritário. No exercício do poder, isso é um risco enorme para a resistência das instituições e do sistema democrático, porque a democracia norte-americana é muito mais consolidada e tem um sistema muito mais estruturado de pesos e contrapesos
Como mencionou, os partidos proto-fascistas, demagógicos e populistas ambicionam "impor uma ditadura de partido único, adulterar a verdade e reprimir a dissensão, […] dissimulando o extremismo e fabricando assim uma espécie de homeopatia ideológica para consumo de massas". Quão avançado está este fenómeno no que toca ao Chega, tendo em as constantes partilhas de informação falsa ou manipulada nas redes sociais, com grafismos de meios de comunicação nacionais, a maioria das vezes recorrendo à "vertente emocional"?
É difícil falar sobre isso neste ponto, porque o Chega está na fase de oposição. Na fase de oposição, como também abordo no livro relativamente a outros projetos de outros países, que estão numa fase mais adiantada e que podemos comparar, porque já tivemos o exemplo de quando exerceram o poder, este tipo de projeto populista, como é óbvio, evoca sempre o seu respeito por regras democráticas. É isso que o distingue da extrema-direita tradicional, que não tinha grande amor à democracia e que fazia um revisionismo histórico mais assumido, e assumia o que realmente pensava. Na fase de oposição, este tipo de projetos não assume, esconde ou dilui, dentro da sua mensagem, e está numa fase de sedução do eleitorado e de crescimento eleitoral. A partir dessa comparação que fazemos com outros projetos, partidos e líderes populistas de outros países, muitos deles próximos de André Ventura e do Chega, podemos ter uma ideia do que é que este tipo de partido fará quando chega ao poder, a solo e em coligação. Temos também alguns indícios a partir destes seis anos de evolução do Chega, com muitas transformações muito rápidas.
Faço uma adaptação de um teste de previsão de autoritarismo de um dirigente político, que dois cientistas políticos norte-americanos fizeram relativamente a Donald Trump, analisando, a partir de determinados critérios, logo antes de ele ter assumido pela primeira vez o poder, na campanha de 2016, se já haviam sinais de que ele seria um líder autoritário no exercício do poder, e o resultado era muito expressivo. Adaptei esse teste à realidade portuguesa e André Ventura tinha classificações ainda mais positivas do que Donald Trump em 2016. Isto baseando, sobretudo, também na forma como ele já exerce o poder dentro do próprio Chega, tendo em conta os testemunhos de pessoas que lidaram com esse poder internamente. Desde as situações em que impôs a lei da rolha dentro do partido, impediu qualquer tipo de dissensão, de crítica a ele próprio enquanto líder, e a forma como, mesmo tendo uma posição muito dominante no partido, em que o partido se confunde com ele, não há uma grande oposição interna. Até há a ideia generalizada de que o partido dificilmente sobreviveria com esta dimensão eleitoral, se algum dia ele saísse da liderança.
Olhando para exemplos estrangeiros, sobretudo nos Estados Unidos, é evidente a forma como [a mentira] destrói o tecido social e polariza a sociedade. Em vez de haver divergências políticas, há quase inimigos políticos que não conseguem conversar, e isso também é uma distorção do jogo democrático. Por isso é que é tão importante um jornalismo livre, independente e ativo
[Também evidenciei] a ânsia dele de cada vez que alguém ganhava algum protagonismo cortar logo a hipótese dessa pessoa de continuar a ter esse protagonismo e vir a ameaçar a sua liderança, a dificuldade em lidar com alguém que pudesse ter algum destaque dentro do partido, com base em entrevistas que fiz a Nuno Afonso, que era o ex-braço-direito. Ele disse que André Ventura nem sequer o contraditório permitia dentro do partido. Também a questão do culto da personalidade, quando mandou colocar os retratos dele próprio em todos os gabinetes de deputados do Chega, até ao nível das concelhias do partido.
Há muitos exemplos e critérios que levam a fazer uma previsão de que há ali uma semente de dirigente ou líder autoritário. No exercício do poder, isso é um risco enorme para a resistência das instituições e do sistema democrático, porque a democracia norte-americana é muito mais consolidada e tem um sistema muito mais estruturado de pesos e contrapesos. A democracia portuguesa ainda tem apenas 50 anos e não sei até que ponto estaria consolidada para resistir a uma liderança deste tipo, autoritária e que colocasse em desafio coisas muito essenciais do sistema democrático.
Questionou, várias vezes, "como é que se debate neste enquadramento irracional?" Redireciono-lhe a pergunta, uma vez que, enquanto jornalistas, sabemos que a mentira chega sempre mais longe do que o desmentido.
Não sei qual é a melhor forma de combater. Agora, dentro do jornalismo, a nossa prioridade é sempre procurar a verdade ou tentar chegar ao mais próximo da verdade. Isso é uma batalha que temos de fazer diariamente, contra um projeto novo. Não quer dizer que não existisse mentira na atividade política e nos dirigentes políticos, porque havia, sempre houve e continuará a haver, também muita propaganda e, por vezes, mentiras descaradas. Mas nunca existiu este tipo de fenómeno, em que é sistemático e faz quase parte da estratégia política desse partido. Também há a novidade dos recursos tecnológicos com que fazem essa difusão permanente de falsidades, sobretudo em temas que puxam à emoção e ao ressentimento de partes da população. Mais uma vez, olhando para exemplos estrangeiros, sobretudo nos Estados Unidos, é evidente a forma como isso destrói o tecido social e polariza a sociedade. Em vez de haver divergências políticas, há quase inimigos políticos que não conseguem conversar, e isso também é uma distorção do jogo democrático. Por isso é que é tão importante um jornalismo livre, independente e ativo.
Como a procura por este tipo de política e de oferta política existe, mesmo que André Ventura desapareça de cena, o partido poderá resistir com outros protagonistas, ou poderá surgir outro partido, que utilize a mesma estratégia e que possa ir buscar aquele eleitorado
A democracia baseia-se muito na verdade, no sentido em que as pessoas vão votar com a melhor informação possível. Se as pessoas vão votar tendo visto que o candidato x ou y é criminoso ou que fez isto e aquilo, sendo falso, numa rede social, e pensa que é verdade, há uma distorção do jogo democrático, que leva a uma manipulação eleitoral. Por isso é que é também tão importante combater essa vertente de introdução de falsidades no debate público, e também a confrontação, o bullying com outros dirigentes, como temos visto na Assembleia da República. Nas últimas legislaturas, há um ambiente político muito mais crispado, quase de confrontação permanente, com insultos. Isso são fenómenos muito evidentes na atuação deste partido.
Como lhe disse Nuno Afonso, o partido assemelha-se a "uma seita", na qual há um vincado "culto de personalidade". Uma vez que o Chega não tem quadros e tem vivido várias guerras civis pelo fosso ideológico entre membros, tem hipótese de sobreviver caso o líder o abandone?
Os estudos que se fizeram com a observação de outros partidos noutros países [apuraram] que, geralmente, este tipo de partidos centrados numa pessoa têm muita dificuldade em sobressair. Como André Ventura também cortou muito as pernas a quem ganhasse algum protagonismo, se olharmos hoje para o partido, não vemos muitas pessoas que pudessem suceder-lhe. Nuno Afonso referiu isto na entrevista, mas dos amigos próximos dele, que criaram o partido com ele, já só sobra um, porque ele vai afastando-os. Mesmo ao nível da direção, já vamos para aí na terceira vaga de dirigentes, porque também foi afastando vários, por vezes com alguns problemas. Vemos talvez a Rita Matias com algum protagonismo crescente, sobretudo em determinados temas e junto dos jovens, mas pouco mais.
Muitas vezes, como temos visto noutros países, os países de centro-direita, porque veem o eleitorado a fugir para esse tipo de partidos, quase replicam o programa político dos partidos populistas e deixam de ser centro-direita em determinados temas. Isso é um fenómeno recorrente que estamos a ver, de algum modo, muito ténue, a acontecer aqui em Portugal
Pelos exemplos e por este contexto, diria que seria difícil sobreviver. No entanto, neste contexto português, mais especificamente da dimensão eleitoral do Chega, que é um partido que está, quer em eleições ou sondagens, próximo dos 20%, também não acho que o partido, mesmo que ele saísse, desaparecesse de um dia para o outro. Acho que aquele eleitorado não desapareceria assim tão instantaneamente. Talvez não tivesse tanta dimensão eleitoral. Também temos de ter em conta que, em determinados países, sobretudo na Europa, este tipo de partidos já existem há décadas, quase desde os anos 90. Isso também nos leva a ter um pouco a perspetiva de que, provavelmente, como a procura por este tipo de política e de oferta política existe, mesmo que André Ventura desapareça de cena, o partido poderá resistir com outros protagonistas, ou poderá surgir outro partido, que utilize a mesma estratégia e que possa ir buscar aquele eleitorado. Mas isso é futurologia, não sei o que esperar.
Claro, até porque se trata de um eleitorado composto não só por quem realmente acredita naquele tipo de narrativa, mas também por pessoas descontentes.
Sim, há uma coligação de descontentamentos e de ressentimentos, que joga muito eficazmente [a favor do Chega]. André Ventura é muito eficaz, tem uma capacidade de trabalho imensa e tem muito talento político, por isso é que teve sucesso eleitoral; joga bem com esses descontentamentos e sentimentos. É um bom barómetro, [porque] há alguns descontentamentos e ressentimentos que, se calhar, não estão tão visíveis à bolha político-mediática e que este partido fareja bem. O problema é que, quando são realmente problemas e situações que urge tratar e ter em conta, muitas vezes a abordagem é errada e leva a que se desvalorize ou relativize a importância desses problemas. Isso também não é a melhor forma de o fazer, porque leva ao crescimento do Chega.
Sobre a questão da insegurança e da imigração, [importa notar] que o discurso anti-imigração do Chega não é contra os imigrantes em geral, é contra os imigrantes com um determinado aspeto e cor de pele; é centrado no que dizem ser os indostânicos. Se for um imigrante branco, que imaginam que tem dinheiro, já não há qualquer problema. Mesmo rejeitando esse tipo de abordagem política e esse tipo de discurso, muitas vezes racista e xenófobo, há que ter em conta que houve uma entrada muito expressiva de imigrantes em Portugal nos últimos anos, de forma muito rápida, em que passámos de uma percentagem residual da população imigrante para uma percentagem mais considerável e já próxima do padrão dos países do Norte e do Centro da Europa que, mesmo assim, continuam com percentagens superiores. É evidente que isto causa uma pressão nas infraestruturas, até nos serviços públicos em Portugal, que não estavam preparados para tantas mais pessoas. Acrescem os turistas e levanta alguma apreensão e fricção na população local, com um fluxo tão grande num curto espaço de tempo de população imigrante. Isso leva a outro tipo de situações, de fenómenos de perceção de insegurança.
Se calhar, se outra pessoa dentro do partido se candidatasse a alguma coisa, poderia ganhar alguma dimensão, relevância e notoriedade ao nível nacional, e André Ventura sente a necessidade de estar sempre na crista da onda e de não estar de parte das campanhas, dos cartazes, de estar omnipresente e de ser sempre ele o candidato a tudo
Esse tipo de questões têm relevância política e social e devem ser abordadas pelos partidos do sistema e do centro, mas não com aquela abordagem e dentro dos termos em que o Chega e outros partidos populistas noutros países os colocam. Esse é que é o problema: a abordagem, o enquadramento que faz. Muitas vezes, como temos visto noutros países, os países de centro-direita, porque veem o eleitorado a fugir para esse tipo de partidos, quase replicam o programa político dos partidos populistas e deixam de ser centro-direita em determinados temas. Isso é um fenómeno recorrente que estamos a ver, de algum modo, muito ténue, a acontecer aqui em Portugal. Geralmente, não resulta bem para a Direita, para a arrumação ideológica dos partidos de Direita.
O Gustavo deu vários exemplos no livro, mas o mais recente foi a conferência de imprensa sobre as questões de segurança e imigração, com o primeiro-ministro. E até mencionou um discurso de Luís Montenegro que poderia sido proferido por André Ventura.
Sim. Lá está, até poderia ter dado aquela conferência de imprensa noutra situação, e até seria menos grave. Mas fê-lo à hora de abertura do telejornal, sem sequer indicar o tema, dando uma importância a uma operação policial que foi algo inédito na sociedade portuguesa; nunca tinha visto tal acontecer. Passados uns meses, aparece algo factual, que é o RASI, em que olhamos para os dados e não vemos, realmente, essa vaga de criminalidade a acontecer em Portugal, nem algo que justifique esta urgência, pânico e centralidade desse tema na vida portuguesa.
André Ventura já tinha avançado como candidato às presidenciais de 2026, equacionou ser cabeça de lista nas eleições autárquicas e, agora, confrontado com as eleições legislativas antecipadas, já admitiu afastar-se da corrida a Belém. Quer poder a todo o custo, seja de que forma for?
Sim, quer poder, mas também é a questão do protagonismo. Se calhar, se outra pessoa dentro do partido se candidatasse a alguma coisa, poderia ganhar alguma dimensão, relevância e notoriedade ao nível nacional, e André Ventura sente a necessidade de estar sempre na crista da onda e de não estar de parte das campanhas, dos cartazes, de estar omnipresente e de ser sempre ele o candidato a tudo. Sendo justo, também devo reconhecer que ele também terá visto o exemplo das Autárquicas, mas sobretudo das últimas Europeias. Não estou a dizer que tinha um discurso interessante; aliás, disse coisas muito graves no início da campanha. Mas, em comparação com outras eleições e com outros candidatos do Chega, era um candidato muito competente: era um ex-embaixador, tinha um grande conhecimento de política externa e diplomacia, ao contrário de outros candidatos do Chega, por exemplo, ao nível das autarquias, que não tinham a mínima preparação para o cargo. Até o número dois, que também foi eleito para o Parlamento Europeu, era uma pessoa com reconhecida competência e até mérito para exercer aquelas funções. Estranhamente, o Chega teve uma quebra imensa de votos nessas eleições, o que leva também a pensar que, se calhar, não é esse tipo de candidato que o eleitorado do Chega pretende e gosta. Aquela campanha não correu nada bem e, aliás, André Ventura já andava com o candidato às costas e de braço dado, porque já estava a perceber a iminência do desastre daqueles resultados.
Se o Chega não tivesse tido aquela sucessão de casos dentro do partido, com o deputado Miguel Arruda, e com outras pessoas, em que se foram descobrindo coisas graves, teria quase a certeza de que subiria imenso [nas eleições antecipadas]
Portanto, sendo justo, tendo tido essa experiência, ele também acha que, se calhar, nesta altura, só ele é que pode ser candidato. É, por um lado, o protagonista, e por outro, quando deu esse protagonismo, não gostou do resultado e não foi bom para o partido. Depois, também é a própria dinâmica e estratégia deste tipo de partidos de protesto, que têm de estar sempre em campanha. Aliás, há uma velocidade tal de atuação e de propaganda daquele partido e do próprio Ventura; não há tempos mortos. Também é aquela ideia de dar sempre a perspetiva de que estamos em crise e que ele é que vem salvar isto, o que implica estar sempre em campanha e a candidatar-se a alguma coisa para derrubar o Governo. Penso que foi isso que o levou a protagonizar candidaturas como cabeça de lista a múltiplas eleições em tão poucos anos. Não sei como é que ele aguenta o ritmo, porque passa de uma campanha para outra. Em termos de campanha, sobretudo as Presidenciais, que é muito personalizada, causa exaustão nos candidatos. Mesmo assim, ele continua sempre com aquele ritmo, o que é impressionante.
Existem vários exemplos lá fora que comprovam que é possível que o populismo penetre nas instituições e acabe por subverter "a democracia pelo interior", através de teorias da conspiração, de emoções fortes e da falta de informação dos eleitores. Tendo em conta que vamos novamente a eleições, que diagnóstico faz dos próximos tempos?
Tenho muitas dificuldades em fazer previsões, sobretudo nestas eleições. Sou jornalista há 20 anos e são as eleições que menos consigo prever o resultado, porque acho que há uma incerteza enorme sobre tudo o que vai acontecer daqui a um mês e meio. De qualquer forma, posso dizer que, se o Chega não tivesse tido aquela sucessão de casos dentro do partido, com o deputado Miguel Arruda, e com outras pessoas, em que se foram descobrindo coisas graves, teria quase a certeza de que subiria imenso. Depois, a sucessão tão grande de eleições e o cansaço das pessoas também poderá, de alguma forma, levar a algum voto extra na Aliança Democrática (AD), de forma a que se mantenha o Governo, e criar uma fuga de eleitorado que estava no Chega. Isto também porque, neste momento, a alternativa do Partido Socialista (PS) não é assim tão atrativa para a maior parte das pessoas, parece-me. Se tivesse de apostar, diria que as coisas vão ficar praticamente iguais, só com aquela dúvida de quem fica à frente, entre os dois maiores partidos de centro.
Porque é que decidiu debruçar-se sobre este tema? O que é que o surpreendeu mais entre as entrevistas que fez a André Ventura?
A primeira vez que o entrevistei foi quando ele se candidatou à Câmara Municipal de Loures pelo Partido Social Democrata (PSD). Introduziu aquele tema, que foi uma estratégia muito direcionada, contra os ciganos, que transportou para a notoriedade a nível nacional, onde ninguém o conhecia. No contexto político, ele já era comentador na televisão, com temas de segurança, criminalidade e, depois, futebol, em particular. Essa foi uma primeira entrevista que fiz com o intuito de perceber o que é que estava ali, porque era um tipo de discurso muito incomum na política portuguesa, embora tivesse havido algumas experiências anteriores no CDS, que não eram tão chocantes, nem assumidas. Estava a tentar perceber que tipo de fenómeno era aquele que, depois, veio a desembocar na criação do partido Chega, cerca de um ano e meio depois, com todo aquele projeto populista que já se tinha percebido que estava ali em gestação. Depois, no âmbito deste livro, no ano passado, voltei a entrevistá-lo. O que poderia sublinhar é que é uma pessoa muito acessível, muito afável, com um bom relacionamento pessoal, bastante diferente da personagem que as pessoas veem na televisão e na atividade política.
Em 2017, quando houve a candidatura a Loures, ainda não sabia que o Chega seria criado, e escrevi uma espécie de análise para o Jornal Económico sobre porque é que o populismo ainda não chegara a Portugal. Nessa altura, tínhamos uma ideia muito consensual de que, ao contrário do que tinha acontecido noutros países, Portugal era, de alguma forma, imune ao populismo e que tínhamos uma cultura política diferente. Nesse artigo, que resolvi desenvolver em livro, apontava para uma série de vulnerabilidades e de questões políticas em Portugal que poderiam levar a que um projeto desse tipo viesse a ter sucesso eleitoral em Portugal e que se desenvolvesse uma versão portuguesa daquela estratégia política que vimos noutros países. Esse projeto de desenvolvimento do livro foi atrasando-se, por causa das minhas responsabilidades profissionais, e ao mesmo tempo o Chega foi crescendo. Passou de ser um livro de alerta de que o populismo poderia vir a ter sucesso em Portugal para um diagnóstico do Chega, que muito rapidamente conseguiu representação parlamentar e foi crescendo. O próprio livro não foi conseguindo acompanhar a realidade.
Entretanto, tornou-se quase um diagnóstico do que está a acontecer, e não tanto um alerta. As vulnerabilidades que na altura apontei eram a questão da corrupção e da perceção da corrupção, da sucessão de casos que levava a que alguém conseguisse ter um discurso que pegasse nisso para conquistar o eleitorado, com um discurso redentor, de vir salvar e limpar o país da corrupção muito generalizada. Também a forma como o discurso político estava a mudar, por influência das redes sociais e dos comentadores televisivos, para determinado tipo de linguagem que já tínhamos visto noutros países. Havia uma série de vulnerabilidades que identifiquei e que o Chega, em grande parte, explorou eficazmente, concluindo que a procura por um projeto populista que pudesse explorar esse tipo de situações já existia; não existia era um produto político que suprisse essa oferta. [O Chega] já alterou o sistema político português. Praticamente desde o Partido Renovador Democrático (PRD) que ninguém conseguia furar o bipartidarismo entre o PS e o PSD e chegar a 20% dos votos e 50 deputados.
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