"A internet é utilizada centenas de vezes por dia, nos telemóveis, nos computadores... e não há regras. Quando se vai ao médico, se compra comida, de viaja de avião, sentimo-nos seguros, a maioria sente-se. Existe regulação. Então porque não se regula esta 'maldita' área? Por exemplo, com um instituto", assinalou o denunciador (whistleblower) canadiano de 29 anos formado na London Scholl of Economics e antigo diretor de investigação na Cambridge Analytica (CA), entre a aprovação sonora das centenas de pessoas que enchiam a Altice Arena, no Parque das Nações.
Durante uma intervenção moderada por Krishnan Guru Murthy, jornalista britânico do Channel 4 e apresentador do Channel 4 News e dos Unreported World, documentários sobre política internacional, o ex-responsável da CA traçou um cenário sombrio sobre o atual descontrolo na "autoestrada da informação", com particular ênfase para a situação nos Estados Unidos.
"Quem é responsável pela regulação da internet nos Estados Unidos?", questionou-se no decurso da intervenção. "Dormimos mais com as novas tecnologias que com pessoas, e não há regras!".
A indignação de Wylie, que exibiu uma camisola com a frase "Prendam o Presidente", está diretamente relacionada com as consequências da sua passagem pela CA, uma empresa com gabinetes em Nova Iorque, Washington e Londres especializada em política norte-americana, e que combinava ferramentas de exploração e de análise de dados.
Em 2008, Wylie forneceu diversos documentos ao diário britânico The Guardian e que descreviam diversos métodos da CA, designadamente a utilização de dados pessoais privados de 50 milhões de contas de utilizadores do Facebook e aos quais a empresa não tinha acesso direto. Esses dados foram utilizados para beneficiar diversas campanhas políticas no decurso das presidenciais norte-americanas de 2016.
A atitude de Christopher Wylie esteve na origem do escândalo Cambridge Analytica-Facebook.
Num regresso a este passado turbulento, o orador referiu-se a Steve Bennan, o ex-chefe estratégico da Casa Branca na administração do Presidente Donald Trump, e à forma como foram utilizadas "estratégias militares" em benefício da campanha de Trump em 2016 para promover uma "guerra cultural".
"Na guerra é necessário um arsenal e na guerra cultural o arsenal é a informação, e o alvo são as pessoas (...) As pessoas vulneráveis a essa informação foram identificadas e atingidas pelo alvo", disse.
O denunciador canadiano contou ainda como a CA começou a "fraturar a sociedade americana, tratando parte como terroristas", o motivo da sua saída e o início de muitos problemas políticos e pessoais, tal como sucedeu há anos atrás com o norte-americano Eduard Snowden.
A intervenção de Christopher Wylie constituiu sobretudo um sinal de alerta. Sobre o "novo Facebook" e a incapacidade de os governos enfrentarem a situação, sobre qual o local desconhecido onde se "armazenam" os dados da internet nos Estados Unidos, sobre a ausência de regras.
"É necessário um código ético de conduta, é absurdo não existir controlo, estamos a mexer na vida das pessoas", insistiu.
Depois, propôs um desafio à atenta assistência. Imaginar o futuro, com a casa ligada ao carro, o carro ligado à empresa, a empresa ligada a muitos outras ferramentas informáticas de alta tecnologia, e perante um provável alheamento social quase total.
"Tenham em consideração no que fazem, no que fazem as outras pessoas, e pensem em frente. Trata-se de um enorme problema e é necessário pensar-se seriamente. Existe uma estrutura integral que pensa e nos observa. Isso é um pouco assustador. Imagine-se esse ambiente dentro de 20 anos, quando todo o mundo estiver 'ligado'. Isso é assustador".
A sua batalha estava resumida numa intervenção de cerca de 20 minutos, apenas com breve e precisas perguntas do moderador.
"O que tento fazer, e pensem nisso, é dizer às pessoas para trabalharem coletivamente, iniciarem uma discussão sobre o que deverá ser o futuro das tecnologias, com quem devemos falar, e a forma como devem ser reguladas".
Krishnan Guru Murthy fez uma última pergunta e deu um minuto para a resposta: "Isto fez com que a tua vida fosse virada ao contrário, por fora e por dentro...valeu a pena?".
"Sim", respondeu quase de imediato. "Estão a ocorrer mudanças pela noite e penso que tenho um dever, de falar com as pessoas aqui e em todo o mundo, e começar a pensar nisso (...). Penso que é um progresso". Christopher Wylie retirou-se de cena entre uma forte salva de palmas.
A cimeira tecnológica, de inovação e de empreendedorismo Web Summit, com sessão inaugural na segunda-feira, decorre até quinta-feira no Altice Arena (antigo Meo Arena) e na Feira Internacional de Lisboa (FIL), no Parque das Nações.
Para esta edição, a terceira em Lisboa, a organização já prometeu "a maior e a melhor" de sempre, com novidades no programa e o alargamento do espaço, sendo esperados mais de 70 mil participantes de 170 países.
O evento nasceu em 2010 na Irlanda e mudou-se em 2016 para Portugal e desde essa altura terá gerado um impacto económico de mais de 500 milhões euros.
Inicialmente, estava previsto que a cimeira ficasse por apenas três anos, mas em outubro deste ano foi anunciado que o evento continuará a ser realizado em Lisboa por mais 10 anos, ou seja, até 2028, mediante contrapartidas anuais de 11 milhões de euros e a expansão da FIL.